Este segundo tomo de aproximação ao épico monumental de Francis Ford Coppola, após um primeiro embate levado a cabo pelos walshianos Tiago Bartolomeu Costa, Tiago Ramos e Fernando Guerreiro, interroga-se sobre se o criador não acabou devorado pela criatura. E também sobre até que ponto a leitura do filme aparece deslocada no presente e aberta à possibilidade da revisita. O conflito no filme é o conflito do filme com cada um destes redactores walshianos: João Araújo, Luís Mendonça e Luiz Soares Júnior.
Numa entrevista recente a Apichatpong Weerasethakul no jornal Público, este afirma, sobre o seu próximo projecto, que “E se no fim não houver filme, está tudo bem”; Pedro Costa, noutra entrevista recente diz que “É algo que estou sempre a dizer, há filmes a fazer e há filmes a não fazer”. Talvez esse destino fosse melhor que a desilusão do embate com Megalopolis (2024), o mais recente filme de Francis Ford Coppola, obra que o realizador carrega há décadas como espécie de obsessão – talvez como ideia imaterial fosse assim recordado como um dos mitos do cinema moderno, como o projecto inacabado de Stanley Kubrick, que nunca achou ter os meios ou a abordagem ideal para filmar a sua versão de Napoleão. Não há aqui a fluidez narrativa dos filmes de Coppola de grande escala como The Godfather (O Padrinho, 1972) ou Tucker: The Man and His Dream (Tucker – O Homem e o seu Sonho, 1986), ou até The Rainmaker (1997, O Poder da Justiça); como também não existem os momentos de abstração sensorial que pontuavam Apocalypse Now (1979) ou The Conversation (O Vigilante, 1974). Se, com Megalopolis, Coppola procura chegar a uma espécie de narrativa-sensorial, fica-se pelo meio termo entre os dois: nem a narrativa é particularmente eficaz (ou sequer funcional), nem a ideia de um cinema sensorial consegue aqui desenvolver-se, perante a excessiva artificialidade de todos os elementos do filme.
É certo que é este um projecto pessoal que traz consigo anos de lutas difíceis e um peso simbólico para o próprio Coppola, pela forma como lhe foi negado o financiamento para o filme, colocando-o mais uma vez como um outsider do sistema de Hollywood, ele que sempre se atirou ao que lhe prometiam ser impossível, e nesse gesto há (ou podia haver) algo de resistência, numa espécie de teimosia (convicção?) artística que hoje em dia rareia. E não são poucas as vezes que o caos e uma falta de claridade acabam por resultar em filmes assombrosos – como será o caso do melhor filme de Coppola, Apocalypse Now – mas apesar da ambição desmedida, da escala grandiosa, e de alguma vitalidade e mistério que Megalopolis exibe a espaços, não há aqui qualquer reinvenção, este não é um novo Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941), não é um novo Metropolis (1927), nem é sequer perto de qualquer vanguardismo artístico, e tão pouco se aproxima da complexidade de Oppenheimer (2023), se quisermos pensar num exemplo recente de cinema popular de grande escala – parece antes um filme perdido da década de 1980 ou 1990, dos seus excessos visuais e falta de foco, perdido numa qualquer ideia de sublinhar a teatralidade e tragédia operática deste mundo.
A concretização do projecto de Coppola acaba por revelar-se antes uma mescla de referências que na sua desorganização sucessiva acabam por anular o seu efeito de um olhar com distância crítica e de retrospecção para a história e futuro da humanidade – não é apenas por evocar memórias de outros tempos ou outros filmes que se aproxima automaticamente delas. É tudo muito pouco subtil: o protagonista, que tem o poder de parar o tempo, tal como um realizador manipula o tempo enquanto estamos a assistir ao seu filme, é apenas um caricatura entre várias personagens em que o seu humanismo parece que ficou esquecido na ambição de emprestar solenidade através de gestos vácuos, que vivem numa espécie de circuito fechado distante de qualquer réstia de pessoas reais. O mais trágico é mesmo que (spoilers) depois de toda esta confusão, de pontas narrativas soltas, a visão final de Coppola de utopia ou revolução ou mesmo redenção é construir uma espécie de ilha de novos arranha-céus (embora com mais espaços verdes verdes e escadas rolantes), graças à enésima versão da visão única de um salvador magnata da tecnologia, que salvará a humanidade com algum tipo de invenção mágica – é afinal tudo mais do mesmo e os alicerces são demasiado frágeis.
