O teu nome é Rosetta. O meu nome é Rosetta. Encontraste um emprego. Eu encontrei um emprego. Tens um amigo. Eu tenho um amigo. Tu tens uma vida normal. Eu tenho uma vida normal. Tu não vais cair numa rotina. Eu não vou cair numa rotina. Boa noite. Boa noite.
Rosetta (1999)
Aurora, a protagonista de On Falling (2024), tem um nome que evoca o nascer de uma certa luz, ou de alguma revelação de esperança por um novo caminho. Luz e esperança são precisamente duas coisas que faltam à sua volta, no seu emprego como colectora de armazém numa cidade cinzenta e fria na Escócia, onde passa os tempos de trabalho sozinha na sua tarefa, os momentos de pausa a olhar para o telemóvel, e os tempos numa casa partilhada com breves instantes de socialização que só acentuam a sua solidão. É um filme onde a falta de luz natural, aliada à falta de espaço pessoal, é uma constante lembrança da opressão que o trabalho – particularmente um que apenas permite sobreviver – rouba tempo, retira energia e afunila perspectivas futuras. São dias que se repetem quase iguais, rotinas de enganar a alma de que tudo irá ficar bem, que outra coisa virá porque para já o horizonte é apenas sobreviver a esta semana. A luz escasseia, não há espaço ou intimidade para imaginar uma saída, apenas o suficiente para respirar sem ceder à claustrofobia dos dias, mas até o ar vai escasseando – a queda que o título evoca não é repentina, antes constante, é uma espécie de “morte” por mil cortes.

Este não é um filme de grandes eventos dramáticos, antes de pequenos momentos que vão acumulando o desamparo, desgastando, anestesiando (porque assim a produtividade é maior), e é isso que o torna grande – é precisamente esse acumular de pequenos instantes que cria espaço para que tarefas mundanas, situações que se repetem, ganhem outra dimensão e importância – quando passamos dias sem falar com alguém, ouvir um bom dia torna-se algo significativo; e perder essa coisa mínima pode ser uma tragédia. Se se passam dias sem uma refeição decente, ou uma refeição em que não estejamos a olhar para o ecrã do telemóvel porque não há ninguém com quem conversar, quando alguém nos convida para partilhar uma refeição, isso é um mundo novo. Curiosamente, tal como o protagonista de Perfect Days (Dias Perfeitos, 2023), a solidão de Aurora não é anti-social, ela é uma solitária que anseia por um mínimo de interação social, que encontra por isso conforto nos pequenos gestos de cortesia do dia-a-dia.
On Falling é um dos filmes portugueses mais politicamente conscientes dos últimos anos), que não se coíbe de revelar as consequências desta economia impessoal; porém, é igualmente comovente e íntimo no retrato de uma personagem entre um emprego desesperante e uma vida desesperançada.
Os dias de Aurora começam da mesma forma, numa fila de trabalhadores a entrar num armazém (a porta-giratória é simbólica), onde se segue um turno de demasiadas horas em que esta, ao serviço de um aparelho electrónico que controla os seus movimentos, recolhe itens de diferentes encomendas, com pequenas pausas para alimentação, que decorrem invariavelmente perante um silêncio generalizado; ao fim do dia apanha boleia com uma colega portuguesa onde trocam algumas palavras de circunstância, e depois numa casa partilhada onde o único espaço de convívio é uma pequena cozinha, prepara o jantar e coloca a roupa a lavar, antes de seguir para o escuro do quarto, onde adormece a olhar mais uma vez para a luz do telemóvel (sempre sem reação, nem sequer um sorriso), já a pensar no próximo dia.
O filme segue um formalismo rigoroso mas que nunca se sobrepõe à história e retrato destas personagens, e que acaba por tornar o filme naturalista, com os diferentes momentos que estruturam a narrativa a serem encenados de forma distinta; além disso, o formato de imagem acentua uma ideia de encarceramento. As sequências no armazém com Aurora a trabalhar adoptam uma câmara livre, que segue de perto os movimentos da protagonista num corredor e repetições claustrofóbicas; os momentos no carro são filmados por trás numa lógica de plano fixo e campo/contra-campo, alternando entre as duas ocupantes num ambiente escurecido e esvaziado pelo final do dia; nas pausas para refeições, Aurora é filmada de frente, ora com os olhos no telemóvel, ora na comida, raramente olhando para a pessoa à sua frente; na cozinha, uma série de planos fixos mostra a exiguidade do espaço, mas o filme usa a espaços também aqui a câmara livre que segue Aurora, para realçar o seu isolamento do resto do mundo e a fragilidade efémera dos poucos momentos de socialização entre colegas de casa (que vão sucedendo-se, sem grandes ligações). O resultado é uma construção metódica, em que a familiarização com cada momento acentua o loop de desamparo, porque começamos a antecipar o que vai acontecer, sem grande expectativa de mudança, presos a um presente dominado por estes espaços de opressão e desumanização, o trabalho moderno apresentado como o mito de Sísifo.
