O que se segue não é o princípio de uma anedota. Dois namorados que têm em comum a paixão por brigas conjugais e um homem enlutado entram num bar. James Michael Sythe (Gabriel Basso) e Kendall Carter (Francesca Eastwood) são habitués do Rowdy’s Hideaway e, como tal, os empregados do bar estão habituados ao espectáculo que costumam encenar. A peça em dois actos começa com James e Kendall a trocarem sorrisos cúmplices, a tirarem fotografias para serem divulgadas nas redes sociais e a fazerem tchin tchins com canecas salivantes, a escorrer uma espuma de cevada fermentada. O grau etílico faz com que a comédia tendencialmente termine com os pombinhos a gritarem um com o outro a propósito de nada, a agirem como concorrentes de um reality show.
Na noite de 25 de Outubro de 2021, a performance excedeu a dramaturgia costumeira do casal. Um copo partiu-se, insultos foram vociferados de parte a parte e Kendall saiu do bar para o parque de estacionamento, onde a discussão continuou à frente de uma dezena de espectadores. Pelo menos uma das testemunhas registou os acontecimentos com o telemóvel, adoptando a prática de filmar a violência ao invés de tentar intervir, ou, se calhar, pode-se dizer que interveio por via da imagem. A chuva copiosa que caía naquele instante e que rapidamente ensopou os namorados, aumentou o dramatismo do episódio que terminou com Kendall a soltar-se de James e a seguir a pé pela estrada, uma escolha incauta dada a falta de visibilidade. James também decidiu pôr-se a caminho, só não se sabe para onde, se rumo a casa ou no encalço da namorada.
No dia seguinte, a rapariga foi encontrada morta, retorcida num ribeiro à beira da estrada, o seu corpo coberto por uma fina lâmina de água. De acordo com o médico-legista, o crânio e os ombros esmagados indicam que a rapariga foi alvo de uma pancada produzida por um instrumento não-especificado. As suspeitas quanto ao autor da pancada incidem sobre Sythe. Se é verdade que as suspeitas recaem sempre sobre o namorado, neste caso a suspeição é redobrada pelo historial de altercações do casal, incluindo na noite em que a jovem morreu. O passado criminoso de James, cuja pertença a gangues fazia dele uma figura conhecida da justiça, aumentam a aparência de culpabilidade.
Durante a declaração de abertura do julgamento de James Michael Sythe, a procuradora do ministério público, Faith Killebrew (Toni Collette), retrata as ocorrências da noite em que Kendell Carter morreu com esses traços. A advogada enfatiza os antecedentes do acusado, os conflitos conjugais e a quantidade sobejante de testemunhas que atestam o comportamento agressivo de Sythe para com a vítima.
Entre os doze jurados, a ouvir o discurso da procuradora no tribunal, está Justin Kemp (Nicholas Hoult), o homem enlutado referido anteriormente. Kemp é um jornalista, na casa dos trinta anos de idade, que escreve para uma revista de lifestyle o tipo de artigos genéricos que fazem correr tinta sem, no entanto, dizerem nada. Justin atravessou um período de dependência de álcool, que terminou com um acidente de viação de que escapou ileso. Contudo, o jornalista reorganizou a sua vida e reinventou-se, tendo, entretanto, casado com Alison Crewson (Zoey Deutch), que está grávida pela segunda vez, depois da gravidez anterior ter sido interrompida por um aborto espontâneo.
A única recaída de Kemp deu-se a 25 de Outubro de 2021, o dia para que estava previsto o nascimento dos gémeos que o casal não chegou a ver crescer. Dilacerado pela dor e receoso de poder angustiar ainda mais a mulher com o sofrimento que sentia, Justin dirigiu-se ao Rowdy’s Hideway, onde pediu uma bebida que diz não ter chegado a tocar – simplesmente olhou para o copo como quem fita um revólver carregado. Nessa noite, ao retornar sóbrio para junto de Allison, o protagonista colidiu com algo indistinto na estrada. Face ao sinal de trânsito, convenientemente posicionado no local do acidente, que alertava para a possibilidade de haver cervos na área, o jornalista assumiu ter embatido num animal e, por isso, retomou a marcha no meio da tempestade.
