Estreado na altura em que a pandemia deixou de ser manchete diária e as restrições sobre as liberdades individuais diminuíram, Smile (Parker Finn, 2022) sintetizou os dois anos da COVID-19 de um modo justo: através de uma parábola aterrorizadora. A protagonista do filme é Rose Cotter (Sosie Bacon), uma terapeuta que trabalha na ala psiquiátrica de um hospital. Pelo que nos é dado a ver, grande parte da sua rotina consiste em dizer aos pacientes que as coisas que lhes parecem reais não passam de ilusões, dir-se-ia de projecções, para utilizar um termo cinematográfico, das suas mentes desequilibradas. Certa tarde, Sosie recebe, de urgência, uma paciente claramente perturbada – a rapariga diz estar sob a influência de um ser maligno que a faz ter visões. A jovem está a enlouquecer porque é acometida por imagens de pessoas a sorrir, mas não um sorriso hospitaleiro e amigável, não o tipo de sorriso que costuma ser acompanhado de um bom dia ou de um aceno cordial, mas um sorriso empedernido e sinistro, sendo que o que faz o sorriso ser sinistro é precisamente a sua qualidade fotográfica, isto é, estática.
Contudo, as imagens que a paciente vê agem sobre a realidade. Por isso, quando é confrontada pela psicóloga com o bordão de que as coisas que se lhe afiguram reais não passam de delírios consequentes da exaustão, a rapariga garante que não está a alucinar, porquanto as pessoas sorridentes atacam-na e são capazes de destruir o que a rodeia. Ou seja, a rapariga pergunta à terapeuta como é que as imagens podem ser imaginadas se o dano que causam é inequivocamente real. A paciente diz ainda que os episódios começaram há poucos dias, na sequência de ter testemunhado o suicídio de um professor. De acordo com a jovem, o homem sorria-lhe enquanto martelava o próprio rosto até à morte. A consulta termina subitamente quando a rapariga replica o comportamento do professor, suicidando-se à frente da psicóloga, mais concretamente cortando o rosto e a garganta com um estilhaço de vidro, isto enquanto esboça um sorriso rasgado.
A entidade maligna não é conjurada por um feitiço nem possui a vítima através de um objecto amaldiçoado. A acção do ser demoníaco depende de uma transmissão e, nessa medida, assemelha-se mais a um vírus do que a uma criatura paranormal. A paranóia do contágio; o medo de transmitir a maldição a alguém que se ama; o terror de lutar contra um organismo que se incuba durante dias e depois se manifesta, sem explicação, apoderando-se do corpo, forçando-o a atacar-se – no Outono de 2022, quando o filme estreou, estes elementos causavam estranheza e familiaridade porque, em certa medida, todas as pessoas, em maior ou menor grau, tinham experienciado algo da mesma ordem. No que diz respeito à transmissão, a diferença é que a entidade maléfica se propaga por via do olhar, o que faz sentido, uma vez que a sintomatologia descrita pelas vítimas enfatiza a incidência de visões, delírios esses que reportam para episódios traumáticos que as vítimas testemunharam. O olhar está no cerne do mal e a ideia subjacente é a de que o que vemos gera imagens mentais que se apoderam de nós.
Em Smile 2, Parker Finn continua a caracterizar a entidade como um vírus que se propaga através do olhar, mas, desta feita, é destacada a importância da imagem mediada por dispositivos digitais no processo de contaminação e incubação do ser demoníaco.
Esta tese é sintetizada no final de Smile. Depois de uma semana em que é atacada por visões idênticas às que a sua paciente relatou, o que a faz perceber que o imaginado tem um estatuto de realidade próprio, Rose imola-se à frente do ex-namorado. O último enquadramento consiste num plano-detalhe de um dos olhos do rapaz e, na sua retina, vê-se reflectida ou, melhor dizendo, impressa, a imagem da protagonista em chamas. Smile deixa claro que não existe tal coisa como ver à distância, uma vez que o que observamos nos toca, se introduz no e pelo olhar, e germina nas nossas visões interiores. Smile 2 (2024), do mesmo realizador do primeiro Smile, Parker Finn, continua a caracterizar a entidade como um vírus que se propaga através do olhar, mas, desta feita, é destacada a importância da imagem mediada por dispositivos digitais no processo de contaminação e incubação do ser demoníaco.
