Je suis sûr qu’il a saigné du nez quand il t’a vue.
Ça lui fait ça quand il est ému. Il a saigné du nez, hein?
Peaux de Vaches (1989)
(…) the truth is “the family” is always an event of some violence.
It’s only years later, in that retrospective swirl,
that you work out who was hurt,
in what way, and how badly.
Zadie Smith, Feel Free
O potencial humano para a violência é endémico, parte da nossa natureza. Como animais, nascemos com as capacidades para a albergar, e funções neuroendócrinas que medem (inibem ou estimulam) a propensão para ela. Há mais perguntas do que respostas no que diz respeito à origem do que se revela subitamente feroz, em especial no contexto da co-existência social. Um discurso de Toni Morrison espalhava-se pela internet há umas semanas, onde a escritora vencedora de um prémio Nobel falava da previsibilidade da malvadez, de como esta deve ser ridicularizada em comparação com o poder intelectual da resistência, da sobrevivência por meios benignos. Outro discurso seu, viral aquando da recente vitória de Donald Trump, que será presidente dos Estados Unidos da América pela segunda vez, salientava a urgência de nos “tornarmos e permanecermos humanos”, o que implicava afastar a “retórica medieval”. O que implora a questão: poderemos alguma vez definir o que é humano assim, enquanto sumo de tudo o que é benévolo, se as trevas fazem parte da nossa natureza? Questão para a qual a cineasta francesa Patricia Mazuy tem apontado ao longo da sua irregular mas pesada carreira, através da exploração dos microcosmos da classe e da família, do trabalho laboral e do mundo criminoso, através dos quais desce até e isola o ponto nevrálgico da violência especificamente masculina e sua transmissão. E isto acontece não só dentro dos limites da narrativa como também na relação desconfortável que o espectador terá com o seu cinema. Isto inclui até o seu mais recente e luminoso filme, La prisonnière de Bordeaux (2024), que chegará aos cinemas no ano novo, um filme morno com uma Isabelle Huppert sempre ambígua, mesmo quando não é suposto.
Mas antes disso, Bowling Saturne (Bowling Saturno, 2022), filme da autora apresentado em antestreia no Leffest aquando da retrospectiva da sua obra ainda desconhecida pelo público português, chega agora aos cinemas portugueses, mais uma descoberta da The Stone and the Plot, após 24 anos desde a última vez que um filme de Mazuy se estreou por cá [Saint-Cyr (2000) no início do novo milénio], para relembrar a importância da distribuição enquanto proliferação cinéfila em vez da inócua compra e venda nos mercados. Especialmente porque Bowling Saturne é o tipo de filme que se cimenta no estômago e impossibilita a fluidez de pensamento no sentido em que cancela a circulação de oxigénio na sala, condenando aquele que já por ali andava a ser reciclado. Pode não aparentar, mas não há maior elogio que este ao filme.
A evolução no tempo presente do seu filme-irmão Peaux des vaches (Um Homem Marcado, 1989), a primeira longa-metragem de Mazuy, é um filme que se anexa ao corpo do espectador de forma parasitária, sentimento que perdura nas horas e até dias seguintes ao visionamento. Juntos, os dois filmes cavernosos constituem um double bill que para lá da narrativa, forma ou registo, traz ao de cima quem escolhemos ser enquanto humanos e cidadãos que habitam o mundo. Porque estes filmes pretendem ser, na sua forma mais singular, espelhos. E se Peaux des vaches apenas provoca e mostra os dentes, Bowling Saturne, após fermentação três décadas depois, tem unhas e ataca.
Posto isto, não é difícil de encaixar a violência muito explícita de Bowling Saturne num mundo tão selvático como o nosso (onde até um genocídio não é parado), o que também explica a preferência pelo cinema de conforto dos últimos anos. Só o regresso reaccionário da autoridade masculinista já o justifica, especialmente se mergulharmos fundo na assim tida ‘manosfera’, onde homens como Jordan Peterson, Paul Elam ou Roosh V. promovem a sua vitimização numa sociedade controlada pelas mulheres, dizem, pelo seu poder sexual sobre os homens, dizem, e onde pedem que as mulheres sejam legalmente violadas.
Estamos precisamente onde a misoginia vingativa e o anti-feminismo se alastram, dando lugar a um retrato sobre os horrores da masculinidade tóxica e como estes andam de mão dada com o supremacismo e populismo de extrema-direita.
