𝄞 I was young when I left home /
And I been out rambling’ ‘round /
And I never wrote a letter to my home 𝄞
Bob Dylan, 1966
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(I am large, I contain multitudes.)
Song of Myself, 51
Walt Whitman
É difícil saber o que leva James Mangold a escolher cada projecto. Sem cunho autoral definido ou área de interesse particular, não há uma bússola orientadora que entrelace os filmes, e una a obra. Mas isso em nada o impediu de se tornar um dos realizadores de cinema Americanos mais bem sucedidos. Ziguezagueando dos westerns aos biopics, dos dramas psicológicos aos filmes de super-heróis, são poucos os filmes que poderão dialogar entre si, que é o mesmo que dizer que não há como segurar o cineasta. Neste caso, e porque se assiste ao regressar a um universo já previamente explorado em Walk the Line (2005), uma lógica percorre uma produção ambiciosa deste calibre. Mangold tinha que estar por trás de um filme biográfico sobre um homem que fez da sua vida a rejeição de todos e quaisquer rótulos.

Depois de uma paragem inesperada na produção por causa da pandemia, há muito que se esperava o filme que confirmaria o talento do jovem carismático de Hollywood, Timothée Chalamet, a vestir a pele do músico que marcou e continua a marcar a locomotiva beatnik em tempos de areia movediça, e aqui está ele finalmente. Se Walk the Line cravava os dentes na potência emocional da história de vício e superação de Johnny Cash, e teve direito a um tratamento biográfico tradicional com um arco narrativo hollywoodiano sobre um dos maiores cantores e compositores country Americanos, A Complete Unknown (2024) poderá ser ainda mais limpo (pouco saibroso), mas é o resultado de uma fusão energética de sabores no cinema de género: o classicismo de uma possível nova Hollywood, onde a riqueza passa por uma maior liberdade estrutural que foge à tensão melodramática por completo e rejeita o lugar-comum. A temperatura quente mantém-se, mas o batimento cardíaco é mais forte neste último.
Há uma razão clara que se pode desde logo apontar. Alimentado por um fogo de admiração ao homem que não queria ser a voz de uma geração, mas foi e continua a ser a de um movimento social intemporal que promove a paz e incentiva a união, Mangold decide, juntamente com Jay Cocks, e com base no livro Dylan Goes Electric! (2015), de Elijah Wald, construir o filme de acordo com a própria ideologia de vida de Dylan. “A vida não é sobre nos descobrirmos, ou sobre descobrirmos seja o que for. A vida é sobre criarmo-nos.”, pontifica Dylan no início do documentário de Scorsese Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese (2019). Uma sequência doce e memorável que envolve o filme Now, Voyager (A Estranha Passageira, 1942), de Irving Rapper, acena a cabeça ao homem que em vez de se encontrar, passou por várias metamorfoses. Não em busca de melhor, mas de algo diferente. Como Mangold, não há como o agarrar. E quando se acha que é possível, já ele está num outro lugar à frente, a rejeitar tocar os seus êxitos (porque antigos) em concerto.
O filme é poético na sua capacidade de destilação estilística. Todos os diálogos são indispensáveis, pesados em significância e livres de lugares comuns. O mesmo diz-se das transições entre cenas. Há um comandar menos geométrico e mais orgânico da performatividade Hollywoodiana. Nenhuma interpretação imita. Todas habitam aquele mundo.
As primeiras palavras ouvidas no ecrã, com o Dylan de Timothée a entrar num bar na famosa MacDougal Street em Greenwich Village vêm da boca de um grupo de músicos [onde se encontra Dave Van Rock, que serviu de inspiração para um dos melhores biopics de música dos últimos anos, o subvalorizado Inside Llewyn Davis (A Propósito de Llewyn Davis, 2013), dos irmãos Cohen, onde um outro Dylan aparece durante uns segundos] que mencionam a frustração que é o automático catalogar da criação musical. Ao mesmo tempo, o filme apresenta-nos Pete Seeger, o pioneiro do folk americano e um comunista convicto, pai dos hinos de protesto pelos direitos civis e contra a guerra, perseguido pelo Macarthismo. A presença de Seeger, interpretado por um magnífico Edward Norton, que se parece mais com Seeger que o próprio Seeger, marcará os primeiros quatro anos da carreira musical de Dylan, os únicos que o filme explora. De 1961 a 1965, Seeger será o seu padrinho criativo, aquele que o apresentará à cidade de Nova Iorque e a uma comunidade que lutava por uma melhoria no clima cultural e político em tempos convulsivos (a repressão na década de 1950, a contracultura e o movimento dos direitos civis nos sixties, e a guerra do Vietname, que o filme não menciona).

