Have you ever dreamt of a better version of yourself? Younger, more beautiful, more perfect.
Às vezes, aparecem filmes que se riem face à ideia de subtexto e estão pouco interessados em criar alusões subtis ou em temáticas subjacentes. A câmara de Coralie Fargeat não está para brincadeiras — mesmo quando manda o patriarcado passear com sentido de humor. Ver The Substance (A Substância, 2024), de Coralie Fargeat, é ver uma realizadora em perfeito comando da sua mensagem e da estrutura formal com que a constrói. Ver The Substance é também uma experiência quase bizarra em termos do quão directo se consegue ser ao explorar um tema. Neste filme existem metáforas, inspirações e homenagens [Kubrick, Hitchcock, Lynch, Requiem for a Dream (A Vida não é um Sonho, 2000), Death Becomes Her (A Morte Fica-vos Tão Bem, 1992], mas o filme é incrivelmente agressivo na forma como nos apresenta a sua história e a sua tese — e digo isto não como algo negativo, mas com certo tirar-do-meu-chapéu. É preciso audácia. E Coralie Fargeat, realizadora de Revenge (Vendeta, de 2017), tem audácia. Mas a audácia está também presente nas performances de Demi Moore (Elisabeth Sparkle) e de Margaret Qualley (Sue), dando a primeira um genuíno tour de force. Moore é um dos exemplos mais icónicos dos hardbodies femininos dos anos 1990 e é aqui o gatilho da meta-qualidade desta narrativa. Pensamos nos filmes Indecent Proposal (Proposta Indecente, 1993), Striptease (1996) e pensamos que não é por acaso que Coralie Fargeat a escolheu.
Neste filme, a câmara produz vertigens e é magistral na forma como cria a experiência, ao ver em sala, da ideia de quão aprisionante pode ser… uma mulher dentro de um sistema patriarcal e capitalista. The Substance não é elegante, não é povoado por muitos actores, nem sequer tem muitos cenários. Quase tudo se passa numa sala com uma vista demasiado technicolor sobre Los Angeles, num corredor remanescente de Stanley Kubrick e numa casa de banho igualmente kubrickiana, com um salpico de Hitchcock. Fargeat tem as referências, é claro, mas nada neste filme poderia ser acusado de ser filmado de forma clássica. Fargeat é feroz. Fargeat definiu para o seu cinema um feminismo em letras maiúsculas que não dá descanso nem tem tempo para subtilezas. O uso do design de som tem algo do estilo ASMR que povoa a Internet, mas a sua implementação é antitética. Se o ASMR prima por uma sensação de conforto, Coralie Fargeat usa o som como arma de desconforto e repugnância. O som diz-nos que estamos perante algo que vai ser visceral e incómodo. Este é o reino do body horror e não de cócegas cerebrais agradáveis.
Não há espaço para subtexto, mas esse nunca foi o objetivo. O cinema de Coralie Fargeat não é bisturi, é martelo de forja.
A substância que dá título ao filme é apresentada como a tech-ificação da beleza e Coralie Fargeat pega na ideia de “uma melhor versão de si própria” sob a qual toda a indústria da beleza feminina assenta — e não nos esqueçamos nem por um segundo o quanto esta está impregnada por ideias patriarcais de “prazo de validade” ou de horror à velhice —, levando até às últimas (e leva mesmo até às últimas) consequências essa ideia, com roupagens sci-fi.
