A estreia na realização de Sean Baker deu-se há mais de vinte anos, mas o seu nome era desconhecido da cinefilia até ao lançamento de Starlet (2012), que integrou o programa do South by Southwest, onde foi bem acolhido pelos espectadores. Os seus filmes seguintes consagraram-no enquanto figura querida da crítica de cinema, assim como confirmaram o seu fascínio por matérias relacionadas com o trabalho sexual, desde a prostituição à indústria pornográfica. O seu último filme, Red Rocket (2021), estreou durante o pico da pandemia e, por isso, teve uma passagem discreta nos cinemas. Em Portugal, por exemplo, o filme só foi exibido no LEFFEST, um dado desapontante, uma vez que se trata, em conjunto com The Florida Project (2017), do filme que melhor transparece a maturação de Baker num dos realizadores mais relevantes a afirmar-se no panorama de cinema independente norte-americano nos últimos dez anos. Tendo isto em consideração, foi com naturalidade que constatei que Anora (2024) tinha sido seleccionado para a Competição Oficial do Festival de Cannes. A conquista da Palma de Ouro, por sua vez, deixou-me surpreendido e apreensivo. E tinha razão para estar porque Baker, à semelhança de tantos outros realizadores, consagra-se no mais alto plano do cinema internacional com uma das suas obras mais pobres.
Anora Mikheeva (Mikey Maddison), também conhecida por Ani, é uma stripper de vinte e três anos que trabalha no Headquarters Gentleman’s Club, em Manhattan. O seu trabalho consiste em pescar homens que estão no salão do estabelecimento, convidando-os para um espaço mais privado no qual possa dançar para eles. Para os mais tesos, isto é, para os que têm menos dinheiro, esse local dito privado é um corredor acomodado de um longo sofá, que é compartimentado através de cortinas, como acontece com as macas nos hospitais, pelo que as strippers dançam, na verdade, ao lado umas das outras para homens sentados em fila, numa linha de montagem de roça-roça. Os mais endinheirados beneficiam de um outro serviço – são fechados, na companhia de uma das strippers, num cubículo, com luzes néon e reflexos espelhados, onde se sentam em assentos almofadados que jamais devem ser vistos à luz do dia.
Traseiros abanam, ouve-se música condizente ao acto de abanar traseiros, vêem-se corpos a esfregarem-se uns nos outros em espaços mal iluminados e, esporadicamente, contempla-se o rosto narcotizado de um homem que está a receber uma lap dance. Estas sequências iniciais são meramente protocolares: servem para estabelecer a profissão da protagonista e definir o meio que costuma habitar. Baker está consciente do seu desinteresse por este espaço, pelo trabalho e serviço que lá é prestado, e pelas pessoas que lá passam, tanto trabalhadores quanto clientes, e, por isso, para apimentar um bocadinho o cenário, introduz uma antagonista, Diamond (Lindsey Normington). Diamond é uma colega de profissão de Anora que fica insatisfeita com a notícia de que a protagonista dançou para um cavalheiro que se assume ser o seu namorado. A inscrição deste conflito é um dispositivo artificial que tem como objectivo adicionar tensão ao filme enquanto este estabelece o contexto das personagens e da narrativa. Baker tenta justificar a aposta neste drama inconsequente quando a acção retorna a ele no terceiro acto, mas é precisamente o desenterrar deste elemento da intriga, que não é cómico ou substancial, que comprova que muitas das opções do cineasta respondem a mecanismos narrativos vulgares e, acima de tudo, mal esgalhados, para utilizar um termo apropriado.
A entrada em cena de Ivan Zakharov (Mark Eidelstein) marca o ponto de partida da aventura de Anora enquanto peão no jogo de tabuleiro de uma família bilionária. Ivan é um rapaz russo de vinte e um anos que está em Manhattan a gozar de liberdades das quais não poderia usufruir caso estivesse na terra natal junto dos pais – isto é, aproveita o tempo longe do negócio que está destinado a herdar para organizar festas gatsbianas, mergulhar em drogas e fazer sexo com acompanhantes de luxo na cama em que os pais dormem quando passam uma temporada em Nova Iorque. Acontece que, numa das noites, Ivan dirige-se ao intitulado Clube de Cavalheiros com o objectivo de se embebedar e travar conhecimento com uma jovem hábil na arte de deslizar em varões. Anora é emparelhada com o rapaz porque, sendo ela descendente de russos, compreende o idioma do miúdo, o que lhe permite aproximar-se de Ivan de um ponto de vista que não seja somente físico. Os dois conversam e a rapariga dança ao colo de Ivan que, tendo passado um bom serão, convida-a a fazer uma visita ao domicílio no dia seguinte.