Mangold não está, como diz, numa entrevista, “interessado em histórias do berço à cova”. Mas A Complete Unknown funciona em termos progressivos, da ascensão à fama de Dylan como ícone de folk para a metamorfose do músico que compôs Highway 68 Revisited (1965) numa estrela de rock depois de abraçar a guitarra eléctrico. E, pelo caminho, um berço é encontrado. Um tal chamado de Zimmerman, rapaz de Minnesota, jovem de cara lavada e caracóis desgrenhados, apresenta-se num hospital psiquiátrico em New Jersey (onde curiosamente as cenas exteriores do filme foram filmadas, tendo em conta a desfiguração imodificável de uma Manhattan pós-gentrificação) onde toca guitarra e harmónica para Seeger e Woody Guthrie (Scoot McNairy), cenário iluminado que relembra o hospital de Girl, Interrupted (Rapariga, Interrompida, 1999), também de Mangold. Será aquele lugar e essa relação o trampolim que potenciará Dylan em se fazer, e de onde este eventualmente saltará, em direcção a um outro futuro.
Durante aqueles quatro anos, serão muitas as personalidades que passarão por Dylan em A Complete Unknown. Para os fãs da altura, o filme é um anuário do liceu de poetas e letristas e músicos e artistas. Pete Seeger, Woody Guthrie, Dave Van Rock (Joe Tippett), Joan Baez (Monica Barbaro), Johnny Cash (Boyd Holbrook), Bob Neuwirth (Will Harrison), Al Kooper (Charlie Tahan), Alan Lomax (Norbert Leo Butz), Mike Bloomfield (Eli Brown), Albert Grossman (Dan Fogler)… com um especial pontuar romântico em volta de Sylvie Russo (nome fictício, pedido feito pelo próprio Dylan, da sua musa e namorada Suze Rotolo, com quem está na capa do álbum The Freewheelin’ Bob Dylan), numa interpretação muito madura de Elle Fanning, e o triângulo amoroso criado com Baez (é a segunda vez que a tensão é criada entre dois amantes através da música It Ain’t Me, Babe depois de Walk the Line). Quando à procura da verdade biográfica, o cineasta coloca a franca incomunicabilidade de Bob Dylan com o mundo exterior em primeiro plano e contrói o filme à volta dela. É ilustre o momento em que, após o acto de rebeldia e afirmação que foi o concerto eléctrico no Newport Music Festival (depois de alienar os seus fãs mais puristas e antes de se afastar daquele millieu), Seeger encontra o jovem Dylan sozinho num quarto de motel, porta aberta, olhar vago e cigarro na boca, com uma festa em erupção apenas a palmos de distância. E é esse o Dylan de Mangold até ao fim: um trovador sóbrio e hipnotizador que lê e relata a verdade com uma clareza destemida, mas é incapaz de tomar controlo da sua vida ao ponto de estar presente para criar laços duradouros.
A mestria do filme reside em não precisar de estar satisfeito consigo mesmo, não se analisa enquanto acontece ao espectador. Quer é que passemos tempo com ele.
Exactamente por isso o filme pedia mais crueza, mais textura no seu registo, talvez uma escala de cores ainda mais saturadas, que ultrapassasse o que rima e não fere os olhos. A sua maquilhagem é, de facto, banal. Porque é um filme sobre Dylan, pedia-se mais êxtase, mais rispidez estética. O Bobby de Timothée também não sorri muito, é taciturno e misantropo, mas nunca desagradável. Nunca fala o suficiente sobre si mesmo, mas o que diz chega para discernir quem é em qualquer momento. Ao mesmo tempo, são as letras das músicas que vão falando por ele e pelas intenções do filme que em nenhum momento se suja com controvérsia, permanecendo resguardado e inocente. Mostra-nos um jovem que parte para Manhattan para nunca mais voltar para casa, que abusa de café e nicotina, e vive como que possuído pela mente de alguém que não consegue parar num momento no tempo e espaço. Alguém que compõe música como se a sua vida dependesse disso, como se precisasse de registar mais do que de sentir. Sylvie descreve-o no início como sendo “do contra”, sempre em conspiração com o mundo. Na altura nada era mais elogioso, mesmo para o rapaz que nunca encontrou outra maneira de ser.
A Complete Unknown faz uso da ficção (mais de 95% das sequências no filme são criadas para comprimir e embelezar momentos reais) para tocar na realidade. Com um argumento não só aprovado pelo músico, como completado por ele (há frases escritas por Dylan no filme e notas deixadas a Chalamet com quem nunca se encontrou), diz-se que é o primeiro olhar sobre si mesmo que suporta. É perceptível porquê. O filme é poético na sua capacidade de destilação estilística. Todos os diálogos são indispensáveis, pesados em significância e livres de lugares comuns. O mesmo diz-se das transições entre cenas. Há um comandar menos geométrico e mais orgânico da performatividade Hollywoodiana. Nenhuma interpretação imita. Todas habitam aquele mundo. As performances musicais são inclusive todas gravadas em directo! E no meio disto tudo, o realizador concentra todos os seus esforços em projectar a mesma história que Dylan criou para si mesmo e que os beatniks implementaram: um tsunami de linguagem pronto a destruir a uniformização e adormecimento, universalizada pelo livro-bíblia de Jack Kerouac em 1957.

A Complete Unknown emite o mesmo ritmo idiossincrático. Naquele stream of consciousness acenava-se à dificuldade em superar a estrada da vida, substituída então com o percorrer da estrada física. O movimento em detrimento da acção. Quando Mangold falou com Dylan usou a expressão “sufocar até à morte” para demonstrar o fácil abandono de Dylan dos caminhos que ia assimilando. O jovem Timothée entendeu isso na perfeição. A mestria do filme reside em não precisar de estar satisfeito consigo mesmo, não se analisa enquanto acontece ao espectador. Quer é que passemos tempo com ele. O que foi pensado até à exaustão são os elementos que já o compõem, e que só pressentimos. Considerando a tóxica paisagem política neste momento, o filme sangra para séc. XXI várias vezes. Em cima de uma mota, o homem no ecrã é uma esponja de absorção ambulante. Não se dobra à melancolia que, caso contrário, o enraizaria com facilidade. Não quer olhar para trás. Talvez nem consiga. Ele é muitos ao mesmo tempo e a estrada é longa.
★★★☆☆