João Araújo
O filme de Francis Ford Coppola dá a volta à famosa distinção avançada pelo crítico americano Manny Farber entre “arte térmica” e “arte elefantina”, propondo fundir o que antes estava separado para, desse modo, produzir uma “arte elefantina e térmita”: uma obra de enorme escala – já foram referidos os nomes de King Vidor e de Federico Fellini, o que não é, de facto, descabido – mas que, como o “megalon” (matéria de que é feita a cidade prometida), está permanentemente a desafiar qualquer traço linear ou forma estável e pura. Trata-se, então, de um épico ondulante e performático (o “cinema ao vivo” possível?) que vai trilhando um caminho, de maneira indecisa, pouco progressiva ou sem olhar para trás, mas sempre decididamente aberto à experimentação quase “plano a plano” (um grau de invenção, e até de desfaçatez mais ou menos escatológica ou decay, que também recorda Godard, de tal maneira que, parece, o filme nunca começa de facto, habitando um estado intersticial de “reinícios constantes”). É uma obra-ruína em que as condições de produção eram óptimas, em que o próprio realizador se congratulou pelo resultado obtido. Não haja dúvidas aqui do seguinte: tudo em Megalopolis é pensado e propositado, pelo menos até certo ponto, quer dizer, até “o bicho” ganhar forma e cometer suicídio.
Sabe-se que, durante a rodagem, a criação foi um acto contínuo, desenvolvida numa base diária pelo seu “cineasta-arquitecto-total”. Coppola sempre assumiu que, para realizar um filme, precisa de – ou acaba por – se converter em certa medida no seu protagonista (de Kurtz a César, passando por Harry Caul e Tucker). Aqui, a analogia entre o arquitecto construtor/destruidor de mundos e o cineasta é bastante evidente. Mas Coppola deu-lhe mais uma volta, complexificando o discurso, pois para realizar este filme o cineasta tornou-se a matéria-prima da utopia que embala o sonho (e a loucura) do seu protagonista: o “megalon”. E o filme é uma promessa dessa cidade “megalónica” ou – daí a frustração intensa que possa gerar – a promessa da promessa da promessa dessa utopia chamada “Megalopolis”. E também é um manifesto em defesa de alguém – uma espécie de “chosen one” pós-The Matrix – que possa “corporizar” e assegurar a edificação de uma ideia de futuro radicalmente nova. Concedo que Megalopolis é tanto sobre “os amanhãs que cantam” quanto sobre este nosso presente em chamas, vivido debaixo do “fake empire” americano: como diz César ou Driver (um dos vários actores perdidos nas suas personagens, com a devida excepção a ser feita para Aubrey Plaza e para um esforçado Shia LaBeouf), a utopia é uma forma de questionamento. Pois o dito cineasta-arquitecto-total “bancou” com 200 milhões de dólares a sua utopia para nos deixar, no fim e na pior das hipóteses, muito confusos ou, na melhor das hipóteses, imbuídos desse espírito “questionador”. Ou então ficamos tão interrogativos quanto confusos.
A meu ver, o principal problema de Megalopolis prende-se com o facto de corporizar uma arte elefantina e térmita consumida por si mesma, até ao ponto da (involuntária?) auto-paródia. A maneira como a narrativa é triturada, elidida, “atropelada”, virada e revirada contribui para que o questionamento nunca supere, pelo menos de maneira muito produtiva, o dito “estado de confusão”. Era importante haver uma dramaturgia qualquer que unisse algumas pontas deixadas soltas; que nos mantivesse “dentro do filme” e não permanentemente “de fora” a tentar conferir sentido a esta proposta, até certo ponto, ensimesmada beyond repair [como ensimesmados são outros filmes realizados por Coppola neste século, de Youth Without Youth (Uma Segunda Juventude, 2007) a Twixt (2011)]. Veja-se como os “nós” da narrativa são rapidamente desatados ou vão sendo esquecidos e negligenciados com o avançar da história. Por exemplo, a maneira como Coppola despacha a personagem de Dustin Hoffman é só “cringe”, de uma total falta de respeito para com a história que narra e para com um espectador que não quer ser como o protagonista, quer dizer, só “anal”.
