1. Há diversos tipos de animismo e no cinema a referência a Jean Epstein, reelaborada em função de Gilles Deleuze (leia-se o capítulo final de O que é a Filosofia?, escrito com Félix Guattari), continua a ser fundamental. Trata-se não só de uma imanência viva que reúne os diferentes reinos da natureza (humano, animal, vegetal) mas que, e isso é importante, também se estende à própria matéria inanimada (coisas e seus artefactos, nomeadamente robots e cyborgs). Transmedial – “o cinema não tem outra especificidade que não seja a de acolher certas imagens que não foram feitas para ele”, já escrevia, bem, Serge Daney em La Rampe (1983)-, o cinema poderia ser, pela sua passividade inteligente (L’Intelligence d’une Machine é o título de uma obra de Epstein, de 1946), a forma pregnante capaz de receber e ser impressionada por essa pulsão vital. Não afirmava Pasolini que o real era já por si um filme, um plano-sequência infinito em curso? Carregar no botão da câmera, em certa medida, talvez não passe de uma forma de nos tentarmos apossessar desse devir da matéria e das formas que em grande medida nos escapa.
Encontramo-nos assim no quadro de uma concepção “animista” do cinema equacionada por Jean Epstein desde 1926 em Le Cinéma vu de l’Etna. Para ele, o cinema dispersa e une “lugares” e “almas” [185] (“une todos os reinos da natureza num único, o de uma vida maior” [133]), re/vivificando o real: graças a ele, como escreve, não só “há um deus em todos os lugares” como não existem, no ecrã, “naturezas mortas” (Epstein, Écrits sur le cinéma I, Seghers, 1975 [134]). Revelando as coisas “sob o seu ângulo divino” (o seu “perfil de símbolo” em que o sentido mais profundo da “analogia” se encontrava incluído), o cinema dar-nos-ia um mundo pleno, cheio, prestes “a rebentar” [134]. Um “espantoso panteísmo renasce no mundo”, conclui (ibid.) (traduzimos, neste e nos outros casos).
No cinema mais contemporâneo esse “animismo” = “panteísmo” transformista parece adoptar duas vias: como salto do real que o cinema, nele incorporado, regista (Christophe Honoré), ou como imagem de síntese, operada no/ pelo cinema (caso da(o)s Wachowskis, nomeadamente na série Sense8 [2015/7]).
No filme de Christophe Honoré (Les Métamorphoses, 2014), a “metamorfose” surge não na “continuidade”, por “síntese” (por exemplo, efeito de morphing), mas no campo/contra-campo, melhor, nos seus “intervalos”, sendo a elipse que transporta a transformação, impondo-a como figura do mundo, ele próprio dado em estado de mutação.
O filme adopta mesmo um duplo parti pris formal: o da “trivialidade” do mito e o da “superficialidade” (material) das imagens e personagens (a “literalidade” das situações). É a assunção plena, literal, deste primeiro plano que o torna cheio de “virtualidades” (hipóteses) (vd. o despertar da jovem Europa e os seus pequenos prazeres na natureza ao som de Trophées de Baxter Dury). Sem efeitos (especiais) para dar a “metamorfose”, o real é dado já alterado, explorando as potencialidades do plano, da mesma forma, aliás, que o mito também já enforma o próprio quotidiano, sem necessitar de mediações e dispensando o 2.º grau (sempre “meta”) da alegoria.
Logo no início, depois de uma série de planos da natureza (dos seus diversos reinos: água, árvores, campos, céus), somos introduzidos numa cena de “caça”: o caçador (um moderno Actéon) dá com uma figura nua, com seios, barba e peruca ruiva, que se lava com a água de um bidão que lhe tapa o sexo – uma Diana hermafrodita (trans-sexual [vd. Tiresia de Bertrand Bonnelo, 2003]). De seguida, temos planos do caçador a fugir até parar, ofegante; segue-se-lhe o plano de um veado colocado na posição anterior do homem, agachado na terra; surgem por fim novos caçadores que disparam sobre o veado.
Não há aqui outro “presente” que não seja o do real já transformado na imagem: ao não dar a continuidade (do efeito) da “metamorfose”, Honoré, cortando o processo (mudando de plano), põe a tónica na capacidade de revelação do real pelo cinema (ou do “surreal” no sentido de Appolinaire e de Epstein, que o cita [142]). Melhor, esse estado ampliado (engrandecido) do real que é o cinema.
Com efeito, se, segundo Lucrécio e Ovídeo, o “real” é a matéria, misturada e em processo (transformação), de todas as metamorfoses (o mito é ao rés do real), não só as “imagens” são casos (hipóteses) do fluxo (devir) das formas como constituem figuras =seres do metabolismo heterológico do real (Bataille), explicitando (dando-o a ver, figurando-o) o próprio processo de mutação (alteração) da(s) substância(s).

2. Emmanuelle André e Jean-Michel Durafour, no excelente Insectes, cinéma – Le visible qui palpite (Rouge Profond, 2022), caracterizam o cinema como uma “arte entomológica” [13] que, pela imagem, procede à dissecação e análise (espectacular, monstrativa) das espécies (vivas) que se vêm depor à frente da sua lente.