Uma vez na mansão do rapaz, que tem aspecto de produzir conteúdos, como lhe chamam, para as redes sociais, Anora pergunta-lhe o que ele deseja. Sexo, responde Ivan prontamente, ao que a rapariga diz que isso já ela sabia. Como é que queres fazer sexo, é isso que te estava a perguntar, diz Anora, acrescentando que podem fazer um bocadinho de tudo, um rodízio sexual, assume-se. Portanto, há um entendimento entre as personagens de que a sua relação tem uma natureza contratual. Ivan oferece a Anora a soma que ela cobra por um serviço, é esse o acordo.
Depois de vários encontros, o quid pro quo estende-se além do sexo. Satisfeito com a companhia, Ivan paga 15000 dólares para que a rapariga seja a sua namorada durante uma semana. Esta renegociação dos termos constitui uma passagem para uma experiência premium, em especial para Anora, porquanto a rapariga vai ter a oportunidade de estar permanentemente na companhia de Ivan, o que significa que vai poder consumir álcool, participar em festas e divertir-se à pala (não de Walsh).
Os eventos dessa semana, que acaba com as personagens a viajarem para Las Vegas, são representados através de uma montagem de imagens ilustrativas que mostram Ivan e Anora em casinos, discotecas e a fazer sexo a um ritmo que deixaria a mais rápida das lebres invejosa. O compasso de Ivan durante o sexo é equivalente ao ritmo do filme no decorrer desta sequência em Las Vegas, que é suposto ser entusiasmante, na medida em que Anora está a experienciar um estilo de vida fora do alcance da sua classe social. Por isso, quando durante uma cena de sexo a rapariga diz para Ivan não ser tão apressado, o filme está a fazer um meta-comentário – está a anunciar que a correria está prestes a ser suspensa e que a acção vai entrar num outro movimento, menos frenético.
É isso que acontece quando, logo depois, Ivan pede Anora em casamento. O rapaz diz que o casamento lhe dará dupla cidadania, o que lhe viabilizará ficar nos Estados Unidos da América e escapar ao emprego que lhe espera na empresa do pai. No entanto, é evidente que a proposta do miúdo tem algo mais em vista. Ivan não quer somente utilizar Anora como um brinquedo sexual, aliás, a rapariga é repetidamente comparada a uma consola de jogos, como quer transformá-la num instrumento para chagar o juízo dos pais. O rapaz sabe que casar-se os irá irritar e casar-se com uma stripper que se prostitui irá aumentar o vexame da família. A perspectiva da protagonista é ligeiramente diferente. Anora compreende que o casamento também tem uma natureza contratual. Casar com Ivan pode significar uma perda de independência, em virtude de a rapariga passar a estar sob a égide de uma família poderosa, assim como de um marido que, provavelmente, lhe irá exigir sexo e subserviência, mas também pode fazer com que Anora deixe de ser um produto transaccionável e passe a ser a co-proprietária dos bens do rapaz e, consequentemente, a herdeira da fortuna dos oligarcas russos.
O casamento, realizado numa daquelas igrejas de Las Vegas onde Deus hesitaria em entrar, faz com que seja necessário um restabelecimento da ordem. Por isso, assim que sabem da notícia, os pais de Ivan prometem chegar aos Estados Unidos dentro de vinte e quatro horas e enviam três gunas desastrados para a sua mansão em Nova Iorque, onde Ivan se encontra com a esposa. Ivan foge a sete-pés quando é informado pelos mânfios russos de que os pais estão a caminho para o repreender como se fosse um fedelho. O rapaz consegue escapar, deixando Anora sozinha com os capangas, que tentam imobilizá-la, pelo que a rapariga demonstra mais verve que os gopnik.
É neste ponto que o filme deixa de ser uma reiteração cínica da fórmula da Cinderella e passa a ser uma comédia de pares improváveis: uma stripper arrivista que cresceu em Nova Iorque e três marmanjos que se lembram de viver na Rússia de Iéltsin. Anora e os três homens têm de colaborar a contragosto para encontrar Ivan antes que os pais deste cheguem. A rapariga quer encontrar o marido para manipulá-lo no sentido de não aceitar o anulamento do casamento e os capangas querem corrigir o erro de terem dado rédea solta ao rapaz, caso contrário poderão ter a sua vida destruída. É impressionante como a dinâmica cómica entre as personagens se esgota logo na primeira cena que compartilham – a sequência interminável em que os tipos invadem a mansão. Quando a cena termina, já a caricatura dos três capangas se tornou previsível e o molde das relações entre as personagens se cristalizou.