Seria tentado a emparelhar este filme de Coppola, estrondoso flop comercial, com Oppenheimer de Christopher Nolan, um estrondoso sucesso comercial de Hollywood: de um lado, o construtor de mundos num filme em cacos, “arruinado”, que não nos permite o acesso ao interior do protagonista (porque este é preguiçosamente usado e descartado) e, do outro, um destruidor de mundos numa obra moldada – forjada em chamas – pelo mundo interior do protagonista (o seu génio instável e as suas fobias face àquilo que criou ou àquilo que “libertou”, sentenciando o fim de todas as utopias sorridentes, como a que o filme de Coppola acaba por materializar naquele final muito “we’re the world, we’re the children”). Com a ajuda de outro filme ou não, porventura no futuro iremos reavaliar de outro modo esta obra, mas, ao contrário de quem a defende com unhas e dentes, não creio que seja produtivo fazê-lo nos próximos 100 anos, quanto mais e somente daqui a uma década. É que não será nada fácil de suavizar e de assimilar o efeito de tamanha choldraboldra cinematográfica.
Luís Mendonça
Em uma cena que entrou para a posteridade do teatro elizabetano como seu nec plus ultra de interdito, o duque de Albany, marido de Goneril no Rei Lear de Shakespeare, arranca o olho de Gloucester, fiel servidor do rei; como mostrar esta cena no teatro antigo em sua integridade pornográfica sem quebrar a quarta parede, danificar o corpo do ator, corromper a transparência do Logos clássico, que desde os gregos resolve tudo segundo o metro da palavra? O teatro precisou esperar pelo cinema, a anos luz de seu avanço técnico, para que o olho de Gloucester, no Salò (Salò ou Os 120 Dias de Sodoma, 1975) de Pasolini, possa ser devidamente arrancado à luz e mostrado, na mesma bandeja de prata que recebeu a cabeça de João segundo a solicitação de Salomé, para o espectador devidamente avisado. Em Megalopolis, filme acadêmico que vive menos do que conta e mostra do que de suas pretensões vultosas e vácuas, Coppola paga o preço do interdito no teatro clássico e desfigura, sob o impacto do tiro dado pela criança, o rosto de César Catilina. A desfiguração do personagem abre uma cratera na narrativa que terá como correção épica a sua fanfarrônica vitória final, mas o que me chama a atenção é a desfiguração maior – de conjunto, se assim o quiserem – que Coppola impõe a fórceps a um épico neo-clássico (cujas coordenadas figurativas já nos haviam sido dadas pelo arquiteto da Berlim nazista, Albert Speer, e diante do contexto diegético da neo-Roma descrita em Megalopolis esta blague não é descabida) a fragmentação narcisista da atomização barroca. Nada, pelo menos até o atentado a César, encontra uma unidade, um contrapeso sólido no découpage, uma continuidade fatal; quase tudo, no totêmico elefante branco de Coppola, é obra do estilhaço, da fixação no detalhe histérico e estridente, objetos parciais de uma constelação abrasada por um frisson Jugendstil; como Hitler da pós-modernidade imorredoura, Coppola repete os Césares (Nero, para ser mais catastroficamente legítimo), mas em chave de fragmentação bulímica: a totalidade-Bild lhe é estranha, como o gosto ao artista naïf alemão; mas antes de Hitler houve Napoleão. Ao constructo megalômano de Coppola, não nos faltam os séculos que nos contemplam ou o ad gloriam non est satis unius opinio (para a glória, a opinião de um só não vale) de Sêneca, e não do deliquescente Ovídio como no filme, como do Temps, suspends ton vol! de Lamartine; eu também poderia citar aqui as páginas gloriosas de Manny Farber em que descreveu as características da arte peso pesado elefante branco, mas poupo-vos de desvios, honoríficos embora: Megalopolis é um filme que busca a modernidade de sua rentrée neo-clássica no fragmento, e nisto acerta pelo menos como petição de princípio, mas teses ou