Em Dezembro de 2008 Wendell Jamieson publicava no New York Times um texto a propósito de It’s a Wonderful Life (Do Céu Caiu Uma Estrela, 1946), o clássico natalício de Frank Capra, com o seguinte título: “Wonderful? Sorry, George, it’s a pitiful, dreadful life.” Concluía o autor que, ao contrário daquilo que poderíamos crer, o filme de Capra é tudo menos reconfortante, deixando perceber que o pesadelo de George Bailey está bem mais próximo da realidade do que o famoso final que nos diz que os amigos são o nosso maior tesouro e que o bem triunfa sobre o mal. Isto porque, bem vistas as coisas, os problemas que atormentavam George Bailey continuam lá, intactos.
Serve esta introdução para dizer que talvez não tenhamos andado muito atentos ao lado negro dos filmes que nos habituámos a apelidar de clássicos de Natal. A época de Natal pode ser momento de serenidade e aconchego, mas muitas vezes é também sinónimo de stress, de angústia, de saudade, de abandono, de um agudizar da solidão. Já para não falar de ressaca.
Se há filme onde tudo isto se mistura miraculosamente é certamente The Shop Around the Corner (A loja da Esquina, 1940). Aliás, muito há a dizer do génio de Lubitsch em conseguir fazer, simultaneamente, o filme definitivo sobre o trabalho e o filme definitivo sobre o Natal. O Natal em família e o Natal com a família que é feita de colegas de trabalho confundem-se, antevendo a prática que hoje se observa em tantas empresas, procurando passar a ideia de que os colegas de trabalho devem ser uma grande família, numa perniciosa mistura de campos da vida que deviam permanecer separados. Mas no filme de Lubitsch ainda somos, felizmente, poupados ao team building da época actual.
Em The Shop Around the Corner vivem-se tempos difíceis, em que cada um se mostra disposto a vender a alma para segurar um emprego: Klara (Margaret Sullavan), que agarra com unhas e dentes a hipóteses de trabalhar na loja do Sr. Matuschek (Frank Morgan), Pirovitch (Felix Bressart) que constantemente foge para o andar de cima quando há o risco de ter de dar a sua opinião, Pepi (William Tracy) que não suporta a Sra. Matuschek, mas que responde de maneira falsa e subserviente. E nada poderá ser pior do que a ameaça do desemprego em plena época natalícia [desemprego que acaba por concretizar-se de forma inesperada para Kralik (James Stewart), que sem perceber como, passa de preferido e potencial sucessor do patrão a pessoa indesejável]. A questão da precariedade laboral passou também para a falsa sequela que é You’ve Got Mail (Você Tem Uma Mensagem, 1998), ainda que em contornos bastante atenuados. Ainda assim, as vendas em alta da época natalícia são apenas o canto de cisne de uma loja que ficará vazia, uma imagem desoladora por contraste com a azáfama e as multidões das compras de Natal.
A ameaça do despedimento pairava igualmente em Desk Set (A Mulher que Sabe Tudo, 1957), onde os festejos de Natal da empresa se misturam com a chegada do temido recibo cor-de-rosa do departamento de processamento salarial, a cor que anuncia que as trabalhadoras do Departamento de Pesquisa se tornaram redundantes, passando a ser substituídas por um computador (uma espécie de sobrevalorização da IA sobre a mente humana em tempos mais remotos). Essencial será sempre enfrentar estes momentos de adversidade com elegância: em Auntie Mame (Uma Tia dos Diabos, 1958), Rosalind Russell perde o seu emprego no Macy’s em plena época festiva, deixando-a com uma mísera moeda que não chega para pagar o transporte para casa, uma derradeira moeda que acaba depositada na caixa de esmolas do Salvation Army. Chegada a casa, Mame decide simplesmente festejar o Natal mais cedo, como antídoto para a infelicidade (como que dizendo que o Natal é mesmo quando uma mulher quiser).