Quer isto dizer que Justin Kemp é convocado para ser um dos jurados do julgamento de James Michael Sythe, que é acusado de matar a namorada, e, durante a declaração de abertura da procuradora do ministério público, apercebe-se que ele próprio é responsável pela morte da rapariga, que o choque ocorrido naquela noite não abalroou um cervo, mas sinistrou uma jovem que queria evitar o namorado.
Kemp é o único que está na posse da verdade, o seu testemunho pode interromper de imediato as audiências e salvar um homem inocente, pelo menos do crime de que é acusado, de ser condenado. Porém, ser fiel à verdade e assumir a responsabilidade pela morte de Kendall Carter exige um sacrifício. O nome, liberdade e futuro de Kemp serão comprometidos. Dado os antecedentes de alcoolismo e o acidente de viação, provocado pela embriaguez, que teve há anos, Kemp compreende que ninguém acreditará na sua palavra e, portanto, será acusado de conduzir sob o efeito do álcool, de atropelar a rapariga, de se desfazer do corpo dela e de ter encoberto o crime.
As cenas que representam as audiências no tribunal mostram que o apuramento da verdade e o cumprimento da justiça são preocupações menores. Os procuradores e os jurados incumbidos de tomar uma decisão pouco se importam com a noção caduca de verdade. Na realidade, o objectivo do julgamento é apaziguar a consciência moral da comunidade, cujos cidadãos, depois do cair da noite, desejam repousar a cabeça no travesseiro com o conforto de saberem que moram numa cidade onde os “homens maus” (palavras da procuradora) são punidos e a morte de uma mulher não é menosprezada.
Um filme menor teria estendido os procedimentos do julgamento e minado esta porção da acção com retórica verbosa, relatos patéticos por parte de testemunhas e discursos triunfantes enunciados enfaticamente pelos procuradores. O argumento de Jonathan A. Abrams evita isto em grande medida e a realização de Eastwood destaca-se pela simplicidade do engenho formal.
Assim sendo, a verdade que Kemp pode tornar pública soçobrará face à narrativa pré-fabricada de alcoolémia e fuga que será promovida pela acusação. À semelhança do que aconteceu com Sythe, nem sequer será necessário investigar o caso agora protagonizado por Justin Kemp – e isso não se deverá à irrefutabilidade das provas, mas ao facto de o bode expiatório que satisfaz a maioria das partes envolvidas (a comunidade, a advogada em campanha política e a família da vítima) ter sido encontrado. É por isso que é certo que Sythe será condenado caso Kemp não intervenha, isto mau-grado a fundamentação contra o acusado ser tão frágil que um detective reformado, que faz parte dos jurados, quase consegue descobrir o verdadeiro culpado num espaço de semanas.
Resumindo, não tarda até o jurado n.º 2 ver o filme do julgamento de que será alvo caso decida dizer a verdade, toda a verdade e nada mais do que a verdade.
A expressão “ver o filme” também se me afigura apropriada para descrever o efeito que o argumentário dos procuradores produz sobre os espectadores, isto é, sobre a dúzia de jurados. Durante a declaração de abertura, a procuradora do ministério público vale-se de um dispositivo auxiliar, mais concretamente de um monitor. A retórica estende-se além das palavras e também integra a transmissão de imagens que ilustram certos pontos do seu raciocínio. A versão dos acontecimentos relatada por Faith Killebrew espoleta uma analepse que dá a ver as ocorrências da noite de 25 de Outubro através da perspectiva da acusação. A transição do presente para o passado é efectuada por via de um fundido-encadeado: a imagem de Rowdy’s Hideway transmitida na televisão do tribunal desdobra-se na analepse que retrata os eventos da noite em que Kendall Carter morreu. O raccord articula com elegância diferentes tempos (presente e passado) e espaços (o tribunal e o bar), mas também sublinha a natureza mediática do julgamento.