Neste quadro, o insecto constituiria uma figura cinematográfica por excelência, porque “metamórfico” (devido a sua natureza plástica, mutante [Roger Caillois, Méduse et Cia [1960]), ele se constituiria como um “vector de modulação de imagens” [236]. Enquanto “dispositivo espectacular” (o que inclui o seu lado “tecnológico”, o automatismo do seu funcionamento que faz dele uma “máquina”), ele não só “veicula os poderes do cinema” como “levanta” (na condensação de tempo-espaço que é a da sua vida) “problemas de imagem” (figuração) [10] (os insectos, assim, revelar-se-iam “sítios figurativos e teóricos de invenção da imagem” [132]). Deste modo, ele precederia a uma mise en abyme tanto do cinema (vd. Phase IV de Saul Bass, 1974) como do espectador, já que se ele partilha com o cinema esse carácter de dispositivo não-humano (mecânico: tecnológico [“o insecto é o corpo do cinema como dispositivo visual” (223)]), ele tem também a ver com o lado “animal” (sujeito a sugestões e à hipnose) do espectador. Com efeito, é enquanto “insecto”, animal, que vou ao cinema “ver imagens animadas maiores do que eu”, referem os autores [223] e é esse processo de inversão fenomenológica que dão a ver (presentificam) filmes como Tarantula (Tarântula, 1954), de Jack Arnold, ou Them! (O Mundo em Perigo”, 1954), de Gordon Douglas, filmes para os quais o 3D constitui a justa medida (espectacular, imaginária) dessa “inversão” que nos afecta, inquina e transforma (vd. Attack of the 50 Foot Woman [Ataque da Mulher Gigante, 1958] de Nathan Juran).
Colocam-se aqui dois problemas: primeiro, o da sua “visão”, tanto filmá-lo, adequar-se a ele, como, interrompendo o ponto de vista do “humano” [17], “ver como um insecto” e “imaginar” como ele nos vê (e tudo à sua volta), tentando produzir as imagens dessa radical alteridade; em segundo lugar, o “insecto” tende a fazer corpo com o meio, é uma e(i)manação (animada) dele (vd. Georges Didi-Hubermann, Phasmes, 1998), uma espécie de GIF, efeito especial digital (ele faz corpo com o digital, é sempre um bug na imagem) no tecido da natureza de que também nós fazemos parte: “o ser vivo e o seu meio envolvente formam uma só coisa e isso constitui o verdadeiro ser vivo concreto”, resume Kinji Imanishi (O mundo dos seres vivos. Uma teoria ecológica da evolução, 1942 [apud André/ Durafour (234)]). Deste ponto de vista, o “insecto” constitui, no âmbito de uma concepção animista das coisas, um efeito vivo de cinema.
Concluindo com André/ Durafour, “o insecto é um outro nome para a experimentação visual na imagem cinematográfica” e coincide com ela “na medida em que desenha e define os traços de uma antropologia possível do in-humano” [234] (sublinhamos).
La nuée (2020) de Just Philippot começa com a imagem de um poliedro iluminado, visto de cima e como que perdido, a boiar num espaço nocturno denso e escuro. Um zoom aproxima-nos dessa forma onde, com corte, uma porta se abre e onde se entra com o personagem feminino: Virginie (Suliane Brahim), mãe viúva de dois filhos (Laura e Gaston) que se dedica à criação de gafanhotos para a produção de farinha destinada à alimentação de animais. A atmosfera dentro do igloo é esfumada, esverdeada, como se vista através de um filtro que ajuda a criar a situação de imersão do espectador. Para o realizador, esta forma (volume) devia constituir um índice de “estranheza” que abrisse ao Fantástico e ao género da Ficção Científica.
Seguem-se vários planos que introduzem um ponto de vista de “exterioridade”: planos do poliedro, de Virginie a trabalhar no seu interior ou dos filhos (tudo visto de fóra, num ambiente diurno).

Mas surgem também os primeiros planos com insectos: os que Virginie manuseia, individualizados, formando pequenos cachos ou pousados numa placa, quase incandescentes. Mais adiante ela oferece insectos grelhados (temperados com paprika e gengibre) a um comprador, esboçando-se uma primeira inter-relação orgânica (gástrica) entre as duas naturezas (mundos). Pouco depois temos planos do filho, Gaston (Raphael Romand), na estufa: nessa sequência, o uso de grandes-planos (ou do zoom) que amplia o corpo do insecto (a cabeça) e os dedos da criança, produz um efeito de indistinção entre a matéria de um e do outro, dando a ver o amálgama de uma substância (carne) quase comum. Agora é o gafanhoto que se nutre da gordura da pele do rapaz.