Skye Riley (Naomi Scott) é uma estrela da música pop que está habituada a ter a sua imagem capturada, reproduzida e difundida pelos media. No último ano, a cantora foi alvo de uma cobertura mediática sufocante depois de ter sofrido um acidente de automóvel que sinistrou o namorado e a deixou gravemente ferida. Acontece que o casal conduzia sob o efeito de drogas e álcool, pelo que a reabilitação física de Riley, que ficou com uma extensa cicatriz vertical no ventre, foi complementada por uma desintoxicação, um dado irónico, visto que a rapariga está viciada em opióides para as dores.
Portanto, a cantora deseja recuperar a imagem junto dos admiradores e dos patronos da indústria da música. Porém, acontece que a sua imagem não é sua, conforme demonstram as sequências em que Riley aparece na televisão, seja a dar uma entrevista nas Tardes da Júlia norte-americana, seja nos noticiários que comunicam o seu retorno ao mundo do espectáculo. A imagem de Riley pertence ao espaço mediático. É pertinente que a protagonista, uma rapariga perseguida por visões que a fazem comportar-se excentricamente, seja uma celebridade e, por isso, seja alguém com especial visibilidade no espaço público. Essa exposição deixa-a vulnerável porque assim que Riley começa a agir de forma bizarra, o que não demora muito, em virtude de ela ver pessoas sorridentes a atacarem-na, esses comportamentos são observados, filmados e difundidos pelas redes.
Neste sentido, o vírus ataca-a duplamente: faz com que Riley tenha episódios maníacos, assim como destrói a imagem de sobriedade que a cantora quer difundir, dado que a rapariga é vista a comportar-se fora de si. A sensação de que Riley está constantemente a ser observada é acentuada pela personificação dos objectos. Existem vários planos que partem do ponto de vista de objectos aparentemente inanimados e esses enquadramentos tendem a figurar a protagonista em grande-plano. O caso mais recorrente são os planos filmados da perspectiva do telemóvel da cantora enquanto esta o utiliza.
Por um lado, dar um ponto de vista a aparelhos como telemóveis reforça a ideia de que os dispositivos de mediação de imagem têm agenciamento e fazem parte da economia de olhares do filme. Por outro, o enfoque nestes dispositivos, que também são vistos pela rapariga, uma vez que existem vários planos na primeira pessoa de Riley que a mostram a manipular o telemóvel, salienta que o transtorno psíquico e óptico da cantora resulta da utilização frequente destas tecnologias. Aliás, os dispositivos mediadores de imagem contribuem de modo decisivo para a progressiva descrença de Riley naquilo que vê. Numa cena, Riley vê na tela do telemóvel mensagens que, na realidade, nunca foram enviadas e, num outro episódio ainda, a tela hologramática de um teleponto precipita uma das maiores humilhações públicas da cantora.
À semelhança do que acontece no primeiro filme, Smile 2 obedece a uma dinâmica pendular que oscila entre a alucinação e a recuperação dos sentidos. Desta forma, os episódios de delírio tendem a ser seguidos de cenas em que a protagonista, agora consciente de si, se apercebe da degradação da sua saúde mental e do perigo que representa para os outros. Embora o compasso do pêndulo vá crescendo, com os episódios maníacos a dominarem grande parte da acção a partir da segunda metade, a mecânica interna da narrativa é repetitiva, o que desgasta o filme. Por isso, a certeza de que um momento de alucinação será sucedido por um despertar para a realidade cria uma previsibilidade que esvazia, em parte, a potencialidade aterradora da experiência.
Parker Finn leva a dinâmica assente no despertar para a realidade até à sua conclusão lógica: no final Riley compreende que as experiências vividas não passaram de um pesadelo. Na verdade, a cantora está prestes a dar o concerto que marca o seu retorno aos palcos. Por norma, este tropo que designa que tudo não passou de um sonho é frustrante, na medida em que torna inconsequentes os acontecimentos representados durante o devaneio. Muitas vezes, a utilização deste dispositivo narrativo é nada mais que um sintoma de cobardia, visto que remete o inexplicável e o fantasioso para o domínio do sonho, salvaguardando, assim, a realidade, que se mantém ordenada.
O realizador pode não dominar algumas das técnicas que utiliza, como é o caso do plano-sequência que dá o pontapé de saída ao filme, e pode ter uma ânsia excessiva de ser vistoso, mesmo que isso implique algumas deficiências, contudo, vê-se que no seu cinema a imagem expressa um pensamento.
No entanto, não é este o caso. Ao passo que o vírus se expressava pontualmente na mente de Rose, a protagonista do primeiro filme, Riley padece de um delírio contínuo, o que significa que, afinal, os momentos em que a personagem recuperou os sentidos não passaram de ilusões. A estratégia do vírus, e do filme, consiste em desorientar a rapariga, e o espectador, fazendo-os perder a percepção do real e do imaginado.
