Às vezes chegamos tarde a uma festa, e vemo-nos sozinhos a juntar os restos que ficaram no fundo dos copos, que é como quem diz, a ver se ainda conseguimos acabar bem a noite. Às vezes também chegamos tarde a um filme, e a relação que com ele estabelecemos é totalmente mediada pela expetativa criada, e pela pressão que pesa sobre a impressão com que iremos ficar. Pode dar-se o caso de, tal como na festa, o melhor ter ficado para o fim e serem as circunstâncias da razão do atraso na chegada à festa ou ao visionamento do filme, o que determina o contexto ideal para o encontro, na festa ou com o filme.
Assim foi com Jeanne Dielman, 23, Quai Du Commerce, 1080 Bruxelles, filme de 1975 visto pela primeira vez este mês, através da plataforma FILMIN, onde se guarda uma retrospetiva da realizadora Chantal Akerman (1950-2015). O seu visionamento coincidiu com uma outra sessão, agora em sala, de The Substance (A Substância, 2024), de Carole Fargeat, e, porque não, um e outro a serem extensões materiais da ideia defendida por H. G. Cancela em A Humanidade dos monstros (Relógio d’Água, 2020): “A realidade do conteúdo semântico de uma imagem ou de um texto é de ordem predominantemente representacional, existe como tal, sem nenhuma exigência da sua adequação ou transposição para o plano do real autónomo, prévio e alheio ao processo de representação.” (p.29-30).
Tentemo-nos pela explicação.
Jeanne Dielman… é a segunda longa-metragem de Chantal Akerman, e recupera o espaço, e a relação com o tempo da sua primeira curta, Saute la ville (1968) e até de uma média-metragem Le 15/8 (1973). A cozinha, o apartamento, o corpo e a relação com os objetos, voltam ao centro de um discurso sobre a ansiedade controlada, ampliado agora pela cor e a gestão geométrica do espaço. A personagem interpretada por Delphine Seyrig prepara o pequeno-almoço, o almoço e o jantar, acolhe o filho ao final do dia, cuida de uma criança em determinados dias, procura botões para casacos em lojas de revenda, compra carne, fruta e legumes, senta-se sempre no mesmo lugar num café onde já não precisa pedir, descasca batatas, faz café, e de vez em quando recebe homens, sendo paga depois de lhes dar o casaco, o chapéu e o cachecol. Depois, arruma a cama, toma banho e limpa a banheira.
O filme é sobre o tempo, o seu e o nosso. Numa partilha no Facebook, há quatro stills onde Akerman terá dito: “Quando as pessoas vão ao cinema, o mais elogioso é dizerem: ‘Não demos pelo tempo a passar’. Comigo, vemos o tempo a passar, e sentimos a sua passagem. Também se sente que é um tempo que conduz à morte. E é por isso que há tanta resistência. Eu tirei duas horas à vida de alguém.” O filme é sobre a nossa relação com o tempo que Chantal Akerman torna nosso. E, nesse contrato, vai gerindo o que deixa ver. Jeanne Dielman é o procedimento formal de autorização de acesso, mostrando-nos a casa – e, nela, a si mesma –, através de portas fechadas, luzes apagadas, objetos arrumados. Com isso, vão-se produzindo limites no acesso e à observação, através dos quais, confiamos, a personagem se vai relevando. Mas não. Sossegar-nos-ia pensar que, por causa do gesto final, Jeanne Dielman se escondeu o tempo todo e que, o que faz, só não contraria o que parecemos saber, porque é possível que tenha sido um impulso. Spoiler: ela mata um dos seus clientes. Por enfado, entusiasmada ou em reação ao seu comportamento, não sabemos, porque as últimas três horas foram de primeiro, observação, depois de desconfiança face a uma vivência sem identidade, depois de proximidade por aceitação, e, afinal, no fim, e ninguém diria, uma senhora que parecia tão simpática, nunca ouvi nada, muito educada, deixava lá o meu filho e tudo, nunca conhecemos ninguém, olha que realmente, ela sempre me pareceu esquisita, sempre tão calada, e aquele filho, pois, desde que o marido lhe morreu…. Porque é que o centro de Bruxelas, em 1975, haveria de ser diferente de qualquer entrevista post-mortem em 2024 num canal noticioso português?