A esta sequência corresponde outra em que Virginie desmaia, ferindo-se, ao destruir armações com insectos: quando acorda, dá conta de que estes cobrem o seu corpo e sugam o sangue tanto nas prateleiras como nela. Tudo tem assim a ver com a alimentação, um processo que contém em si diferentes momentos: uma “abertura” (de si ao outro), uma “devoração” (deglutição) e uma “incorporação” que funciona nos dois sentidos: entrando no meu sistema, organismo, o outro muda-me, como eu o mudo transformando-o em mim. Aliás, este não é um processo solitário já que se envolve num conjunto de transações (alimentares) de que se compõe o tecido vivo do mundo (tópico discutido por Virginie com Karin [Sofian Khammesas], o vinicultor que a ajuda, quanto ao valor proteico dos insectos como alimento).
Depois de várias imagens soltas de insectos (nomeadamente a alimentar-se uma borboleta e depois uns dos outros [Franck Victor, um dos argumentistas, refere-se ao carácter “aterrorizador” de um filme em que se vê um insecto a “devorar mecanicamente” uma folha]), sobre o fundo de uma música orquestral em que vai subindo de tom o ruído da estridulação dos insectos, temos a primeira manifestação da sua mutação (tornam-se mais violentos, enérgicos) quando embatem como massa contra a tela da estufa, ao sentirem a proximidade de Virginie: o apelo é o do seu sangue que provaram e que os fortalece. Sacrificialmente, Virginie oferece o braço ferido ao enxame de modo a aumentar a produção e assim obter uma farinha mais espessa, como lhe fora pedido.
Noutro plano Virginie retira com uma pinça partes de insectos que entraram no seu corpo, testemunhando a confusão entre as duas espécies e a sua própria meta(intro?)morfose – operação que se continua na imagem com a passagem a um cinema mais denso, háptico e pluri-sensorial, que evolui num crescendo tanto sonoro como luminoso (a estufa é não só um aquário de mutações mas também uma caixa de reverberação e um condensador de luz).

A sangria, trans-mutação (vampírica) de Virginie com os insectos, continua, numa progressão que é dada mais sensorialmente (pela cor, textura da imagem e som) do que pela “figuração”: o local da mutação, a estufa, com a sua luz filtrada esverdeada, aliás, assemelha-se a um estúdio fotográfico e o processo em curso ao da revelação da imagem que, porque tão extraordinária (escandalosa), se encontra para lá de qualquer figuração.
Numa fase mais industrial do processo (já que a produção vai crescendo), Virginie alimenta com sangue (que compra) massas de gafanhotos que encerra dentro de grandes sacos que Laura (Marie Narbonne), a filha, num ataque de fúria (quer sair dali porque, segundo ela, o lugar “tresanda a morte”) rasga: os insectos fogem e formam uma nuvem que ataca Gaston e mais tarde devora a cabra, Huguette – marca da presença do pai, falecido, e de um tipo mais tradicional de agricultura e criação, menos invasivos da natureza. Na verdade, se os insectos “mutam” com a absorção do sangue humano (Philippot refere-se à influência de The Birds [Os Pássaros, 1963] de Hitchcock no filme), o que sucederá à criação que come essa farinha e, claro, aos “humanos” que se alimentam dela? Toda a natureza se encontra potencialmente alterada pelo sangue desta mutação transgénica.
Numa entrevista com o biólogo Christophe Lavelle (incluída no dvd do filme), Philippot admite que poderia existir uma espécie de mimetismo simpático entre a câmera e o insecto que, através de determinados processos (como o grande-plano), permitiria que a mutação do insecto se desse “naturalmente” – por uma metamorfose sem saltos, na continuidade, que revelaria a sua organização (maquinaria) espectacular -, fazendo assim corpo com o próprio cinema (é o caso paradigmático, pensamos, de Phase IV de Saul Bass).
Contudo, as coisas não se passam aqui bem assim.
Como referimos, Virginie entra também num processo de mutação: o seu sangue torna-se negro, espesso; o comportamento muda, torna-se irrascível; dá o cão do vizinho aos insectos e mata uma vaca para a sangrar; por fim, oferece-se ela própria aos insectos (é assim que Laura a vê, nua, coberta de gafanhotos e com o corpo em chaga).
Karin, alertado por Laura, entra na estufa (laboratório), vê o corpo morto do dono do cão e lança fogo aos vários pavilhões, libertando enxames de gafanhotos, que, em massa, enegrecem a própria noite e atacam a casa em que se abriga Laura enquanto a mãe procura apagar o fogo. No entanto, os insectos entram na casa, matam Karim e perseguem Laura que consegue fugir para o lago, escondendo-se de baixo de uma canoa que os insectos também atacam. À convulsão dos elementos (água, vento, nuvem de gafanhotos) em torno de Laura só pode responder outra convulsão de que Virginie se torna agora o epicentro, avançando ensanguentada, água dentro, para atrair os insectos. Quando Laura sai de baixo da canoa vê a mãe envolvida pela nuvem dos insectos que criam uma zona de caos em que os elementos se confundem e alteram.
Se Virginie cria insectos com sangue, Karim compara o vinho que produz com o seu sangue: temos assim dois processos eucarísticos de trans-substanciação, do sangue num corpo e deste de novo em sangue, que levam à formação de novas espécies, talvez uma outra natureza mas também uma nova concepção do “humano” (melhor, do trans-humano).