A época de Natal pode ser momento de serenidade e aconchego, mas muitas vezes é também sinónimo de stress, de angústia, de saudade, de abandono, de um agudizar da solidão. Já para não falar de ressaca. Se há filme onde tudo isto se mistura miraculosamente é certamente The Shop Around the Corner.
O Natal de Pirovitch, um dos funcionários da loja do Sr. Matuschek (fugindo sempre escada acima quando este pede aos seus funcionários uma opinião honesta), não será difícil de imaginar – passado com a sua família, no seu pequeno apartamento, sem grandes luxos, mas de forma simples e feliz. O Natal de alguém que exibe orgulhosamente as fotografias da família que carrega na carteira. Mas a solidão natalícia paira nesta loja como um odor que se insinua, mas é difícil de identificar. Desde logo, o patrão que sente a distância da mulher, acabando, no final, por acolher o moço de recados para não passar sozinho a noite de Natal. Mas também Klara e Kralik, que colocam todas as suas esperanças num desenlace romântico, na busca de uma companhia para o Natal e para o resto da vida, comprando já a prenda de Natal para alguém que ainda não conhecem. É a solidão de preparar um Natal que não vai ser partilhado, que pode estar no simples gesto de um pinheiro de Natal que se carrega sem ajuda, como vemos em When Harry Met Sally (Um Amor Inevitável, 1989) ou While You Were Sleeping (Enquanto Dormias, 1995).
Essa ameaça de solidão, de abandono, presente no filme de Lubitsch, encontra eco num dos clássicos natalícios por excelência, Meet Me in St. Louis (Não Há Como a Nossa Casa, 1944), quando Judy Garland consola Margaret O’Brien cantando “Have Yourself a Merry Little Christmas”. Adivinha-se aí a mudança para uma outra cidade, os amigos que serão perdidos, os laços familiares que serão desfeitos, uma etapa da infância que se encerra. É aí que a criança que sempre vimos como destemida se desfaz em lágrimas, enquanto destrói os bonecos de neve que não quer deixar para trás, para outras mãos que não as dela.
É também a solidão que em Catch Me If You Can (Apanha-me Se Puderes, 2002) leva Leonardo DiCaprio a procurar a companhia do seu perseguidor, o mais próximo de um ente chegado que consegue encontrar. São momentos de abandono que resultam muitas vezes de disfuncionalidades familiares, famílias ausentes-ausentes ou ausentes-presentes, como em Home Alone (Sozinho em Casa, 1990), The Holdovers (Os Excluídos, 2023) ou Spencer (2021).
Como amenizar estes desajustamentos familiares? Com prendas, certamente, assim manda a quadra. Decisão que é reduzida ao seu essencial em Scrooged (S.O.S. Fantasmas, 1988), na lista de presenteáveis que é percorrida por Bill Murray, que divide as pessoas da sua lista entre videogravador e toalhas de banho (o próprio irmão é contemplado com uma toalha de banho, o que diz tudo sobre o espírito de generosidade natalícia que aqui reina).
The Shop Around the Corner, não é menos pragmático (para não dizer insensível) no que toca à escolha das prendas de Natal. Kralik pode estar apaixonado (ou em processo de o estar), mas nunca a ponto de perder a razão, tentando manobrar o desenrolar dos acontecimentos de forma a receber a prenda por ele desejada. Demasiado humano, quiçá. Ou apenas consciente de que o presente errado pode causar mais mal do que bem. Assim sucede em All That Heaven Allows (Tudo o Que o Céu Permite, 1955), na chegada do televisor, presente de Natal dos filhos de Jane Wyman, condenando-a a envelhecer respeitosamente num sofá, sozinha, em lugar de procurar os braços de Rock Hudson. Ainda mais perniciosa é a chegada do casaco de vison em A Summer Place (Escândalo ao Sol, 1959), Sandra Dee encurralada entre a “traição” do pai e a estalada da mãe, derrubando uma árvore de Natal talhada para durar dez anos, feita de plástico do bom. Um casaco que pode dar jeito para noites frias em motéis sórdidos. “Merry Christmas, mama!”
