No seminal texto de 1977, Cinéma et Histoire, a propósito da capacidade da sétima arte conseguir ou não representar o passado, Marc Ferro refere-se a um interessante paradoxo. O facto de ser nos filmes de reconstituição histórica que se torna mais difícil encontrar a verdadeira realidade histórica, uma vez que existe a decisão de nos entregar imagens que configuram uma representação de um passado mediadas pelas decisões do momento de concepção do filme. Inversamente, nos “filmes em que a acção é contemporânea com a realização do filme estes não são meramente testemunhas do universo imaginário de uma era. Uma vez que envolvem elementos que vão para lá do momento imediato, conseguem transmitir-nos uma verdadeira imagem do passado” (pp. 47-48).
Para esta forma da ficção contemporânea contar a história, Ferro dá como exemplo, a maneira como Baby ryazanskie (A Aldeia do Pecado, 1927) de Olga Preobrazhenskaya e Ivan Pravov é um testemunho muito autêntico do casamento na antiga Rússia. Sobretudo as cenas na primeira metade do filme sobre a “escolha” dos noivos, a questão financeira dos dotes ou a própria cerimónia de casamento. Este é um dos apelos desta obra relativamente invisível de uma cineasta também pouco conhecida.
Olga Preobrazhenskaya começa a sua carreira no teatro, tendo sido actriz conhecida de várias obras do cinema soviético pré-revolucionário. Casa-se e começa a trabalhar com Vladimir Gardin, sendo que as narrativas da história do cinema tiveram o condão de secundarizar o trabalho de Preobrazhenskaya face ao do companheiro. Embora já tivesse começado a realizar desde 1916, é mais uma vez com um convite masculino, o do seu ex-aluno Ivan Prazov (Preobrazhenskaya havia começado a ensinar representação no VGIK que Gardin havia fundado em 1919), que a sua carreira dá um salto. Nomeadamente com este Baby ryazanskie que conta a história de duas mulheres no período entre o início da primeira guerra mundial e a ressaca da revolução de 1917.
Por tudo isto, Baby ryazanskie é um filme muito duro e muito belo que, quando redescoberto, nos mostra como nos caminhos paralelos dos cineastas soviéticos consagrados pelo tempo, há um outro percurso, tão ou mais entusiasmante, a trilhar.
Se Preobrazhenskaya é considerada a primeira realizadora soviética, Baby ryazanskie é talvez a primeira obra assumidamente feminista. De um lado, temos o protótipo da mulher infeliz, Anna (Raisa Puzhnaya), camponesa pobre de Riazan, que parte para um casamento arranjado pela sua tia e que é vítima da subjugação e abuso masculinos. Da outra parte, a sua cunhada, Vasilisa (Emma Tsesarskaya) é uma mulher emancipada que recusa o casamento e se junta a um homem de quem gosta. Forte e dona do seu destino, vai criar um orfanato para ajudar crianças da região. Preobrazhenskaya não esconde a sua visão: a mulher do “passado” é castigada pela sua fraqueza, enquanto que é em Vasilisa que reside a esperança de um futuro mais igualitário; é ela que irá cuidar da criança inocente que sobrevive diante da tragédia final.
Nesta narrativa de dois destinos femininos, a ficção observa de forma quase antropológica a vida rural na região de Riazan. É possível por isso “detectar a realidade por meios da ficção e do imaginário”, como refere Marc Ferro. Atente-se, por exemplo, nos planos abertos do trabalho sobre os campos de trigo, no lavar das roupas no rio, no fiar dos tecidos, nas já referidas cenas do casamento ou na sequência das festividades do dia da Assunção. O folclore e um certo exotismo da ruralidade (Leyda, in A History of the Russian and Soviet Film, p. 231) permitem a Preobrazhenskaya afastar-se de uma tradição propagandística. Pois, como bem observa Kat Ellinger num texto biográfico sobre a autora, os seus filmes buscam antes uma ideia de realismo e naturalismo, a vontade de revelar uma verdade emocional, um humanismo no real.
Talvez por isso, Baby ryazanskie (A Aldeia do Pecado, 1927), que foi um sucesso nacional à época, esteja mais próximo de um cineasta como Aleksandr Dovjenko do que da construção formalista de Eisenstein. A extraordinária banda sonora composta por Sergei Dreznin sublinha esse lirismo, na potência dos rostos das personagens, nessa carga telúrica e laboral, numa montagem mais aberta, mais assumidamente griffithiana que colocava a tragédia das vidas e da narrativa à frente do impulso transformador pela ligação construtivista das imagens.
Por tudo isto, Baby ryazanskie é um filme muito duro e muito belo que, quando redescoberto, nos mostra como nos caminhos paralelos dos cineastas soviéticos consagrados pelo tempo, há um outro percurso, tão ou mais entusiasmante, a trilhar.