Daí a importância neste filme, como na curta Ses Souffles (2015) (onde uma mãe sem casa, que vive num carro, quer fazer uma festa de aniversário à filha), da “família” (afinal, outro casulo, estufa, para a criação, mutação, da espécie). A relação entre Virginie e Laura (sobretudo), ou com os animais (a cabra do pai ou os insectos), faz delas uma espécie de Sagrada Família, sem pai (Karin faz um pouco as vezes de São José) e com a cabra em vez do burro (também ela “sacrificial” como o Balthazar de Bresson). Uma relação que só se pode re-fazer pelo sangue: a oferenda (sacrifício) de Virginie aos insectos que, contudo, a deixam viva – sinal, talvez, de que também eles anuem, e se integram, nessa regeneração do ciclo.
Mas também as imagens têm que sangrar, se regenerar noutros corpos mudados, para que a “forma do cinema” se altere, transmute, e estabeleça outras conexões (áleas do possível) consigo e o mundo.
3. O ponto de partida é este: talvez o cinema não seja uma excrecência tecnológica da contemporaneidade mas um órgão ciborgue, dispositivo orgânico gerado pela natureza não apenas para se observar e registar as suas fases de evolução mas para intervir no seu próprio processo contínuo de auto(e hétero)engendramento e metamorfose. Daí a ideia de que o cinema pode corresponder a um ponto de vista interior à matéria (Deleuze observa que, no caso de Vertov, o “olho da câmara” é um “olho na matéria” [L’Image-mouvement, Minuit, 1983 (60)]), o que faria dele o decalque maleável do movimento das coisas (Bazin) ou o plano-sequência em curso do mundo (Pasolini) – numa palavra, uma escrita da terra (terrestre) (Epstein). Não é assim de estranhar que uma alteração da atmosfera (meio, banho de emulsão) do cosmos produza também um cinema diferente. Como escrevia Serge Daney a propósito de Godard (“O Aterrorizado”), o seu destino é o de receber impulsos (heterogéneos) que dão origem a imagens (formações) e/imanentes ao próprio processo e que não foram feitas para ele (O cinema que nos faz escrever – Textos críticos, Angelus Novus, 2015 [87]). A sua “natureza”, a haver uma, é sempre composta de estranhezas.
Um conjunto de obras (autores) tem desenvolvido essa tendência de um cinema metamórfico que se muda a si próprio com as transformações de que dá conta e que o percorrem, transfiguram. É o caso mais recente de um conjunto de filmes de Ficção Científica fantástico-ecológica francesa – de Titane (2021) de Julia Ducournau a La nuée e Acide (Ácido, 2023) de Just Philippot ou Le règne animal (O Reino Animal, 2023) de Thomas Cailley -, conjunto a que podemos acrescentar o caso de Gareth Edwards com Monster (Monstros, 2010) e The Creator (O Criador, 2023).
Corresponde-lhes, por alto, um cinema não do “plano” mas de uma continuidade, fluxo (intenso e convulso) de imagens de que o plano, então, como um elemento levado pela corrente, sai sempre engrandecido.
Em Acide, por exemplo, os planos mais autónomos constituem vistas panorâmicas da natureza em que os elementos surgem como que à espera do turbilhão de formas, matérias, que os continuam e atravessam e de que eles reemergem depois sempre alterados. Uma espécie de imagem-vórtex (Pound), aqui veiculada pela “chuva” que se abate corrosivamente sobre tudo e que con/funde dinamicamente a serenidade (extática) dos céus de Constable com a turbulência indiferenciadora (mas “pontilhista”) das catástrofes (naturais) de Turner.
Um cinema, portanto, atmosférico, eco-biológico (orgânico) e animista que é o que talvez melhor dá a ver, e nos apresenta performativamente, as vagas de fundo e mutações em curso do nosso tempo. Um cinema profético, por isso.
Por três vezes em Le règne animal de Thomas Cailley é repetido um aforismo de René Char: “Aquilo que vem ao mundo para não disturbar não merece consideração nem paciência” (Fureur et Mystère, 1948).
É esse o ponto em que se coloca o filme de Cailley (realizador de Les Combatants [Os Combatentes, 2014] e de uma série de FC para o canal francês Arte, Ad Vitam, em 2018): o da mutação, metamorfose.
Se de início a relação com o “estranho”, “outro” (diverso) – os mutantes, resultantes de uma animalização, devir-animal, do “humano” -, é ainda trabalhada em campo/contra-campo (logo na abertura, com o homem-pássaro ou na visita do pai e filho à mãe, “leonina”, no centro que a abriga) progressivamente essa diferença tende a desaparecer. Com efeito, ao contrário das mutações de Cronenberg (The Fly [A Mosca, 1986], por exemplo), aqui a mutação (orgânica) não se limita ao indivíduo mas pluraliza-se (em várias hipóteses, quimeras, espécies), ganha e transmuta a própria natureza – que é, por excelência, o “reino animal” (na floresta confundem-se genericamente os diversos elementos: água, terra e ar) –, fazendo do “homem”, no final, não a “medida das coisas” mas uma das suas peças, hipóteses, e não necessariamente a melhor.