O facto de se ficar com a sensação de que a versão do ministério público se desenrola num espaço ecrãnico insinua que o discurso da procuradora é feito à medida do espaço mediático, que tem a expectativa de ver promovida a narrativa de que Carter morreu por ter sido vítima de violência misógina, assim como conta que o desfecho do julgamento seja a condenação do gangster. O julgamento deve apurar porquê e como Sythe é culpado e não apurar se o homem é inocente ou culpado. Tendo isto em consideração, a procuradora age em conformidade com o viés de confirmação imposto pela esfera pública, o que significa que a justiça está a actuar sem a venda com que comummente é retratada. Contrariar esta versão dos acontecimentos seria danoso para as ambições carreiristas de Faith Killebrew, que pretende consolidar a autoridade da sua imagem e utilizar o caso como uma plataforma de lançamento para um cargo público.
Apesar de desempenharem um papel fundamental na exposição de informação relativa ao caso, as audiências públicas no tribunal ocupam pouco tempo e, nesse sentido, o courtroom drama esgota-se no final do primeiro acto. Um filme menor teria estendido os procedimentos do julgamento e minado esta porção da acção com retórica verbosa, relatos patéticos por parte de testemunhas e discursos triunfantes enunciados enfaticamente pelos procuradores. O argumento de Jonathan A. Abrams evita isto em grande medida e a realização de Eastwood destaca-se pela simplicidade do engenho formal. O que mais impressiona nestas sequências é a maneira como a montagem articula as intervenções dos advogados da acusação e da defesa, bem como põe em relação as várias perspectivas dos factos decorridos na noite de 25 de Outubro.
No entanto, o segundo acto do filme é mais laborioso e maquinal. Transita-se da sala de sessões públicas do tribunal para um gabinete onde os jurados se reúnem para discutir o caso e tomar uma decisão. A maioria dos jurados entende que a deliberação é dispensável, afinal, para quê debater se a sentença apenas afecta o resto da vida de uma série de pessoas, o acusado, mas também a família da vítima. Kemp tem a ousadia de dizer que, se calhar, o caso em causa merece um bocadinho de reflexão, o que apanha de surpresa os restantes jurados, que temem perder a novela de fim de tarde se ficarem para ali a trocar ideias sobre um caso cujo veredicto se sabia à partida. O que incomoda mais os jurados é a insistência de Kemp em levantar questões e alimentar a dúvida. Claro está, é mais tranquilo quando uma pessoa vive auto-satisfeita com as suas certezas.
As circunstâncias das personagens são distintas, porém, os dilemas que as acossam são idênticos. A verdade é um bem em si próprio ao qual se deve ser fiel? E pode a justiça prevalecer sem, em primeiro lugar, a verdade ser reposta?
A estratégia de Kemp é persuadir os jurados de que o caso apresentado pela acusação tem incongruências que criam uma margem para dúvidas quanto à culpabilidade de James Michael Sythe. O protagonista quer fazer o impossível: comer o bolo sem ao mesmo tempo o perder – isto é, quer ilibar o defendente sem assumir responsabilidade pelos seus actos e dizer a verdade em sede própria. Kemp quer fazer justiça pela sombra, de forma dissimulada, actuando como sentinela da incerteza e da presunção de inocência junto dos jurados. Contudo, a justiça não pode ser executada sem a reposição da verdade, os pratos da balança não podem ser pesados se o que está a ser equacionado são mentiras. O jornalista tenta equilibrar a balança com as suas maquinações, mas, no final, é incapaz. Somente a verdade poderá restituir a liberdade ao defendente.