Começamos com um close-up na construção de uma estrela no famoso Hollywood Walk of Fame que é atribuída a Elisabeth Sparkle e que vemos, com o passar dos anos, a transformar-se numa iconografia vazia de sentido. Quando chegamos à cara-que-deu-origem-à-estrela, Elisabeth Sparkle está a fazer 50 anos e é ainda a vedeta de um programa de aeróbica que pisca o olho, esteticamente e não só, ao de Jane Fonda nos anos 1980. Este aniversário torna-se a data em que o produtor mais horrorosamente retratado no cinema protagonizado por Dennis Quaid a relega a figura passée (deveriam escrever-se ensaios sobre a maneira como Fargeat o filma a comer camarões, transformando-o no quintessencial gross man de Hollywood). Aos 50 é quando a vida de uma mulher acaba — aos olhos deste homem que funciona como porta-estandarte do male gaze — e deve, portanto, ser substituída pela sua nova versão, qual computador que já está obsoleto. Transtornada com a ideia, Elisabeth Sparkle é distraída pela visão de trabalhadores que tiram a sua imagem de uma painel publicitário e sofre um acidente que poderia ser mortal, mas do qual escapa ilesa. Frágil com toda a situação, é abordada por um jovem enfermeiro perturbadoramente bem esculpido de cara, que lhe dá a primeira pista para o resto do filme: uma pen USB que a aponta para a substância. O produto aqui promovido é um kit: primeiro, uma injeção que cria um duplo, uma nova pessoa arrancada do corpo da original (a “matriz”). Eis que nasce a beleza ideal de Sue , a dupla/”filha” (porque há uma questão geracional envolvida, inevitavelmente) de Elisabeth, a versão mais nova e melhorada de Elisabeth. Mas as duas são uma única, adverte o kit. E é obrigatório que troquem de lugar a cada sete dias. As consequências? Significativas para a matriz, mas também para este corpo duplicado e melhorado. Elisabeth e Sue devem coexistir pacificamente, mas tal torna-se impossível. À medida que Sue avança nas suas ambições devido aos privilégios concedidos (mas amaldiçoados) pelo seu novo corpo, logo se vê a desrespeitar as regras.
It gets harder each time, to remember that you still deserve… to exist! That this part of yourself is still worth something! That you still matter!
Gostava de parar aqui para dizer que há, apesar de tudo, uma certa necessidade em falar do uso da sátira da mesma maneira como devemos frequentemente pensar sobre o cinema de guerra, especialmente no que toca à facilidade com que usar a sátira pode correr o risco de fazer resvalar o carro metafórico estrada fora. Até que ponto é eficaz ou até que ponto é que a representação no grande ecrã glamouriza ou romantiza aquilo que é representado, prejudicando a tese que se está a delinear? Truffaut levantou a questão sobre a probabilidade de todos os filmes sobre a guerra acabarem por fazer precisamente isso. Assim, no que toca a The Substance, é justo levantarem-se questões face à exibição grotesca do corpo feminino, especialmente no que toca à forma como a câmara se demora em Sue. Há, de facto, uma objectificação gritante do corpo feita pelo olhar da câmara do filme, das câmaras no filme e pelas próprias personagens do filme, incluindo a possuidora do corpo em questão. Mas aqui, a ironia, a sátria são o ponto fulcral, o objetivo, o alvo. Na verdade, o argumento parco é bastante claro com todas as palavras que são ditas (“pretty girls should always smile!”, “you are the only loveable part about me”) e a sátira nunca se coloca numa posição em que possa ser mal interpretada.
Neste filme, ser mulher é estar de alguma forma aprisionada, havendo sempre essa sombra na condição feminina — simbolicamente representado por Fargeat, num overhead shot de Moore, estando ela num chuveiro que é todo ele cercado por paredes. O filme é brutal na forma como aborda uma visão que é reiterada e espremida até ao tutano nas suas duas horas e dez minutos de duração: a ideia de que a beleza que é glorificada é inseparável do sofrimento para a atingir. Até a experiência de Sue, a personificação da “melhor versão de si própria”, é também ela desumanizante. Nenhuma versão, seja a matriz ou a cópia melhorada, se salva.
Sue é o resultado de um amor próprio em défice que se torna ódio. Esquecendo-se que são uma única entidade e que esse ódio é necessariamente interiorizado, as duas guerreiam e o clímax é uma extravagância delirante que leva, como disse, a sátira até às suas últimas consequências. Demi Moore entrega-se totalmente aos caprichos de Fargeat, despindo-se de qualquer vaidade para se entregar a este filme. No fim, saímos banhados a sangue, submetidos à brutalidade da câmara, da música, da intensidade das cores (rosa-feminino, vermelho-sangue, amarelo-gema) e da mensagem. Não há espaço para subtexto, mas esse nunca foi o objetivo. O cinema de Coralie Fargeat não é bisturi, é martelo de forja.
★★★★★