O processo do filme encontra-se, aliás, contido (e cifrado) no nome do filho, Émile (Paul Kircher), que remete, claro, para o título da obra de Jean-Jacques Rousseau, Émile ou l’Éducation (1762): trata-se aqui, de facto, de uma “dupla educação”, a de Émile, que tem de aceitar a sua mutação e viver com ela, mas também a do pai, François (Romain Duris) – e já nem se fala da sociedade – que tem de aprender a libertá-lo, soltá-lo no seu meio ambiente, a natureza (floresta), de que ele é um nó orgânico. Deste ponto de vista o projecto de O Reino Animal não é o de L’enfant sauvage (O Menino Selvagem, 1970) de François Truffaut já que ao projecto de “hominização” do “selvagem” do segundo contrapõe-se aqui a “animalização” do homem no processso.
Face a este imperativo de mutação generalizada o cinema – pela miscigenação das técnicas/ formas e pela “naturalização” dos efeitos especiais (virtuais) (aqui, por assim dizer, “realistas” na sua estranheza) – tem ele próprio de se transformar (mutar): “O vivo é isto: ele é imprevisível e fundamentalmente mutante”, afirmou o realizador aos Cahiers du Cinéma (n.º 802/outubro de 2023), inserindo-se claramente na linha de animismo deste tipo de cinema.
Outro caso curioso neste contexto de um cinema metabólico (e por isso mesmo metamórfico) é Bug (Praga Infernal,1975) de Jeannot Szwarc: um filme sobre a mutação de um insecto das profundezas, do tempo e da terra. De início, um tremor de terra traz ao de cimo uma espécie antiga, cega e de uma compacidade quase metálica que tem a propriedade de, pela fricção dos élitros, produzir chama, desencadeando assim fogos por onde passa (neste aspecto o filme insere-se em parte no sub-género dos filmes de “combustão espontânea” como o de Tobe Hooper [Spontaneous Combustion,1990]).
Um professor (e potencial “mad scientist”), James Parmiter (Bradford Dillman), numa caixa de pressão construída para o efeito, consegue cruzar uma barata (macho) normal com a espécie milenar (bissexual), levando-a a reproduzir-se: o mais curioso é que o produto da hibridização não só ganha novos poderes (devora carne crua) como se torna inteligente, comunicando e agindo em grupo (formando figuralmente “cachos”).
Sabe-se que não só o homem como a imagem são “espécies mutantes” (Schefer) e que os filmes de metamorfoses (a câmera de pressão funciona, claro, como figura do cinema) criam os seus protótipos (cobaias) para fazer mutar as formas do cinema. Assim, com a passagem da forma (espécie) primitiva dura (quase metálica, inorgânica) para outra mais maleável e plástica (orgânica, inteligente) passa-se também de um cinema mais linear, de “corpos sólidos” – mais geométrico e abstracto (vd. The Monolith Monsters [1957] de John Sherwood) – a um cinema de terror (mais gore) orgânico – nomeadamente na forma como os insectos invadem e se introduzem no corpo humano (tanto os ataques ao ouvido ou cabelos da mulher como a morte lenta, por queimaduras, de Sylvia que evoca Os Pássaros de Hitchcock); passa-se ainda de um cinema em que a ameaça é “exterior” a outro em que ela é “interior”, vindo do próprio corpo (caso do primeiro Cronenberg com Shivers [Calafrios, 1975] e Rabid [Coma Profundo, 1977]).

Também do ponto de vista “formal” (da mise en scène), na última meia hora, sempre em crescendo, o filme passa de um funcionalismo narrativo (Swarc vem da televisão) para uma maior densidade (cores escuras – sobretudo castanhos -, planos aproximados de James ou dos insectos) criando uma atmosfera claustrofóbica (o operador de câmera é Michel Hugo, que trabalhou em Model Shop [Modelos de Aluguer, 1969] de Jacques Demy que anuncia Bug [2006] de William Friedkin). Não é também indiferente ao tom geral do filme, para lá das sequências com insectos de Ken Middlehan, a fusão da banda sonora electrónica de Charles Fox (Barbarella [Barbarela, 1968] de Roger Vadim) com o ruído frenético dos élitros dos insectos.
A certa altura, os insectos comunicam com James (que passa também ele por um processo de “des-humanização”), escrevendo com os seus corpos na parede o seu apelido (que é também o nome da espécie) assim como a proclamação “WE LIVE”.
No final, a nova espécie regressa à cratera de onde as suas formas primitivas tinham vindo e de onde, depois de a terem incendiado (iluminado) por dentro, saem como formas leves, voadoras. As últimas imagens são de James em chamas caindo na cratera que se fecha sobre ele e a que os insectos voadores voltam.
Para lá da singularidade do filme de Jeannot Szwarc (recentemente falecido), ele é também a prova de que William Castle (esta é a sua última obra como produtor e co-argumentista, com Thomas Page) sempre soube evoluir, acompanhando as transformações do cinema que, em vários aspectos, ele antecipa.
4. Também para a(o)s Wachowski (Lana e Lilly) o Cinema, expressão de um “panteísmo moderno” (Epstein), configura-se como uma “escrita terrestre” (Epstein).