Nesta altura da sua carreira, uma ruptura com os filmes que realizou na última década seria bem-vinda, em particular porque Anora comprova como, ao ser fiel à sua marca registada, Baker corre o risco de se transformar numa figura anónima.
Contudo, há aqui um problema maior que se prende com a dificuldade em encontrar o ritmo certo para a comédia. Confronte-se, de novo, o episódio em que os gopnik entram na mansão. A montagem paralela que articula a perseguição de Garnick (Vache Tovmasyan) a Ivan, a resistência de Anora a Igor (Yura Borisov), e a ida de Toros (Karren Karagulian) ao encontro de todos eles, não tem o tempo correcto. Para além disso, quando as três perspectivas convergem e as personagens se reúnem para discutir o plano para encontrar Ivan, o filme estende em demasia a troca de galhardetes entre os presentes. Baker prolonga a cena e repete a mesma punch-line: ao invés de serem durões, os gunas são uns incompetentes com menos agressividade do que a rapariga, da qual têm medo.
O desajuste rítmico torna-se gritante durante a procura por Ivan. Se por vezes se fica com a sensação de que o filme deseja se aproximar do registo da comédia screwball, que se quer ágil e ligeira, então pode perguntar-se por que razão a acção está entulhada de cenas anónimas em que as personagens mostram a fotografia de Ivan a desconhecidos. Fica-se com a impressão de que não houve imaginação para fabular cenários escabrosos para as personagens, reduzindo a comédia a um vómito num carro. Mesmo a cena em que Ivan é encontrado e resgatado do Headquarters Gentleman’s Club, onde se encontrava a receber uma lap dance de Diamond, e o episódio que se desenrola no tribunal de Nova Iorque, onde se tenta, sem sucesso, anular o casamento, têm pouca inspiração.
A aguardada chegada dos pais de Ivan a território norte-americano promete a renovação da dinâmica, por esta altura cansada, entre as personagens. Porém, a introdução das figuras de autoridade, ao contrário do que seria de esperar num filme com uma veia cómica, não redobra a balbúrdia, antes restabelece a ordem social, o que permite que o conflito de classes que permeia o filme seja vincado, sem rodeios. Os pais bilionários ameaçam e esmagam Anora, pelo que a única afinidade que a rapariga cria é com um dos capangas, Igor, alguém da sua classe social que, à semelhança da rapariga, também prestava um serviço à família de Ivan por um preço.
Depois da supramencionada cena em que os brutamontes invadem a mansão, e Igor se bate com Anora, o homem desempenha um papel trivial. A sua acção na trama resume-se a dois ou três gestos de relativa gentileza para com a protagonista que preparam o caminho para a sua metamorfose em camarada de classe e interesse romântico. De resto, Igor é arrastado pelos eventos e, neste sentido, a determinado momento pergunta-se por que razão ele ainda acompanha as personagens dada a sua inutilidade, em particular a partir da chegada dos pais do rapaz. Igor torna-se visível quando sai em defesa da honra de Anora durante a anulação do matrimónio, sendo que esse gesto, em conjunto com a devolução do anel de casamento (o sucedâneo do sapatinho da Gata Borralheira) à rapariga, são os pontos mais farsantes do comentário sociopolítico.
A conclusão, com os seus grandes-planos frontais de Anora e Igor, que visam transparecer honestidade, mostram como a protagonista tem dificuldade em estabelecer intimidade com alguém sem ser através de uma lógica de transacção e mercantilização do corpo. A sensibilidade sóbria, enfatizada pela ausência de banda sonora durante o último episódio e nos créditos finais, reivindica uma potência dramática que o filme não conquista, pelo que a resolução é ainda mais fora de tom do que a comédia.
A conquista da Palma de Ouro e os números favoráveis de Anora nas bilheteiras tornam previsível que o próximo projecto de Baker irá ter um orçamento mais avultado. Nesta altura da sua carreira, uma ruptura com os filmes que realizou na última década seria bem-vinda, em particular porque Anora comprova como, ao ser fiel à sua marca registada, Baker corre o risco de se transformar numa figura anónima.
★★☆☆☆