“She’s brim full of poetry.
She lives what paper-poets only write…”
Thomas Hardy, Tess of the d’Urbervilles
Há filmes que são sussurros. Existem na permanência dos seus actos de segredar, calmos mas envoltos em mistério, abraçando o espectador de imediato sem que precisemos de o aceitar primeiro. Fazem-no simplesmente e sem criar expectativas do que ali poderá vir a ser desvendado. O belíssimo Vermiglio (2024), vencedor do Leão de Prata – Grande Prémio do Júri na 81.ª edição do festival de Veneza, e que até nós chega na competição da 18ª edição do Leffest, é um desses filmes. Maravilhosamente entorpecido, garante que por cima dele poderemos repousar, conduzidos por uma intimidade enternecedora, ainda que se mantenha à distância ao ponto de dela não sabermos falar (prova-se incompleta, não temos como a conhecer), tal pintura a óleo de uma natureza tão bucólica. Assim começa, com um “quadro” de três irmãs a dormirem juntas numa cama. Na cama ao lado, dois irmãos. Enquanto isso, os azuis invernosos da madrugada cobrem a divisão, tocando-lhes na cara e nos membros do corpo destapados pelos cobertores. Em breve saberemos do filme enquanto um conto que se desenrola como se tivesse sido sonhado, num mundo montanhoso nos alpes italianos perdido de tudo e todos, que contempla a passagem da guerra (a acontecer algures num outro lugar, lá fora) para o pós-guerra. Mas até lá, Vermiglio abre as suas portas com a inscrição, o mesmo tom e ritmo, de um sussurro sobre uma verdade que se arrasta pela linha do tempo e do espaço. Tão grandiloquente, tal é a majestade da sua paisagem, quanto estóico, ou não fosse ele criado a partir do silêncio da comunidade.
Seguindo os passos da sua anterior longa-metragem Hogar (Maternal, 2019), a italiana Maura Delpero regressa a muitas das mesmas temáticas – as nuances da maternidade, as jovens mulheres mães, as comunidades religiosas – que em Vermiglio se vêem não só elevadas mas edificadas pelo maravilhamento do cinema-globo de neve, onde até a câmara tem receio do movimento (o filme constrói-se de “quadros” fixos e estáticos), não vá o mundo natural fazer das suas. A premissa veste-se do melodrama convidativo, que fere os que nele se encontram, mas sem inflamar o espectador. No final da guerra em 1944, um soldado siciliano desertor da guerra, Pietro (Giuseppe de Domenico), faz o derradeiro sacrifício e traz às costas Attilio (Santiago Fondevila) até casa da família nos alpes, família esta muito numerosa e católica encabeçada pelo professor Cesare (Tommaso Ragno) da região de Val di Sole, na pequena e montanhosa comunidade de Vermiglio. O intelectual Cesare, amante de Vivaldi e Chopin, é o eterno símbolo opressor de uma sociedade patriarcal. Não só é ele que decide qual das filhas merece continuar a estudar (só uma poderá), como é o tipo de pessoa que coloca os seus desejos à frente do bem-estar da sua pobre família, e especialmente da sua mulher, que veste o papel incansável de progenitora e cuidadora das 10 crianças que partilham. Quando Lucia (Martina Scrinzi), a filha mais velha, se apaixona por Pietro segundo o olhar atento da irmã Ada (Rachele Potrich), e Pietro decide com ela casar, um novo começo avizinha-se e o foco do filme é colocado nas relações entre homens e mulheres no seio familiar. O que deles se espera ou não, especialmente depois de regressarem da guerra, e o que delas é sempre esperado, sendo a guerra delas interna e sem fim. A mulher espera. Espera pelo amado, pelo nascimento (ou morte) do filho, espera para que o mundo reconheça a sua existência. É de notar uma conversa entre duas das irmãs, Ada e Flavia (Anna Thaler):
“- Gostava de ser padre.
– Para ouvires os pecados de toda a gente a dar penitências?
– Não, porque quando falas, toda a gente te ouve.”