Dito ainda de outro modo, agora com Antonin Artaud (Pour finir avec le jugement de dieu, 1947), um “teatro da crueldade” entendido como “génese da criação” em que “não se brinca/aje-se”, pelo que “em cada representação” se ganha “corporalmente/ qualquer coisa” (Gallimard, Poésie, 2003 [104/5]) (traduzimos). Se o “homem” (o “humano”), devido à inutilidade (do funcionamento reprodutivo) dos órgãos (“não há nada mais inútil do que um órgão” [61]), se encontra “doente” (“porque está mal construído” [60]), então, como em relação ao real (“porque a realidade não está acabada” [68]), há que o refazer/ reconstruir de modo a pô-lo a dançar (“fazer enfim dançar a anatomia humana” [171]) e a dançar diabolicamente, isto é, ao contrário (“e esse averso será o seu verdadeiro a direito” [61]). Ter-se-ia assim, com esta nova poética – que sabe que “não há mais nada de existente e real/ do que a vida física exterior” [68] -, também um novo tipo de obra: “uma obra nova a que se prendem certos pontos orgânicos da vida,/ uma obra/ em que se sente todo o sistema nervoso/ iluminado como um fotóforo/ com vibrações/ consonâncias/ que convidam/ o homem A SAIR” [91].
Empédocles, no Fragmento 117 das Purificações, já escrevia: “Porque eu já fui um dia rapaz e rapariga/e planta e pássaro que soube encontrar o caminho para fóra do mar” (Seuil, Points, 2003 [71]), enquanto Jean Louis Schefer, em Du monde et du mouvement des images , constatava que a imagem de cinema nos revelara sermos uma “espécie mutante”, alterada metamorficamente pelo “poder das imagens” e “a realidade dos simulacros”(Cahiers du Cinéma/ Éditions de l’Étoile, 1997 [21]).
Uma imagem constitui assim um factor experimental e universal de transformação antropológica na sua dupla dimensão de metabolização mutante e de encarnação (corporização) local, transmorfa e transgénica (nessa linha Scott Bukatman caracteriza o “virtual” como uma “animistic view” que manifesta o poder mutacional da mente sobre o mundo [Terminal Identity – The Virtual Subject in Post-Modern Science Fiction, Duke University Press, 1933 [210]).
Inscrito no movimento do mundo (circulação de átomos=simulacros [Lucrécio]), o cinema, “polimorfo e plurisémico” (Bukatman), constituiria um processo de morphing permanente, preparando, como já o pensava Epstein, as “novas sínteses” (melhor, catacreses) em acção de um devir futuro. The Fiction is already there. The writer’s task is to invent the reality, precisava James Ballard na Introdução de Crash (1973) (apud Bukatman [117]).
Ou seja, aproveitando a situação de circulação livre, solta e disponível, de matérias e formas, produzir a nova realidade de híbridos de corpos e imagens com bocados de coisas (do real e do imaginário) neles incorporados e movendo-se no quadro de instalações-ambiente em devir (uma matriz encarnada e transmorfa) que interferem e se intersectam com o plano do real (quotidiano) transformando e reconfigurando, termo a termo, o estado material e político do mundo.
Apontamos aqui, portanto, para um novo tipo de obra (não apenas intermedial) que The Matrix [1999], enquanto “arborescência narrativa” em diferentes dispositivos e registos (jogo-vídeo [Enter the Matrix, 2003], animação [Animatrix, 2003], conjunto de filmes [uma primeira sequência de 3 filmes entre 1999-2003 e depois Matrix Ressurrections, 2021], etc), em si configura: “o mundo-Matrix é um laboratório”, “um laboratório de experiências sobre as noções de obra, cinema, média, imagens”, comenta Ève Le Louarn em “Le cinéma ne suffit plus. Le monde-Matrix” (Maxime Scheinfeigel [ed.], Le Cinéma et après?, Presses Universitaires de Rennes, 2010 [213]).
A série televisiva Sense8 das Wachowski (duas temporadas entre 2015/7 [referir-nos-emos sobretudo à primeira]) constitui um bom exemplo dessa prática de síntese das imagens.
No caos do mundo real – mapeado pela dispersão geográfica das intrigas: São Francisco, Chicago, Londres, Seúl, Nairobi, México, Berlim, Mombai (índia), Islândia, assim como pela diferente situação social dos personagens: um(a) hacker transgender, um polícia, uma DJ electro, uma executiva, um camionista, um actor, um gangster e uma física -, o tipo de “sujeito” que aqui encontramos (se é que o encontramos e o dispositivo de “re-subjectivação” local dos afectos e géneros da série não procura mesmo, na linha do pensamento de Félix Guattari [Chaosmose, 1992], fazer explodir esse conceito), caracteriza-se sobretudo pela sua “hiper-sensibilidade”/“nervosismo” (“like an exposed nerve on a broken tooth”, como afirma a DJ Riley) que o abre à res/sonância com o mundo.

