A aurora ainda não se adivinha no horizonte e já a cidade está a fervilhar. As calçadas estão saturadas de peões, as estradas engarrafadas e os transportes públicos apinhados de sonâmbulos que se deslocam para o trabalho numa manhã sem brisa. Em conformidade com o que Parvaty (Chhaya Kadam) dirá, a cidade exige que se ocupe um posto e se desempenhe uma função, de outro modo perde-se o eixo e paira-se sobre a confusão urbana como um espectro. Sobreposto às imagens de Bombaim a despertar, um coro de vozes sem corpo segreda as agruras de se viver numa cidade de que poucos são originários e em que todos se dissolvem, desintegrados por uma engrenagem de produção que promete dinheiro, mas promove a estratificação – Classe é um privilégio reservado aos privilegiados, lê-se num placard que publicita a construção de um arranha-céus que, suspeita-se, não terá arrendamento acessível. Marcado pelo desenraizamento, o preâmbulo termina com um grande-plano de Prabha (Kani Kusruti), agarrada ao corrimão vertical da carruagem do comboio que a conduz ao trabalho. O enquadramento em grande-plano, a sua duração e a carga afectiva que lhe subjaz consagram a passagem do geral para o particular, do retrato panorâmico da cidade para uma escala individual.
Parvaty, Prabha e Anu (Divya Prabha) representam três gerações de mulheres, provindas do meio rural indiano, que se mudaram para Bombaim, onde trabalham enquanto enfermeiras num hospital. Por sinal, pouca atenção é prestada ao quotidiano das protagonistas no local de trabalho. As sequências hospitalares são episódicas e carecem de detalhe, muito embora seja claro que se pretende enfatizar que as personagens são cingidas por um conjunto de papéis de género – afinal, não só são enfermeiras, uma profissão codificada pelo género, como boa parte das cenas que se desenrolam em âmbito hospitalar lidam com questões reprodutivas: Anu explica a uma mulher de vinte e cinco anos, mãe de três filhos, como se toma a pílula contraceptiva oral e Prabha exibe uma placenta às enfermeiras novatas. A essas cenas pode-se juntar aquela em que Anu e Prabha levam uma gatinha prenha a realizar uma ecografia – sim, no hospital.
Fora do horário laboral, a solidão preenche o tempo das enfermeiras. Parvaty, a personagem que, das três, tem menos protagonismo, é uma mulher viúva prestes a ser despejada do apartamento onde habita há décadas, ao passo que Prabha, embora casada, vive numa condição análoga à da viuvez, porquanto o marido emigrou para a Alemanha e de lá não tem dado notícias, evaporou-se. Assim, a situação conjugal de Prabha é particularmente desvantajosa, na medida em que se vê obrigada a refrear a paixoneta que tem por um colega de trabalho por estar casada com um desconhecido que, depois do casamento arranjado, a deixou numa espera sem fim à vista. A gatinha prenha, que como podem imaginar não está a ser acompanhada pelo pai da futura ninhada, sublinha a aparente fatalidade das protagonistas em contarem somente consigo próprias.
Anu, a mais jovem das enfermeiras, é uma excepção à regra, dirá um espectador optimista, afinal, ela rompe com um conjunto de preceitos respeitantes às relações entre mulheres e homens, o que pode indicar que um desenlace diferente lhe espera. A rapariga rejeita as normas sociais ao namorar com um rapaz que não é uma encomenda matrimonial seleccionada pelos pais, os seus e os do noivo. Fazê-lo implica, de igual modo, recusar ser reduzida ao estatuto de mercadoria negociada entre famílias. Além disso, e aqui a rebeldia da jovem roça o sacrilégio, Anu apaixona-se por um rapaz muçulmano, uma incompatibilidade ao nível metafísico, visto que ela é hindu. Estes desvios face aos percursos trilhados pelas predecessoras, desvios estes que constituem golpes nos códigos que regulam a sociedade indiana, podem, para um espectador pessimista, ser insuficientes para fazer antever um desfecho diferente para Anu. Pode-se dar o caso da rapariga, agora apaixonada e esperançosa quanto ao futuro, estar na fase inicial de um ciclo a que Prabha e Parvaty conhecem o fim.
Para lá da estrutura narrativa bem delineada, do comentário social, da política dos amores e do melodrama espectral – é o olhar sobre a luz, as suas refracções, as formas que esta pode adquirir, é aí que se encontra a matéria deste filme.
Especulações à parte, certo é que o combate à solidão, mas também à ordem das coisas, se dá por via da sororidade. Prabha apresenta Parvaty a um advogado com o objectivo de obter aconselhamento quanto ao despejo de que foi intimada, assim como a acompanha a reuniões que mobilizam as pessoas lesadas pela construção dos arranha-céus destinados, para utilizar a tautologia do placard, aos privilegiados com privilégios. Prabha também se mostra solidária e indulgente com a colega de casa, Anu, que, incapaz de pagar a renda, é auxiliada pela protagonista. Porém, a relação das mulheres não se resume a cooperação e apoio, conforme revela a cena em que as enfermeiras censuram o comportamento tido por libertino de Anu, que anda pela cidade a namorar às escondidas.
Uma das sequências que retrata os passeios de Anu e Shiaz (Hridhu Haroon) tem um registo idêntico ao do preâmbulo. Os namorados dissipam-se na multidão e, sobreposta aos planos-gerais da cidade, ouve-se a voz de Anu. Cada uma das protagonistas dispõe de um monólogo idêntico em que as suas vozes, que narram a solitude e desafectação sentidas, se projectam, num tom murmurante, pelas noites tropicais de Bombaim, integrando um todo composto por outras histórias como as suas.