Contextualizando o problema em França, especificamente – a prevalência da misoginia na cultura francesa tem vindo a assistir nos últimos anos à ascensão da violência sexual no país, algo a que já o austero e enxuto La Nuit du 12 (A Noite do Dia 12, 2022), de Dominik Moll, se tinha referido – encontra-se o monstro do apagamento emocional, da repressão e frustração masculinas, e um consequente convite à transgressão. Nas muitas imagens cinemáticas com que Mazuy nos vai presenteando neste seu filme, de um lenço a esvoaçar preso num vidro semi-aberto de um carro ao close-up do movimento corporal animalesco de um serial killer perdido na aniquilação da mulher que esfarrapa e destrói, estamos precisamente onde a misoginia vingativa e o anti-feminismo se alastram, dando lugar a um retrato sobre os horrores da masculinidade tóxica e como estes andam de mão dada com o supremacismo e populismo de extrema-direita. A única diferença é que esta franqueza tão clara e directa e sóbria é filmada por uma mulher dentro do registo do film noir investigativo (ou não estaríamos nós ainda em noirvember) sobre o desenvolvimento da patologia do assassino-caçador.
O título diz-nos logo ao que vamos. Bowling Saturno: não foi o deus Saturno que devorou os seus filhos recém-nascidos, tal era o receio que um deles o pudesse vir a destronar? Tudo começa então com a morte do pai de dois meios-irmãos que deixa ao filho adorado Guillaume (Arieh Worthalter), detective da polícia, um salão de bowling, o cão (dos únicos animais domesticados que aceitam com facilidade não pertencerem a si mesmos) e o apartamento a transbordar de roupa fetichista e taxidermia nas paredes. A Armand (Achille Reggiani, filho de Mazuy e neto de Serge Reggiani), o filho ilegítimo e segurança numa discoteca nocturna, é transferida apenas uma herança de violência que se espalha como uma infecção, transformando o medo e a perda de poder numa caça que este inicia pelo ser mais desejado (a mulher), oferenda ao falecido pai.
Na descida às profundezas da sua monstruosidade na pequena cidade de Calvados, arquitectura de tudo o que é reconhecível aos locais mas totalmente desconhecido, cinzento até, aos olhos do espectador, Armand torna-se gerente do bowling, a pedido de Guillaume que quer manter o negócio na família, e faz daquele lugar o cenário perfeito para a alimentação da sua caça nocturna. É activada uma vida clandestina, subterrânea. Na sombra do caçador, cada vez mais fortalecido pela caça, Guillaume começa a ver-se incapaz de agarrar a sua habitual vitalidade, já para não dizer reputação, enquanto procura um assassino de jovens raparigas. Sob o vampirismo de um irmão em relação ao outro, uma activista dos direitos animais Xuan (Y-Lan Lucas), começa uma relação amorosa (nunca ultrapassa uma tepidez insípida) com Guillaume, apesar de saber a sua ligação com o grupo de caçadores de animais selvagens que ela procura parar (o pai deles era um). Segundo o seu olhar conhecedor, o que melhor lê linguagem corporal, forma-se um derradeiro cubo de evidência (a activista e o polícia, o assassino de mulheres e os caçadores de animais selvagens). A coreografia? Uma de vida e de morte.
Dentro desse corpo dançante, Bowling Saturne desenrola-se no formato de uma boneca russa de corrupção e transmissão hereditária de homem para homem ao longo do tempo, durante o qual se dá uma confirmação antropológico-sensorial do que significa ser humano. No lugar da infantilidade do discurso antropocentrista, as imagens e signos de Bowling Saturne investem em metáforas directas (“a caça e o troféu”) que nunca indignam. A sua estética de filme sujo e digital, das imagens arrastadas pelo vermelho-sangue dos néons que enfeitam o salão de bowling como se se tratasse de um filme de Gaspar Noé (é esse trincar de língua, a dor e a mesma amargura que deixa na boca), contrasta com as cores básicas (os vermelhos, verdes e amarelos) de Peaux des vaches, onde o assalto é tão emocional que se torna histérico. Em vez disso, Bowling Saturne vai lentamente acordando para o acontecer de uma construção que decorre abaixo do solo.
Tudo se soma num brilhante estudo de personagens. Os actores pegam nelas e dão-lhes uma alma que roça o satânico. Cheira-se inclusive o enxofre da malevolência ritualista, e as imagens enevoam-se de tal forma que aparentam estar a fumegar enquanto por nós passam, como se a sua potência eléctrica fosse tal que o suporte não as tolera. Exemplos evidentes são as sequências mais longas e expositivas, as que partem até essa alma, momentos como o da visualização de uma compilação de vídeos da caça africana a animais selvagens, por exemplo, durante um jantar celebratório saído da idade média por um grupo de homens que são, por definição (como todos os caçadores), vencidos, ou nunca sentiriam a necessidade de se dedicarem a jogos de domínio e objectificação a seres sencientes, poderosos em toda a sua força, brutalidade e fome pela vida.