O universo dos sensate corresponde assim a uma concepção sensorial-emotiva-afectiva de cinema pensado e praticado como “hipnose” (alucinação) dos sentidos: “o realizador sugere, e depois persuade, hipnotisa. A película não passa de um mediador entre essa fonte de energia nervosa e a sala que aspira a sua irradiação”, escrevia já Epstein em 1921, em Bonjour Cinéma (op.cit. [97]). Uma concepção encarnada do “simulacro” mais próxima de Deleuze (Lucrécio + Zola) do que da “hiper-realidade” de Baudrillard (o momento Matrix da obra da(o)s Wachowski).
“A arte começa talvez com o animal”, sugerem Deleuze/Guattari em O que é a Filosofia? (Presença, 1992 [162]), e isto talvez porque lhe corresponde um “mundo de sensações” que situa o “animal” (assim como o “homem estético”) no mundo ao mesmo tempo como um seu prolongamento animista e a sua caixa de ressonância – o lugar de uma inteligência vegetativa-sensitiva, sobretudo emocional, como a equacionada, ainda em 1921, para a poesia e o cinema, por Jean Epstein em La Poésie d’aujourd’hui. Un nouvel état d’intelligence (cap. 16, “La Vie végétative”). Continua Akira lippit (Electric Animal, 2000): “o cinema seria a metáfora tecnológica que configura mimeticamente, magneticamente, o mundo outro do animal” (citado por Raymond Bellour em Le corps du cinéma -hypnoses, émotions, animalités, POL, 2009 [41]). Ele constituiria assim um dispositivo de simulação= nstalação imaginante desse ESTAR (sensasorial) do indivíduo (?) no mundo.
É essa a situação dos personagens de Sense8 (foneticamente, “sensate”): indivíduos que, como é dito, possuem um “sistema nervoso comum” (o psycellium), constituindo, no seu conjunto, um sujeito múltiplo, rizomático (Deleuze)/plasmático (Eisenstein), dado numa relação de partilha, migração e teleportagem das suas personalidades e poderes dentro do grupo (“cluster”).
Personifica-o o caso paradigmático do transgender Michael>Nomi (Jamie Clayton), uma hacker activista da zona de São Francisco que sofre, segundo o neurologista de serviço que a (o) pretende operar, de um “undifferentiated lobal syndrome”, em função do qual as duas partes (massas) do cérebro (responsáveis pelas dicotomias razão/emoção, masculino/feminino, etc) tenderiam a unir-se, proporcionando sinestesias, alucinações, perdas de memória e, portanto, de “identidade” (um efeito de “re/união narcísica” assemelhado no 1.º episódio ao de uma droga natural/genética, o DMT [dimetiltriptamina]: “simple mollecula presente in all living things”, “part of an eco-biological syneptic network” – “when people take it, see things… talk of true connection, transcendance”).
A questão que aqui se coloca é a da separação ou não dessas duas partes do cérebro tendo em conta um conceito social (e sexual) de “normalidade”.
Com efeito, separados, os sensate procuram o seu “andrógino” (Platão vs São Tomás de Aquino [citado pelo médico]) e são as imagens que, intersectando-se, pelas sinapses e rimas (ritmos) que criam (como em Cloud Atlas [2012]), produzem essa fusão (unidade) com o(s) outro(s) (vd. no episódio 6 a cena de sexo=orgasmo colectivo) (No entanto, enquanto em Cloud Atlas a associação se faz por justaposição=montagem, em Sense8 a interpenetração dos tempos e lugares faz-se no plano).
Trata-se, contudo, de uma “fusão” que mantém as diferenças e produz “saltos”. Como afirma a mãe (professora na Universidade de Berkeley) da amante de Nomi, “evolution” exige “variation”, ou seja, contacto (psíquico, carnal) com a “diferença”. Assim, tendo em conta o “mosaiquismo genético” dos personagens, à sua “intersexualidade” (caso de Nomi) corresponde uma “sexualidade estratificada” e uma “imagem multiestrato” que lhes comunica a conformação compósita de um palimpsesto em que se sobrepõem e interferem géneros, histórias e memórias: “o projecto seria o de substituir a noção de fronteira pela de interconexão ou de permeabilidade: os sólidos pelos fluidos, o opaco pelo transparente”, comentam Maria Klonaris/Katerina Thomadaki (“Doubles et insoumis.es du genre: intertextualité et intermédia”, em Catherine Buci-Glucksman [ed.], L’Art à l’époque du virtuel, L’Harmattan, 2003 [213]).
Estes seres “mutantes” (“monstros prometedores”), os sensate (“What is the human?” é o título do 10.º episódo), com o seu lirismo desesperado, são já o futuro, as “novas formações” de uma realidade a vir (“Just turn the wheel and the future changes”, título do 11.º episódio). Deste ponto de vista têm o estatuto utópico do cyborg defendido por Donna Haraway, em 1991, no ensaio-manifesto “A Cyborg Manifesto – Science, technologie and socialist-feminism in the late 20th century” (citamos de David Bell/ Barbara Kennedy [ed.], The Cybernetic Culture Reader, Routledge, 2001). Para Haraway, com efeito, o cyborg, colocando a questão “What it means to be embodied in a high-tech world?”, constitui a figura do novo arranjo=configuração do sujeito, textualizado e reescrito pelo novo quadro da numerização=digitalização técnico-industrial da nova sociedade (Haraway [294/5]).