Conforme referido, as deliberações dos jurados têm uma qualidade operacional e, assim, é nítido que grande parte das personagens e diálogos desempenham uma função. Nessa medida, os jurados são esboços de personagens, alguns deles têm, inclusive, um carácter quase caricatural. O argumento também aproveita as cenas de discussão do caso para fazer pedagogia cívica, com as personagens a dizerem coisas do género: Estamos aqui para apreciar os factos, não para resolver o caso, ou, O advogado não provou, para além de uma dúvida razoável, que o acusado era inocente, uma frase feita que obriga Justin Kemp a dizer prontamente que essa é uma inversão da lógica processual com que se faz justiça. Enfim, é maçador ouvir-se o que se sabe e ainda por cima num tom didáctico, mas, francamente, há quem precise de rever a matéria dada.
A dúvida que o protagonista procura instilar nos restantes jurados contamina a procuradora do ministério público. A tomada de consciência de que se tornou numa advogada cínica abala as convicções de Faith Killebrew. A maneira automática como diz, Claro!, quando é perguntada se ainda acredita que a justiça é a verdade em acção revela como, por vezes, as crenças mais enraizadas são aquelas a que menos nos dedicamos. Por isso, a advogada começa a investigar o caso fora de horas e quanto mais examina as provas menos certa fica quanto à culpabilidade de James Michael Sythe.
Juror #2 (Jurado N.º 2, 2024) atinge plena força dramática quando, no terceiro acto, coloca em paralelo as lutas que Justin Kemp e Faith Killebrew travam contra as suas consciências. O primeiro equaciona se deve salvar um defendente com um passado criminoso, sacrificando a sua vida, mas também arrasando a da mulher e a do futuro filho, ao passo que a última se questiona se deve libertar um gangster em detrimento da sua carreira política. As circunstâncias das personagens são distintas, porém, os dilemas que as acossam são idênticos. A verdade é um bem em si próprio ao qual se deve ser fiel? E pode a justiça prevalecer sem, em primeiro lugar, a verdade ser reposta?
Ainda assim, apesar do argumento e da realização serem acutilantes no que é essencial, mais concretamente na elaboração das temáticas e no desenvolvimento da aporia moral que atormenta a consciência das personagens, existem demasiadas cenas, mesmo durante a parte mais pujante da acção, maquinais de um ponto de vista narrativo: desde a entrevista de Killebrew a Allison, ao momento em que a advogada descobre que o responsável pela morte de Kendall Carter não é um monstro, mas um homem pacato, um cidadão exemplar o suficiente para ser seleccionado para cumprir o dever de ser um jurado em tribunal. De qualquer modo, ao nível dramatúrgico tem de apontar-se a óptima elipse que omite a derradeira reunião entre os jurados, o que faz o espectador ficar na expectativa de que Kemp se entregou às autoridades e finalmente fez justiça à verdade.
Não é isso que se sucede. James Michael Sythe é condenado. Kemp continua a sua vida em liberdade, junto da mulher e filho recém-nascido, embora preso e sentenciado pelo juiz que tira o sono aos injustos: a consciência. Quanto à procuradora, Killebrew ganha a eleição, assume-se que devido à tracção mediática adquirida através do julgamento e condenação de Sythe, um homem que, como o nome sugere (Sythe é homófono de “scythe”, que significa “gadanha”), estava destinado a ser ceifado. De igual modo, não é difícil adivinhar por que razão o protagonista se chama Justin (nome que etimologicamente remete para a noção de justiça) e a representante da lei se chama Faith. Assim, pode-se dizer que o filme termina com a fé a bater à porta da justiça. Faith Killebrew bate à porta de Justin Kemp porque ambos precisam de regularizar as contas.
A imagem de um homem a ser confrontado pela Justiça pelas acções que praticou é particularmente poderosa se tivermos em conta que este pode ser o último plano que Clint Eastwood, cuja filmografia é ubérrima em inquietações relacionadas com a culpa e a verdade, lega ao cinema. Que Eastwood, aos 94 anos de idade, se despeça (muito provavelmente) com um grande-plano de um homem que sabe ser impossível fugir à verdade e à justiça, ao juízo final, dir-se-ia, demonstra uma lucidez perante a vida e a morte que é fruto de um profundo desassossego.
★★★☆☆