Há quem prefira ir ao cinema no horário mais tranquilo, num dia de semana, numa hora menos óbvia. Há quem prefira a sala vazia, onde o recurso a um kleenex pode passar indetectável, como há quem prefira um destino de férias no Inverno, um hotel quase vazio, o tempo agreste, a ausência de pessoas, o espaço próprio para derivas sentimentais solitárias. É a um ambiente assim circunspecto que é chegada a viatura que transporta Mathieu (Guillaume Canet), o protagonista de Hors-saison (A Vida Entre Nós, 2023). Ele é um actor de nomeada, o que significa que dificilmente consegue escapar às investidas mais ou menos asfixiantes de alguns dos seus fãs que integram o staff do hotel, abordagens pouco conjugáveis com o propósito de uma repousante estadia de talassoterapia. Mas enfim, talvez sejam esses episódios o único acontecimento que ajuda a quebrar a monotonia deste período de tédio forçado.
O cenário exterior, feito das praias ventosas da Bretanha, é puro contraponto invernoso de um conto de Verão rohmeriano (Rohmer a rimar com hiver), frio também pela ausência de pessoas, ausência de possibilidade de relações sentimentais que se formem, ainda que de forma passageira, como um amor de Verão. Já o cenário interior, feito de corredores alcatifados, luzes ténues e vidros que deixam entrar a paisagem, corresponde a uma revisitação de territórios coppolianos (Sofia, não Francis Ford), entre Lost in Translation (O Amor É um Lugar Estranho, 2003) e Somewhere (Somewhere – Algures, 2010), fazendo do hotel um labirinto absurdo para pessoas entediadas. Stéphane Brizé, que por tantas vezes se ocupou de personagens que vivem por e para o seu ofício, não resiste a mostrar o lazer como uma actividade algo ridícula, se não mesmo contranatura. O lazer e o trabalho confrontam-se rudemente, por exemplo, no mero teclar demasiado forte por parte da recepcionista ou na forma predatória como a massagista encaixa a sua selfie na rotina de trabalho da sala de massagens.
À semelhança do que sucedia em Lost in Translation, também em Hors-saison existem personagens que, embora ausentes (fazendo-se notar apenas pela voz que emana de um telemóvel), mostram a sua influência e condicionam fortemente a acção do protagonista. A ociosidade é embaraçosa, o que apenas dificulta ainda mais a necessidade de Mathieu enfrentar os seus medos e as consequências das suas acções, principalmente o facto de ter abandonado cobardemente os ensaios de uma peça de teatro prestes a estrear.
Mas nem todas as vozes que chegam pelo telemóvel permanecem sem rosto. A dado momento, Mathieu recebe uma chamada de Alice (Alba Rohrwacher) alguém que ele conheceu no passado, uma paixão antiga, e que justamente se encontra a viver naquela pequena cidade (uma cidade de tal modo pequena, que a notícia da chegada de um actor famoso não tarda a chegar a todos os ouvidos).
Aquilo que é dito pelos dois numa primeira conversa, à volta de um bule de chá, está não tanto nas palavras que dirigem um ao outro, mas mais em pequenos gestos ou sorrisos, nas inverdades, até mesmo nas pequenas irritações – uma implicação com a música que se ouve no estabelecimento, a revelar quer o nervosismo de Mathieu, quer a sua tendência para o egocentrismo. É, por isso mesmo, uma conversa tensa, porque é palpável que aquilo que haveria para ser dito ficou por dizer.
Brizé ensaia um Bildungsroman para a idade adulta, uma reflexão mais profunda sobre aquilo que é verdadeiramente a felicidade.
Tudo poderia ter ficado por aqui, uma breve conversa entre duas pessoas que perderam a intimidade, mas, como seria expectável, a vontade de voltarem a encontrar-se acabará por revelar-se irresistível. Só que já não possível voltar a ter uma primeira conversa entre estranhos – o reencontro implicará, necessariamente, o remexer de velhas feridas.
Do muito que ficou para trás, Alice guarda a amargura de ter sido a pessoa que foi abandonada, não a que abandonou. E a narrativa de uma família feliz, com um marido dedicado e uma filha maravilhosa, torna-se subitamente menos perfeita, com as mágoas infligidas a voltarem à tona. O riso de Alba Rohrwacher é aqui um riso de pranto, apoiado numa tensão das mãos, que tentam processar aquilo que o rosto não pode mostrar. Alice espera encontrar a resolução do passado com um pedido de desculpas, mas este é um curativo inconsequente face ao sofrimento que é, para ela, ainda presente, um sofrimento que chega mesmo a moldar a sua personalidade, como que uma nostalgia tóxica que não a deixa verdadeiramente avançar. Mathieu diz-lhe insensivelmente que “se calhar tinha de ser assim”, o que para ela é inaceitável, mas ela acabará por admitir que é ela o verdadeiro problema – ela própria é culpada do buraco em que se refugiou, convertendo-se em animal ferido coarctado na sua acção.