O cyborg surge assim como uma “quimera”, um “híbrido”, “puzzle”=”mosaico” [313], ou seja, uma prática livre de construção/desconstrução de entidades e fronteiras levada a cabo no quadro de narrativas (ficções) libertas do mito de “origem” (da nostalgia de uma pureza identitária ou natural [291]) e desprendida da exigência de um “todo” (da unidade, verosimilhança e transcendência do sentido [297]). Trata-se, enfim, de uma figura livre do drama (tragédia) da “diferenciação ontológica” [292, 323], assim como da “fatalidade do Édipo” (Guattari): uma figura “bastarda” e decididamente post-gender [292, 315]. Também no que diz respeito ao cinema, a série constitui um objecto (dispositivo) experimental e mutante através da diversidade das suas referências: ao cinema de “acção” (Van Damme e Schwartzneger [Conan]), às “artes marciais” e ao “musical” (Fred Astaire mas também Bollywood) e, claro, o “melodrama” (a telenovela mexicana, pelo personagem de Lito). Segue-se, ao fim e ao cabo, o lema do árbito de kick-boxing: “não há géneros”, funcionando a música (Riley é uma DJ) como a forma de “ligação” do conjunto.
Como o cyborg, os personagens de Sense8, no plano político, através do seu poder de “sobrevivência”, vivendo e combatendo as redes e dificuldades do real (e já não apenas no “universo de simulação” de Matrix), selam (constroem) “a network of strategies and of identities” (Haraway [307]). The issue is dispersion, conclui ainda a autora [308].
5. A certa altura de Eureka (2023) de Lisandro Alonso, o avô Sioux diz para a neta, Sadie (Sadie Lapointe), que só o “espaço” existe (já o pretendia Descartes, para quem a “matéria” era res extensa), sendo o “tempo” uma “ficção” dos homens.
Também o western foi durante muito tempo sobretudo um cinema do “espaço” até, a partir dos finais da década de 50 do século XX, se problematizar, redundando a paralisia da acção (por muito neles se pensar), ou a bifurcação (sem destino) da acção, na presença (física) das coisas na imagem ou na persistência (por vezes agónica) da sua duração (algo que os westerns de Monte Hellman – The Shooting [Duelo no Deserto] e Ride in the Whirwind [A Vingança do Pistoleiro], ambos de 1966 – bem exemplificam).
Lisandro Alonso marca ostensivamente essa “dobra” (mutação) do cinema na primeira parte do filme citando o género do western (o segmento inicial com Viggo Mortensen) e reduzindo o seu lado épico e horizonte panorâmico (paisagens só nocturnas ou nevadas) em consequência da adopção de um formato menor, anterior ao cinemascope, e fazendo-o depois passar pelo ecrã de um televisor caseiro. Dupla mediação (redutora), portanto, a da TV e a que tem a ver com a concepção contemporânea, arquivista e crítica do género, ligada ao personagem, Maya, de Chiara Mastroianni.
No entanto, hoje nota-se uma vontade de regressar a uma concepção de cinema como extensão (em sintonia com a horizontalidade do mundo) que tanto pode adoptar uma versão mais “extática” (sobretudo no Oriente, pense-se em Naomi Kawase [Shara, 2004] ou no recente Aku wa sonzai shinai [O Mal não existe, 2023] de Ryusuke Hamaguchi) ou uma “animista” (o caso, pensamos, do filme de Alonso).
Sintomaticamente, tanto aqui como no filme de Hamaguchi (ou mesmo no de Kawase) é a “ausentação” de um personagem – criando e dando a ver no plano o espaço que deixou de ser ocupado (por Sadie ou Hana) e levando ao seu rearranjo – que evidencia o “nada” que serve de fundo e suporte à imagem e que constitui a substância/meio (algo como o “5.º elemento”, o vazio fértil da filosofia tradicional chinesa) tanto da “trans-substanciação” (mudança de género, espécie) das imagens como da sua “(re)animação” e “transmigração” (de Sadie e do rapaz do último segmento do filme).
Operação re/generativa, quase alquímica, que é a do cinema, do cinema como processo de metamorfose como pretendia Edgar Morin, opondo Méliès aos Lumière, com o seu cinema da “reprodução” (mimese). O voo do pássaro Eureka, que liga os dois últimos segmentos do filme, é gesto e figura do processo do cinema: assim, na primeira mutação, ao plano das penas no sofá em que Sadie se encosta para morrer, sucede o da ave já a levantar voo.

Este é um cinema, concluindo, que dá corpo (imagens) às promessas de Jean Epstein em Le Cinématographe vu de l’Etna (1926): o cinema entendido não como uma “elaboração segunda” sobre o real (uma metáfora ou alegoria) mas a “revelação” (descoberta), ainda que por um “truque” (operação material à vista [Méliès]), do seu carácter pleno e vivo. Dissemo-lo, uma escrita terrena.