Em Antropologia da vida material (Documenta, 2022), Filomena Silvano lembrava que “a casa foi sempre um lugar que as sociedades concederam às mulheres: as suas áreas de ação, os seus saberes e o seu poder desenvolveram-se em torno desse espaço.” (p.45). Chantal Akerman usa-a para nela construir uma relação com o espetador a partir daquilo que se pode imaginar ser aquela que, na altura, os espetadores teriam com Delphine Seyrig, então já atriz de Alain Resnais [L’année dernier à Marienbad (O Último Ano em Marienbad, 1961); Muriel ou le temps d’um retour (Muriel ou o tempo de um regresso, 1973)], Marguerite Duras [La Musica (1967)], François Truffaut [Baisers Volés (Beijos Roubados, 1968)], Luis Buñuel [La vie lactée (A Via Láctea, 1969); Le charme discret de la bourgeoisie (O Discreto Charme da Burguesia, 1972)] e a fada que salva a rapariga de se casar com o pai, em Peau d’âne (A Princesa com Pele de Burro, 1970), de Jacques Demy. Em paralelo, e para aquilo que importará para a história da cultura nacional, em 1974 Delphine Seyrig haveria de fazer um filme intitulado Les trois portugaises, onde lia em público excertos de Novas Cartas Portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, então censurado, e que levaria ao início da pressão internacional para a suspensão do julgamento que só se resolveria depois da revolução, coincidente, portanto com a saída do filme de Akerman. É deste feminismo, através de personagens que fustigam a ideia de uma mulher ao serviço de um papel social, que se alimenta o olhar de Akerman sobre Seyrig e o do espetador, assombrado pelo que este corpo, rosto, presença e discursos físico e imaterial pode fazer.
A ideia de uso do espaço privado para afrontar a perceção pública sujeita Jeanne Dielman a vários visionamentos, na tentativa especulativa de procurar indícios para o seu gesto, como se fosse habitado por maior racionalismo do que todos os outros de sobrevivência. O crime não ocupa um lugar de maior destaque num quotidiano repleto de gestos sem aparente rasgo. Talvez seja para provocar uma consequência, mas todos os outros o eram, também. Assim, é no julgamento moral da personagem que se desenvolvem hierarquias de representação e de perceção que determinam a relação que procuramos estabelecer com ela. Deixamos de a conhecer.
No ensaio Breve história do corpo e de seus monstros (Nova Vega, 2004), a antropóloga Ieda Tucherman escreve: “A questão da monstruosidade no corpo não estaria separada da noção de alma, já que o corpo é onde esta se aloja. Portanto, é da ‘natureza’ deste corpo que é preciso tratar. Como entender nele a irrupção de anomalias, as quais trazem o risco de tornar o homem estranho a si próprio, ou torná-lo animal, misturando os géneros que podem contaminar um ao outro, a alma (que é humana) corre o risco de deixar de existir. É preciso então reduzir a aberração corporal, assimilar o lado excessivo e desordenado da Natureza que não se deixa pensar segundo o dogma.” É aqui que, para mim, Jeanne Dielmann, 23, Quai Du Commerce, 1080 Bruxelles e The Substance se encontram.