Mas desengane-se quem achar que o que aqui está em jogo é apenas a revisitação difícil de um amor passado. Brizé ensaia um Bildungsroman para a idade adulta, uma reflexão mais profunda sobre aquilo que é verdadeiramente a felicidade. Isso torna-se perceptível quando se acompanha as várias conversas em torno das quais gira a narrativa de Hors-saison. Em primeiro lugar, como já referimos, a conversa inicial no salão de chá, ainda sob o signo do desconforto de estranhos que já foram íntimos. Em segundo lugar, o vídeo que Alice envia a Mathieu, em que a sua amiga Lucette (Lucette Beudin) relata brevemente a história da sua vida amorosa, desde um casamento pouco entusiasmante, mais marcado pelo signo da amizade, uma vida inteira de resignação, até ao encontro com a sua companheira (o seu verdadeiro amor) já no final da vida.
Há neste relacionamento de Lucette uma certa serenidade amorosa que fascina Alice, mas que ela simultaneamente mostra renitência em aceitar, porque redunda na frase tão incómoda que Mathieu tinha proferido pouco tempo antes, “se calhar tinha de ser assim”. A felicidade pode acontecer tarde, ou muito tarde, ou nunca. Talvez as paixões intensas, que deixam marcas, possam ser parte de um caminho para uma serenidade emocional. A questão que se coloca, afinal, é esta: será esta serenidade a verdadeira felicidade? E será que a infelicidade faz parte da construção da felicidade?
Recuemos um pouco para a cena em que Mathieu procura pateticamente utilizar a máquina de café no seu quarto de hotel. Em lugar de rapidamente desligar a máquina, arrancando o fio da tomada, ou de retirar o depósito da água, ele entra em pânico, corre para a casa de banho e cobre a água derramada com toalhas. Se calhar ele precisa realmente de alguém que o sacuda, que o arranque dos seus estados de hesitação e medo, que o traga de volta ao pragmatismo. Na verdade, tudo indica que ele não funciona sozinho, em pânico perante uma máquina de café que ele não consegue fazer parar. Uma atitude não muito diferente da que adoptou face ao seu medo de enfrentar o público do teatro.
Por isso, a forma como encaramos a figura da sua mulher (que conhecemos apenas pela voz), é também sujeita a uma reavaliação. Se ela de início soa impiedosa, fria, mais tarde somos levados a pensar se ela não tem justamente o tipo de pensamento prático e eficiente que salve Mathieu das suas hesitações permanentes. Será que a relação entre Mathieu e a sua mulher não é a chave para um outro tipo de felicidade, uma sociedade bipessoal que produz sucesso, uma boa equipa? É uma conclusão que nem Mathieu, nem nós queremos aceitar, mas é justamente desta confusão entre resolução e resignação que Hors-saison se ocupa.
“La vie est lourde. Parfois très, très lourde.”
Da derradeira conversa entre Alice e Mathieu fica a ideia de que o passado não tem de ser sempre resolvido, por vezes tem apenas de ser encerrado. A conversa tem muito de falso, de artificial. Não há propriamente um desfecho, há a vontade de não remexer mais no passado ou tão somente reconhecer que esse remexer do passado não é frutífero. Ambos desistem de questionar a felicidade, desistem dos perigos de reavivar feridas antigas – por isso ela pede que ele não volte àquele lugar.
É um final que nada resolve ou que desiste de resolver. Numa variação do título do filme de Claude Sautet, deux cœurs en hiver.
Existe uma citação muitas vezes atribuída a Fassbinder, surgindo em mais do que um dos seus filmes, que diria que a felicidade não é coisa alegre. Na verdade, essa frase estava já na adaptação que Max Ophüls fez de Maupassant em Le plaisir (O Prazer, 1952). Na cena final, também ela num cenário de praia invernosa, é dito: “Mais, mon cher, le bonheur n’est pas gai.” Parece haver algo de equívoco nos caminhos da felicidade, apetecendo, para resolver esta charada, convocar o pragmatismo de Ingrid Bergman, que a dada altura afirmou que a felicidade mais não era do que boa saúde e uma má memória.
★★★★☆