Em suma, a maioria de Smile 2 é constituído pelo filme que o vírus projecta na mente de Riley, um filme repleto de ilusões aterradoras e despertares agitados, que a rapariga experiencia como sendo a realidade. O cinema como um devaneio real. O filme que o vírus produz e reproduz na tela de cinema interior da protagonista encena os seus piores pesadelos, estando estes arreigados em crenças que a cantora tem sobre si, nomeadamente a convicção de que magoa os que ama, de que está a ser observada, de que a sua melhor amiga a odeia, de que irá desperdiçar a sua segunda oportunidade de alcançar o estrelato ao comportar-se erraticamente, e, por fim, de que irá ser obrigada a actuar apesar de querer abortar o regresso aos palcos devido ao desgaste mental.
As alucinações de Riley são feitas à sua medida e não apenas porque se alimentam dos medos e memórias traumáticas da rapariga. Em vários episódios, os delírios criados pelo vírus têm qualidades formais que reportam para o ambiente artístico da cantora. Uma das alucinações ocorre durante um ensaio musical e existe ainda uma cena em que a protagonista é perseguida no seu apartamento por uma multidão de pessoas sorridentes que se movimentam com se pertencessem a um grupo de dança. A aproximação a uma estética do espectáculo, da dança, e até do videoclipe revela uma congruência entre o milieu da narrativa e a forma, bem como demonstra a curiosidade de Finn, que deseja experimentar vários registos. O realizador pode não dominar algumas das técnicas que utiliza, como é o caso do plano-sequência que dá o pontapé de saída ao filme, e pode ter uma ânsia excessiva de ser vistoso, mesmo que isso implique algumas deficiências, contudo, vê-se que no seu cinema a imagem expressa um pensamento.
Quando a projecção do filme na mente de Riley termina e ela finalmente desperta, a cantora descobre que a realidade se assemelha aos seus pesadelos. A rapariga sai de uma cápsula com uma forma de casulo e apercebe-se de que está no palco do Madison Square Garden, na noite de estreia, no preciso segundo em que o concerto vai começar. Riley está sozinha e todos os olhos estão centrados em si. O plano que parte da perspectiva de Riley dá a ver uma multidão de admiradores que apontam, ameaçadoramente, os telemóveis na sua direcção. Não se vêem os olhares porque todos eles estão a ser mediados pelos dispositivos. Então, a protagonista vê diante si a sua própria imagem, sorridente. No momento em que Riley é o objecto do olhar de milhares de pessoas e dispositivos, a cantora vê-se enquanto outra, enquanto imagem divorciada de si, enquanto objecto. A dupla da rapariga coloca as mãos no ventre e rasga a carne pela cicatriz. De dentro da rapariga, transformada em casulo do vírus, sai um ser monstruoso com um aspecto esfolado. O ser não precisa de pele porque usa a dos outros. O monstro aproxima-se, mete as mãos na boca da cantora e dilacera-lhe a cara para nela se introduzir.
Corta-se para um plano-geral, para um ponto de vista tido como objectivo, e compreende-se que somente Riley vê a entidade maligna, pelo que o público no recinto vê a cantora a espernear-se no chão. As convulsões param repentinamente e a cantora levanta-se com um sorriso rasgado. Os ecrãs gigantes da sala de espectáculo projectam a imagem da rapariga em grande-plano. O enquadramento seguinte é filmado a partir do ponto de vista de Riley, ou seja, do vírus que habita e comanda o seu corpo. Vê-se a multidão com um ar preocupado – uma imagem que reflecte a aparência dos espectadores na sala de cinema. De súbito, as pessoas começam a gritar, horrorizadas com o que estão a assistir: o suicídio da protagonista. O último plano mostra a rapariga caída no palco com um microfone enterrado no olho direito, mas com o olho esquerdo aberto, vítreo, e com um sorriso de anúncio de pasta dentífrica no rosto. Seguindo a lógica de contágio do vírus, que é transmitido quando uma pessoa testemunha o suicídio de alguém infectado, os presentes no concerto foram contaminados. A questão é que, desta vez, o suicídio foi filmado, pelo que se espera que as imagens do acontecimento sejam difundidas pelo espaço mediático, dando origem a um contágio de escala mundial. A transmissão dar-se-á pelos dispositivos e pelo olhar e a morte dar-se-á pela imagem.
★★★☆☆