O filme de Carolie Fargeat tem, como o de Chantal Akerman, um antecedente, a curta-metragem Reality + (2014, disponível na plataforma MUBI), onde a realizadora já explorava a substituição de corpos velhos por corpos novos, através de uma substância que, quando mal aplicada, produziria efeitos irreversíveis. Onde The Substance vai mais longe neste compromisso mefistofélico é no uso consciente de um corpo do passado cinematográfico, mais distante no tempo do que no caso de Delphine Seyrig, e com o qual a imagem física foi sempre, ou quase sempre, a resposta pública a ambições privadas. Demi Moore, centro nevrálgico de um filme sobre representação, perceção e duplicação, pertence a uma galeria de personagens femininas de um imaginário fálico, que a própria tratou de enfrentar em dois casos, pelo menos: no filme Disclosure (Revelação, 1994) de Barry Levinson, onde é ela a agressora sexual de um Michael Douglas acossado e inverosímil – depois de seduzir e sobreviver a Glenn Close [Fatal Attraction (Atração Fatal, 1986) de Adrien Lyne e Sharon Stone em Basic Instinct (Instinto Fatal, 1992), de Paul Verhoeven –, e em G. I. Jane (G.I. Jane – Até ao Limite, 1997), de Ridley Scott, onde enquanto candidata a comando, lança a resposta viril a um superior militar: “Suck my dick!”.
Onde Akerman procura empatia, Fargeat força a escolha. Onde Jeanne Dielman é redenção, Elisabeth Sparkle é compaixão. Entre uma e outra promessa de mudança, o mundo tratou de julgar a representação das personagens femininas com uma outra violência e um outro jogo sádico e exigente.
Demi Moore, como Delphine Seyrig, representou um modelo de atriz que, para o espetador, então como agora, traduz um percurso e uma filmografia autoral, desejada ou inadvertida, que as tornam matéria ficcional. É nesse campo que ambos os filmes se constroem, no preenchimento, pelo espetador, de uma presença que legitima as ações das personagens. Ieda Tucherman cita Michel Foucault para falar de “sociedades disciplinares, nascidas sob o capitalismo da concentração na produção e na propriedade”, ou seja, na produção de resultados e no sentido de pertença e necessidade de identificação. Explica a ensaísta que passamos a definirmos a partir de uma “assinatura que indica o indivíduo, pensado como identidade fixa, totalizada e definida, inclusive e principalmente para si mesmo, e o número da matrícula, que indica a sua posição na massa.” Esta relação entre uma identidade que se perceciona, e se pretende, como singular, entra em conflito com a imagem que projeta em coletivos concorrenciais que anulam, anestesiam e substituem uma singularidade por padrões comportamentais, emocionais e reativos em tudo supérfluos e velozes.
Demi Moore já se havia deixado representar enquanto objeto de desejo por inteiro em Indecent Proposal (Proposta Indecente, 1993) de Adrian Lyne, onde era moeda de troca para recuperação da hipoteca da casa, após a má mão do marido num jogo de casino; e exposto em Striptease (1996) de Andrew Bergman, numa mitificada e amplamente publicitada negociação do valor para mostrar o seu peito, num filme que usava o fetiche público sobre a atriz para defender uma personagem disposta a tudo para pagar as custas judiciais num processo de obtenção de guarda parental. Um e outro caso são, ao mesmo tempo, aviltantes do ponto de vista da exposição da mulher e, com o tempo, inocentes face ao que é hoje moeda moral de troca de um mesmo tipo de exposição. The Substance alimenta-se do que já aguentamos como espetadores, procurando dobrar e submeter essa passividade a um outro estado, o da repulsa. Onde Akerman procura empatia, Fargeat força a escolha. Onde Jeanne Dielman é redenção, Elisabeth Sparkle é compaixão. Entre uma e outra promessa de mudança, o mundo tratou de julgar a representação das personagens femininas com uma outra violência e um outro jogo sádico e exigente.
Se a “ficção surge como um modelo alternativo da relação entre representação e o real”, como escreve H. G. Cancela em A humanidade dos monstros (p. 45), a nossa relação com os filmes através da presença autoral das atrizes torna expectável o espanto em Jeanne Dielman… e natural a repulsa em The Substance, mas não deveria limitar um e outro a uma representação bidimensional da condição da atriz no cinema. Pelo contrário, torna material o desconhecimento que temos sobre o que se está a passar no ecrã: o resgate de uma ideia preformatada sobre como devem as personagens comportar-se. No mesmo ensaio sobre ficção, Cancela lembra: “Esta interação paradoxal da realidade com o possível revela a natureza das construções de índole imaginativa: elas agem pela subversão da relação linear que estabelecemos com o tempo e com a realidade: diferimos o primeiro, suspendemos e ampliamos a segunda, e em cada narrativa ou em cada imagem projetamo-nos onde ainda não (ou já não, ou nunca) estamos.” (p.47).