Esta sequência em particular fez-me lembrar o lado mais bárbaro do documentário Tardes de Soledad (2024), de Albert Serra (que poderá ser visto no Porto/Post/Doc no dia 24 às 21h45 e dia 26 às 16h45 na sala 1 do Batalha) que não só acena à morte do touro para que a possa filmar, como é conivente desse acto que parte a alma em dois quando o filma vezes incontáveis. Experiência curiosa esta, sempre que as imagens do que só pode ser considerado kafkiano se vêem projectadas num ecrã qualquer, e há que lidar com a espada de dois gumes da representação da violência, onde se se demove alguns espectadores, outros podem acabar incentivados. O cinema carrega consigo esse poder, independentemente da direcção ou do gaze do realizador.
Em relação a isto, nunca me esquecerei da passagem de Susan Sontag no seu livro Regarding the Pain of Others: “Há vergonha e choque em vislumbrar o grande plano do verdadeiro horror. Talvez as únicas pessoas com o direito de olhar para essas imagens de sofrimento tão extremo sejam aquelas que o consigam aliviar (…) ou aqueles que consigam aprender com ele. Os restantes são voyeurs, quer queiram quer não. Seja como for, o grotesco convida-nos a ser ou espectadores ou cobardes, incapazes de olhar.” Preocupação esta também para Mazuy, num filme ficcional que explora o massacre que faz do corpo do espectador material atacado, uma e outra vez, sem este se conseguir nutrir até à data de expiração das imagens instaladas debaixo da pele, e sem autorização. Tudo isto a caminho de determinar o que é que fazemos uns aos outros, dentro e fora da espécie, esse culto da morte. A supremacia do humano sobre o animal inocente e indefeso, que morre apenas porque existe, torturado às mãos do ser que carrega consigo todas as capacidades cognitivas para escolher não o fazer.
Algo brilha em Mazuy enquanto filma este seu exercício-campânula, quase como se estivesse contaminada pela estirpe da linguagem visual que desbloqueia e abre. A mesma que iluminou a década de 1970 no cinema norte-americano, quando tal como agora tudo era tão incerto, incontrolável, e o fim parecia mais perto do que até em tempos de guerra.
Dizia Mazuy à Bomb Magazine que num filme tão gráfico como o dela, a sequência do jantar do grupo de caçadores na pista de bowling é “tão violenta como a cena do crime”, testemunhada antes. “A violação e o assassinato, isso é crueldade física. Mas isto é crueldade mental. Ferocidade. Violência. É horrível. Eles amam aquilo, e nutrem absoluta certeza no poder da matança. Eles dão corpo à velha patriarquia”, afirma. Velha, mas presente também em gerações mais novas. Daí em diante, o filme começa a emitir calafrios, e voltamos ao conceito de família enquanto algo temeroso, da separação dos irmãos e resultante reencontro à imagem do pai morto, como acontecia em Peaux des vaches sob o signo de um western Pialesco (Maurice Pialat). Em ambos, analisa-se o grotesco que nos iguala e peneira-se aquilo que nos distingue. E há muito que nos distingue.
Pouco importa então mencionar que os nervos do movimento feminista circulam livremente pelo filme de Mazuy. É óbvio que sim. Ao contrário do que acontece com Serra, há comentário crítico e não há fascínio. Há força em segurar a verdade até ao fim, tal como ela é. Esse é o ponto de ebulição, aliás. Um que condiz com a realidade de, por exemplo, Gisèle Pelicot, uma mulher de 72 anos, a testemunhar no tribunal de justiça de Avignon, França, depois de ter sido sedada repetidamente (ao que chamam de “submissão química”) pelo ex-marido e violada por mais de 50 homens. Para além disso, algo brilha em Mazuy enquanto filma este seu exercício-campânula, quase como se estivesse contaminada pela estirpe da linguagem visual que desbloqueia e abre. A mesma que iluminou a década de 1970 no cinema norte-americano, quando tal como agora tudo era tão incerto, incontrolável, e o fim parecia mais perto do que até em tempos de guerra. A cineasta reconhece, ou não fosse ela uma mulher, o olhar do sadismo, da mesma forma que Xuan reconhece essa primitividade em todos os homens com quem se vai cruzando. Até naquele onde esperava não ver. Em retrospectiva, a febre que prende a repugnância pegajosa ao espectador regista o que constitui ser realidade. Com Mazuy a conseguir, no final, agarrar a malignidade de ser pelo pescoço.
★★★★☆