A sétima longa-metragem de Alain Guiraudie, co-produção da portuguesa Rosa Filmes, começa no interior de um carro, uma viagem por zonas campestres que terá como destino Saint-Martial, uma comuna francesa na região sul francesa. Como revela o cineasta, por vezes, no filme a câmara subjectiva-se (é o caso) para este acto de “pôr-se na pele” de cada uma das suas personagens, de ver o mundo através do seu ponto de vista. Neste início viajamos pela mão e olhar do protagonista Jérémie (Félix Kysyl) que regressa àquele local para o funeral do seu antigo patrão, um padeiro da zona, com quem trabalhou desde bastante jovem. Aí vai reencontrar-se com o filho deste, um ex-colega de escola, Vincent (Jean-Baptiste Durand) e sua mãe, viúva do falecido, Martine (Catherine Frot), em casa de quem fica hospedado.

Por natureza, os regressos provocam frequentemente um reavivar de memórias e, sobretudo, uma perturbação do equilíbrio dos “ecossistemas” relacionais. Guiraudie começa por assentar o seu olhar suavemente destruidor nesse mosaico de personagens, formulando questões sem se certificar das respostas: qual a verdadeira relação de Vincent com o seu patrão? E com o filho deste? Qual o real motor deste regresso? Como se estabelece a relação passada (e futura) com o espaço campestre de Saint-Martial? O passado parece incerto e sem nitidez: poderá a memória ser esse plano esfumado, sem nenhuma profundidade de campo?
O célebre whodunnit de Hitchcock surge aqui transformado numa espécie de “whodesireswho”, sendo esse trajeto libidinal o verdadeiro suspense trágico que pode gerar corpos, vítimas e amores por concretizar.
Mas a Guiraudie interessa sobretudo o poder do desejo. A dado momento, uma das personagens é assassinada e depois enterrada. Dada uma certa conexão com os espaços da ruralidade local e esse corpo morto, Miséricorde (Misericórdia, 2024) tem sido visto como o The Trouble With Harry (O Terceiro Tiro, 1955) de Guiraudie. Mas no filme de Hitchcock havia um jogo de descoberta do culpado, com um toque cómico, onde o corpo morto activava um olhar sobre a vida local de um vilarejo de Vermont. Não é que o morto no filme de Guiraudie não tenha esse condão de nos fazer entrar nessa dinâmica pachorrenta da vida de Saint Marcial — não é por acaso que se sucedem as cenas à mesa da cozinha, os passeios lentos ou a presença desse lugar tão apaziguador quanto carregado de tensão que são os luminosos bosques (Guiraudie filma-os como ninguém), plenos de conversas a sós e cogumelos por colher — mas aqui o suspense e a comédia são substituídos pela atracção dos corpos e pelo jogo de desconstrução entre culpados e vítimas.
Peço de emprestado, provavelmente de forma abusiva, a célebre noção de economia libidinal de Freud e Lyotard, pois esta parece um bom termo para definir qualquer coisa de invisível que vai guiando o avanço da narrativa na forma como o desejo das personagens atrai ou repele os corpos. Assim, o célebre whodunnit de Hitchcock surge aqui transformado numa espécie de “whodesireswho”, sendo esse trajecto libidinal o verdadeiro suspense trágico que pode gerar corpos, vítimas e amores por concretizar. Como esse desejo não conhece norma, separação conveniente, estereótipo de idade, género ou profissão, o lugar do espectador é então o de um detective sentimental em busca de descobrir o que faz mover cada uma das personagens. Aqui, em particular, Guiraudie quer que a sua câmara, a dado momento, tome o lugar de um suposto desejo interdito — o padre da região está apaixonado por uma das personagens — precisamente para, parece-me, destruir um desses espaços normativos no interior do qual o desejo sexual e o amor carnal não podem entrar.
Guiraudie, nessa mesma entrevista que venho referindo, aborda esse conceito importante para o filme, a noção de “escopofilia”, uma relação erótica consumada através do olhar. Em Miséricorde, ao contrário do excelente L’Inconnu du lac (O Desconhecido do Lago, 2013), as personagens desejantes não concretizam o seu amor e parecem bastar-se na proximidade do amado, na possibilidade de o olhar, de estar perto, de dar a mão. Mas, como vem acontecendo no cinema do francês aqui, e em particular no filme de 2013, o desejo e a morte estão perto um do outro. Para além das naturais “paisagens chabrolinas” que este filme procura habitar, diga-se que afinal parece não estarmos tão longe de Hitchcock: menos na mecânica e mais na vontade de explorar o tema da culpa.
Na melhor cena do filme, o pecador confessa-se ao criminoso, num jogo de inversões do remorso, tanto para partilhar dessa culpa e dessa dúvida, como para estar perto dele. Sob a batuta do desejo, ambos, pecados e crimes, parecem equivaler-se numa vivência que os procura, racionalmente, apaziguar. Talvez por isso, ao contrário da destruidora culpa de Dostoiévski, o filme termina com essa nota “misericordiosa”: na vida de Saint-Martial o desejo é máquina que acolhe/recolhe as suas vítimas. E tudo parece continuar.
★★★★☆