A idade da personagem é aqui fundamental (e uma brilhante performance de Joana Santos), numa escolha clarividente de Laura Carreira, porque Aurora não se trata de alguém novo a começar a vida profissional que se submete a estas condições, mas alguém já na casa dos trinta e muitos a viver em quartos numa casa partilhada e num emprego fisicamente e mentalmente desgastante, porque é a única solução que lhe é permitida. São empregos destinados a pessoas de passagem, temporários devido à sua precariedade, mas que aos poucos se tornam a única coisa que estas personagens conhecem, são melhores que a alternativa do nada, mesmo que digam a si mesmos que deviam procurar outra coisa. A proximidade maior é mesmo ao social-realismo de Ken Loach, e dos irmãos Dardenne, pela forma como nos tentam colocar dentro deste universo, num registo cru e sem refúgio, em que uma personagem se torna uma espécie de substituto para o espectador se imaginar naquela situação sem saída. Ao contrário de filmes próximos, que abordam também o tema da precariedade do trabalho, como L’histoire de Souleymane (A História de Souleymane, 2023) de Boris Lojkine, À Plein Temps (A Tempo Inteiro, 2021) de Eric Gravel, ou Sorry We Missed You (Passámos Por Cá, 2019) de Ken Loach, não há aqui uma vertigem rápida do afunilamento das perspectivas, de uma série de acontecimentos dramáticos que levam a escolhas desesperadas perante o tempo a esgotar-se e a condição da personagem a deteriorar-se, mas o contrário – a imutabilidade da sua condição, a passagem do tempo diz aqui precisamente o mesmo: já não dá para imaginar outra existência.

Por entre a monotonia dos dias, há momentos que se destacam porque parecem tentativas quase inconscientes de Aurora em quebrar com um futuro de tristeza. Numa saída noturna a um bar, Aurora a certo ponto encosta a cabeça no ombro de um dos seus colegas de casa, sendo ignorada; nessa mesma noite, ajuda uma rapariga desmaiada na casa-de-banho, segurando-a junto a si; mais tarde, depois de uma queda, um estranho ajuda-a a levantar-se e ela amarra-lhe o braço durante uns segundos – nestes três momentos fugidios Aurora anseia por um mínimo de empatia, de calor humano, agarra-se ao que pode para não se afundar. Poucos momentos serão tão comoventes quando vemos Aurora escondida no seu quarto à espera de ouvir alguém na cozinha, inventando uma desculpa para ir falar com alguém quando ouve barulho, por mais breve que seja o contacto. São ainda dois momentos de conversa com estranhos que assombram o filme: ainda no início, entre os almoços sonolentos na cafetaria, um rapaz novo mete conversa com Aurora, não há muito a partilhar porque a sua experiência naquele sítio, a sua vivência, será muito parecida – mais tarde descobrimos que este rapaz, em tudo semelhante a ela, se suicidou; antes de uma entrevista de trabalho, Aurora pára numa loja onde uma rapariga se oferece para a ajudar com a maquilhagem, e numa breve conversa de circunstância ficam à mostra (como nos pulsos da rapariga, mas também nos rostos) diferentes formas de esconder/mascarar a dor.
Esta conversa, e o desenlace final são o culminar de todo um processo de auto-apagamento de Aurora, que deixa de saber o que quer, ou quem é, porque a dessensibilização causada por emprego que lhe nega uma existência digna, um espaço para cuidar de si, conduz a uma espécie de desaparecimento gradual, de anulação da sua personalidade. É um feito notável o que o filme de Laura Carreira consegue atingir: por um lado, é fiel a uma abordagem política (e On Falling é um dos filmes portugueses mais politicamente conscientes dos últimos anos), que não se coíbe de revelar as consequências desta economia impessoal; porém, é igualmente comovente e íntimo no retrato de uma personagem entre um emprego desesperante e uma vida desesperançada. Esta é uma defesa apaixonada da fragilidade e vulnerabilidade como algo a preservar e a cuidar, a precaver, mas nunca perder de vista.
★★★★☆