Um filme belíssimo e singular: tão grandiloquente, tal é a majestade da sua paisagem, quanto estóico, ou não fosse ele criado a partir do silêncio da comunidade. Vermiglio é um instrumento leve mas contagioso, revelador de quase tudo.
Através da ingenuidade muito sábia e vital da infância, Vermiglio é contado a partir do ponto de vista das crianças, que vão absorvendo os eventos diários ao longo do tempo nas várias questões e comentários colocados ao fim de cada dia entre si. Movendo-se maioritariamente entre os seus quartos, a escola ou várias refeições em família, e o celeiro onde as vacas são ordenhadas, é praticamente impossível não pensar em Ermanno Olmi e no seu L’albero degli zoccoli (A Árvore dos Tamancos, 1978) não tivesse Delpero exercido o mesmo esforço neo-realista sobre uma civilização ainda primitiva, rural e pré-industrial, fazendo uso do dialecto da região (que muitos actores tiveram que aprender), misturando actores profissionais (como o reconhecível Tommaso Ragno) e actores não-profissionais (a vital surpresa que é Martina Scrinzi), e incluindo pessoas da vila não só como extras mas como personagens com papéis substanciais na trama. Ainda assim, a veia literária que sobressai de um trabalho observacional que atinge a sensorialidade (sente-se o frio na pele, cheira-se a comida à mesa), a forma como o filme se interliga com a sua poesia do rural revela uma costela hardiana -Thomas Hardy – com ênfase nas acções e reacções entre as pessoas, a relação causa-efeito dos seus actos, onde a imobilidade e a quietude tanto inspiram e provocam claridade como sufocam qualquer luz. O alvo de Delpero é o de contemplar uma universalidade que vê através da sua lente de filme de época para chegar até nós no futuro. Com o poder da paisagem a contextualizar a placidez externa daquelas pessoas, dando-lhes a sua linguagem e o seu corpo, como no pontilhismo salgado de Giovanni Segantini, é importante reter o fogo interno que as incendeia, mas que não conseguimos ver.
Nem iremos. Nenhuma personagem é individualizada a esse ponto. Nem Lucia. Vermiglio é sobre o todo. O registo é o da humanidade, ardente e imperfeita, reminiscente do tipo de nostalgia que só poderia ser autobiográfica. Aí encontramos a sua realizadora que quer, com o filme, honrar o sonho que teve do seu pai criança depois de este falecer, enquanto forma de garantir que a vida da Itália rural onde este tinha crescido perdura. Fazer renascer não só aquela criança que lhe apareceu num sonho, mas também o mundo onde ele vivia. Mundo este que, em Vermiglio, vimos a descobrir, luta contra si mesmo. Por um lado, sensível mas opressivo, tão protector que enjaula, mas por outro aceita sempre o que nele vai surgindo sem questionar os seus desígnios. O diabo estará, como sempre, nos detalhes.
E como só o que as crianças captam é que atinge o espectador, muito permanece por mencionar, traduzir, e interligar. São tantos os sinais que escondem os mistérios que o olhar de infância não tem vocabulário para reconhecer. Eis então que acordamos para o filme enquanto sonho. Aquele que sonha sabe, mas falha em exprimir. Quando acorda, recorda apenas traços e gestos. A eles adiciona intenções. E a mudez de todos à sua volta, durante o inverno que traz o desertor aos Alpes e vem mudar tudo, revela o tipo de respirar que pinta a realidade como a vimos a sentir no momento, antes da reflexão. Vermiglio é formalista o suficiente para regular o espectador, para o tranquilizar. Não muito diferente do poder que uma pena exerce na vida de Ada que pede à irmã Fabia que lha passe pelos braços e pernas todas as noites antes de adormecer. O mais curioso no meio disto tudo é que o mundo que vive segundo si mesmo, desligado de tudo mais, tende a ver-se destruído com um gesto delicado destes mais facilmente do que por uma explosão.
Vermiglio é um instrumento leve mas contagioso, revelador de quase tudo. Um filme singular a competir na delícia cinéfila que é o Leffest este ano.