As vozes descorporizadas têm uma qualidade fantasmática, assim como têm os inúmeros planos de portas de janelas, cortinas, panos e lençóis a esvoaçar ao vento, numa cidade que oscila entre a humidade opressiva e as rajadas ululantes. Os ventos trazem para Prabha uma embalagem proveniente da Alemanha. No seu interior, jaz o que, à primeira vista, se afigura uma urna cinerária vermelha, de tons metálicos. Na realidade, trata-se de uma cozedora de arroz eléctrica, esclarece Anu a Prabha, que olha atónita para o aparelho, como se acabasse de ser visitada por um fantasma. E foi-o, de certo modo, visto que o marido, o remetente da caixa, é uma figura espectral. Quanto a uma mensagem, a um bilhetinho, a umas palavras de afecto, nem que seja uma assinatura – nada!
O marido não se faz presente por via da palavra, de uma enunciação que remeta para si, para a sua voz, para o seu corpo, mas através da expedição de um electrodoméstico que reforça novamente o papel de género que é esperado de Prabha. Na noite seguinte, a chuva e vento fortes abrem as janelas da cozinha da protagonista – é como se o espectro do marido entrasse no apartamento para obter uma resposta à sua oferta. Na penumbra, com as luzes púrpura da cidade a iluminarem suavemente a divisão, Prabha aproxima-se da urna cozedora de alimentos e, no lugar do desaparecido, abraça-a.
O último terço da acção troca as luzes e vozes citadinas pelo sol e silêncio de uma aldeia costeira, a terra natal de Parvaty, local para onde é obrigada a regressar no seguimento de ser despejada. A aproximação do autocarro que transporta as protagonistas à aldeia é filmada por meio de uma panorâmica que cobre uma porção de terra argilosa e desemboca nas águas serenas do Índico. Dado que a sequência que antecede este plano é constituída maioritariamente por imagens nocturnas de Bombaim, a mistura de tons oceânicos e telúricos causa uma impressão vívida no espectador.
A paisagem muda e as tonalidades também, a electricidade e o saneamento básico somem-se, assim como certamente se verifica uma diminuição dos níveis de dióxido de carbono – contudo, os fantasmas permanecem, não discriminam entre a cidade e o campo e residem tanto nos lugares em que habitaram quando vivos quanto na mente das pessoas que conheceram e, por isso, é sem surpresa que os encontramos nesta aldeia piscatória.
Parece que estamos noutro mundo, declara Anu ao entrar numa gruta cujas paredes têm ouvidos, uma vez que nelas estão gravadas figuras humanas esquecidas que, incapazes de falar, alimentam-se das palavras que os amantes que por ali passam trocam. Anu diz que as figuras, que também têm uma natureza espectral, aparentam estar presas, eternamente à espera de algo, comentário que leva Shiaz, que seguiu as mulheres até à aldeia, a dizer que uma das mulheres gravadas na rocha se parece com a namorada. Kapadia facilita a leitura, de si não muito difícil de adivinhar: as mulheres esculpidas espelham as protagonistas. Embora o poder da analogia seja diminuído pela sugestão demasiado explícita, a metáfora é justa e a significação subjacente também: quem espera é mais do que afligido pelo fantasma de quem não retorna, a própria espera, por ser realizada num mesmo lugar e por promover a fixidez, fantasmagoriza as mulheres. Além disso, esta sequência, desenrolada num outro mundo, como narra a protagonista, destaca-se pela intimidade dos amantes, que é enfatizada pela composição e trabalho de luz.
A união de Shiaz e Anu na gruta é seguida de uma reunião inesperada. Prabha está num bar de praia quando se apercebe de um alarido na zona de rebentação. Acontece que um homem em estado inconsciente foi encontrado na areia emaranhado numa rede. A enfermeira socorre o homem, fazendo reanimação cardiorrespiratória. Assim que os seus lábios se unem aos do homem, este reanima-se. O sopro da mulher desperta-o do sono, ou talvez do sonho, em que estava enredado. Horas mais tarde, durante a convalescença do desconhecido, que Prabha faz questão de acompanhar e tratar, uma aldeã refere-se ao homem combalido e desmemoriado como o marido da enfermeira. A perda da memória reporta para uma frase que Parvaty diz, no princípio da acção, a propósito do marido de Prabha: os homens que emigram arriscam-se a perder o juízo e a memória.
Uma vez desperto, e tendo ouvido os comentários da aldeã, o homem pergunta a Prabha se ela é a mulher dele, questão a que a protagonista responde negativamente, antes de começar a falar com ele como se este fosse, efectivamente, o marido. Por instantes, perguntamo-nos se Prabha está a aproveitar-se da amnésia temporária do homem para simular uma conversa com o marido, para dizer o que tem calado há anos. Porém, o homem-fantasma responde-lhe com tal precisão que poucas dúvidas restam de que ele, de uma forma ou outra, é uma aparição do marido da enfermeira. A cena impacta pela maneira como desafia a lógica, ou melhor dizendo, pelo modo como obedece a uma lógica onírica, mas também por ser um episódio simultaneamente espectral e corpóreo, em virtude dos corpos dos amantes se tocarem e se reconhecerem depois de anos afastados.
Além disso, e aqui caio na repetição, o cuidado com a luz é delicado. O brilho nocturno entra pelas janelas da cabana onde os esposos se reencontram e a luz, no seu interior, ainda que rarefeita, tem uma qualidade diáfana que vaporiza os corpos. Para lá da estrutura narrativa bem delineada, do comentário social, da política dos amores e do melodrama espectral – é esse olhar sobre a luz, as suas refracções, as formas que esta pode adquirir, é aí que se encontra a matéria deste filme e, nesse sentido, aguarda-se com expectativa os futuros lampejos que o cinema de Kapadia possa capturar.
★★★☆☆