intenções justas nunca fizeram bom cinema. Porém, como elevar e enlevar uma cauterização contemporânea sobre um corpo putrefato, grandiloquente espécime de ode academicista aos dons mefíticos de prestidigitador pós-maneirista? Sabemos do que Coppola foi capaz, na história do cinema, ao estabelecer paradigmas do maneirismo como One from the Heart (Do Fundo do Coração, 1981) e Rumble Fish (Juventude Inquieta, 1983), arte povera barroca de quilates incomensuráveis, mas é justamente por esta razão que Megalopolis me soa um arroto adstringente do pior academicismo, flatus vocis intempestivo: a sua estatura mastodôntica é um destino melancólico para quem um dia soube usar do artifício retórico para encontrar a alma na figura, e não espojar-se em sua unção fetichista; sabemos dos milhões desperdiçados do próprio bolso do autor para investir nesta calamitosa releitura dos clássicos natimortos, e prova maior da certeza que sempre foi minha de que a pobreza (austeridade, litote, menos é mais: chamem como quiserem) é a mais excelsa das inspirações da arte, poiésis que vive da conjunção entre Terra e Mundo, ou iluminação e trabalho, não existe.
A entrevista televisiva, no início do filme, com Hamilton Crassus nos revela tudo de antemão: “Ser rico significa foder com tudo”. Megalopolis, do alto destes decênios que nos contemplam desde o peixinho colorido e as canções desafinadas caméra stylo de suas maiores obras maneiristas, é um filme raté e um ultraje cultural encharcado de pedantismo porque acredita na osmose da grandeza clássica passada como o Sésamo de uma herança a que o atual Coppola não sabe fazer jus. Demasiado pensado como Fragmento primordial, como constelação virótica de uma unidade impossível, como épica tardia; isso existe? O confronto entre o idealismo de Catilina (idealista em demasia para estar vivo, segundo uma ironia que desponta aqui e ali) e o maquiavelismo do prefeito Cícero é a cortina de fumaça para uma impossibilidade do filme de dar conta da dicotomia, outrora cantada pela querela entre os antigos e os modernos, entre classicismo e modernidade. Megalopolis escolhe o meio-termo da miscigenação impossível, e não sabe dar conta desta; como na intuição do jovem Marx, a sua tragédia é uma repetição que volta como farsa (involuntária, acrescento eu): o banquete do Satyricon de Petrônio reconfigurado por uma nota de rodapé de Zizek.
Esperemos que esta semente lançada pelo grande outrora auteur, venerado por milhões de analfabetos fonéticos cada vez menos capazes de articular uma sentença significativa, não vingue; disse acima da ruptura, narrativa e figurativa, introduzida pelo atentado a Catilina, assim como daquilo que a princípio seria ponto positivo do fragmento, quando visto (modelo à la drama barroco alemão) sob uma perspectiva contemporânea de reação, encarnada numa sequência de cinema, às totalidades passadas, em sua majoritária graça sob a égide do histrionismo; mas o que não disse é que o Megalopolis de Coppola se reage à pressão da totalidade neo-clássica com seus estilhaços de detalhe, split screen astênico no final e performances aqui e ali, pertence de fato e de direito a um projeto totalitário da subjetividade entronizada, e como todo projeto de autorismo demi-faisandé (como traduzir? Refiro-me às carnes semi-apodrecidas que ontem serviam de pasto aos marqueses desdentados da França profunda) está condenado pelo zeitgeist contemporâneo: a repetição estratégica do detalhe, a sistematização do fragmento servem ao Mesmo do academicismo triunfante, ao Projeto como dito acima. Coppola, em Megalopolis, não conhece por exemplo o valor da digressão e da performance estruturais (avatares de certa contemporaneidade pós-suspeita) porque está preocupado demais com a própria Ideia para se dar conta de que existem o Mundo e o Outro.
Luiz Soares Júnior