Em The Substance, a personagem de Demi Moore, Elisabeth Sparkle, desdobra-se numa outra atriz, Margaret Qualey, aliás, filha de Andie MacDowell, que se havia cruzado com Demi Moore em St Elmo’s Fire (O Primeiro Ano do Resto das Nossas Vidas, 1985), de Joel Schumacher, e é há anos rosto da L’Oreal, num exercício de controlo sobre a imagem e o envelhecimento que The Substance critica e amplia. O filme desenvolve-se de forma bastante previsível e risível: o desejo de permanecer jovem é atropelado pela impossibilidade de isso não implicar uma alteração no modo como a personagem se vê e se define. É o modo como o faz que o torna fascinante, revelante e importante. A compaixão vem da vontade de proteção de Demi Moore da imagem de si mesma, ampliada e projetada de forma obsessiva por todo o filme. Novamente do ensaio de H. G. Cancela, usando A Metamorfose, de Franz Kafka, como modelo: “Se a metamorfose tivesse transformado de forma absoluta a natureza do homem prévio à transformação, o resultado seria apenas um monstro fácil de eliminar.” (p.18). Não podendo voltar atrás, nem a personagem na sua escolha, nem a atriz no seu percurso, cabe-nos viver com o que resiste: a capacidade de superação.
Ora, precisamente, os tempos de espera para Jeanne Dielman são ocupados pela atriz Delphine Seyrig a, efetivamente, cozinhar e a limpar, depois comendo ou fingindo receber clientes. Os primeiros são atos reais, mesmo que para a câmara, os segundos são atos ficcionais: fingirá comer, finge prostituir-se. No caso de Elisabeth Sparkle, os tempos de espera quando a personagem é interpretada por Demi Moore são passados, curiosamente, a cozinhar e a limpar, a fingir que come, mas realmente a confrontar-se com a sua imagem dos anos 1990. O monstro que habita em si é, ao contrário de em Jeanne Dielman… a realidade, e essa realidade põe em causa, como escreve Ieda Tucherman, “a sua principal noção da realidade, tradicionalmente associada à presença tangível e ao suporte material”. Elisabeth Sparkle, a personagem, é o monstro em que Demi Moore, a atriz, se transformou, aos seus próprios olhos e na sua vontade de responder ao que lhe aconteceu pelo percurso. E se “todo o acto criativo implica que, num dado momento, o autor se desvie simbólica e inauguralmente da frente da obra para dar lugar ao espetador”, como escreve H. G. Cancela (p.38), ao contrário de Akerman, que conduz a personagem de Jeanne Dielman, em The Substance, Caroline Fargeat observa a personagem em que Demi Moore se transformou. No encontro entre os dois filmes, como o monstro preso ao seu próprio dilema, como Frankenstein, mais do que Dorian Gray, um espetador-observador, espantado e alerta para lá da imagem proposta ao longo de uma carreira real, como em Moore, e de uma semana ficcional, para Seyrig.
Para o argumento final, interessa menos o que fazemos com o choque de Jeanne Dielman… do que como nos comportamos perante o resgate feito com a vida profissional de Demi Moore. Entre o espanto promovido por Akerman, que diligentemente iremos tentar perceber numa segunda e seguintes visionamentos, e a vontade de ver, nos tropeções do percurso de Moore, sinais que legitimem, e defendam, as marcas simuladas nos prostéticos que lhe constroem um novo corpo, encontra-se o resumo daquilo que ambos os filmes projetam: a ideia de que somos apenas espetadores. Seremos, sobretudo, juízes moralistas que se creem inocentados de responsabilidade pelo modo como personagens e atrizes são definidas pelo tempo. E, por extensão, de como todo o debate sobre a representação, quando no feminino, é feito com lentes preconceituosas e superlativamente exigentes.