Em The Shop Around the Corner, o bicarbonato de sódio é chamado a curar os males de uma ceia farta em casa do Sr. Matuschek, anunciando os excessos cometidos à mesa no Natal. Sendo certo que a necessidade de lidar com todos estes inconvenientes do Natal empurra igualmente para a busca de um consolo mais do tipo alcoólico. Por muito grande que possa ser a tolerância ao álcool do casal Nick e Nora Charles, em The Thin Man (O Homem Sombra, 1934), nem mesmo eles resistem ao efeito letal da combinação Natal e cocktails, sendo aparente a rabugice de Nora, própria de quem não consegue já sequer fingir algum espírito natalício. A culpa terá sido certamente daquele último Dry Martini.
Foi a consagração de Die Hard enquanto clássico natalício que veio mostrar a ligação possível entre Natal e crime, porventura como forma de contrariar as musiquinhas que apelam à fraternidade e paz no mundo. Assim se explica que tantos assaltantes do cinema escolham a época natalícia para os seus golpes.
E se o Natal pode levar ao álcool, em casos extremos pode levar a acções mais nefastas. Foi a consagração de Die Hard (Assalto ao Arranha-Céus, 1988) enquanto clássico natalício que veio mostrar a ligação possível entre Natal e crime, porventura como forma de contrariar as musiquinhas que apelam à fraternidade e paz no mundo. Assim se explica que tantos assaltantes do cinema escolham a época natalícia para os seus golpes, como sucede em The Silent Partner (Amigo Desconhecido, 1978) ou Cash on Demand (Assalto ao Cofre, 1961) ou ainda, com outro grau de violência, em L.A. Confidential (L.A. Confidencial, 1997). Face a este lado mais brutal do Natal, resta fazer apelo a Remember the Night (Lembra-te Daquela Noite, 1939) enquanto possibilidade de o crime levar à redenção, com Barbara Stanwyck sob custódia, a encontrar o amor e uma família, enquanto aguarda uma sentença cuja decisão fica suspensa durante a quadra natalícia.
E, por vezes, a pistola faz o movimento de Spellbound (A Casa Encantada, 1945), passando de um alvo externo para o portador da arma. É o próprio Sr. Matuschek, o dono da loja da esquina, que, confrontado com o relatório final do detective e com o erro que cometeu, tenta o suicídio, sendo impedido no último momento por Pepi (que rapidamente se aproveita do episódio para subir na vida). “Boy, the holidays are rough. A lot of suicides.” – dizia Billy Crystal em When Harry Met Sally. E nenhuma tentativa de suicídio é mais tocante do que a de Meet John Doe (Um João Ninguém, 1941) – o desespero de Gary Cooper, que é o desespero do homem sem nome, o morrer da esperança. Esta desilusão total pode também ser o reconhecimento da impossibilidade da felicidade, um amor que não se cumpriu, uma vida que ficou irrealizada, como é ilustrado no final tão melancólico de Les Parapluies de Cherbourg (Os Chapéus de Chuva de Cherburgo, 1964). Palavras são trocadas num cenário trivial, uma bomba de gasolina, mascarada de cores de Natal, como se fosse um daqueles pequenos globos de vidro que agitamos para ver a neve.
Se há mensagem natalícia que The Shop Aroud the Corner deixa será, certamente, a de que cada um faça o seu próprio Natal. Está tudo na cena final, quando o Sr. Matuschek improvisa uma ceia, descrevendo em pormenor a Rudy iguarias que ultrapassam tudo aquilo que ele poderia imaginar. Dois companheiros improváveis que procuram salvar a noite e fazer uma festa à sua medida.
Em jeito de mensagem final, um mote para a noite de Natal: It’s anybody’s party. You can cry if you want to.