No final do ano passado, a Ana Cabral Martins, colega walshiana comprometida com o ofício de escrever sobre cinema à pala, comentou que o mais recente filme de Coralie Fargeat, The Substance (A Substância, 2024), tinha sido feito com recurso a um martelo de forja. Ao fazê-lo, escudava o filme das críticas que apontavam (correctamente) que esta não era uma obra preocupada com subtilezas ao nível plástico e temático. De acordo com a colega, o objectivo era precisamente esse: o de privar o enunciado de subtexto. Assumo que o pressuposto seja o de que o esbatimento do subtexto aumente o poder das imagens, visto que, neste caso, para além de ser acometido pela violência do espectáculo da deformação dos corpos, o espectador também é atingido pela imediatez com que a significação da parábola é comunicada. Contudo, temo que a subordinação da fábula a uma mensagem transparente, forjada à medida de um discurso pré-fabricado acerca do horror do culto da imagem, tenha feito o contrário de inquietar o espectador – tranquilizou-o ao inscrevê-lo numa discursividade que lhe é familiar e com a qual concorda. Essa ida ao encontro do zeitgeist age como um anti-séptico que higieniza o apelo ao choque e organiza a extravagância formal do filme, de que gosto, atenção.

No entanto, pode-se comunicar significados a martelo (de forja ou outro) através de várias estratégias narrativas e dispositivos formais, uns mais estridentes e abrasivos, outros mais discretos e mudos, o que não impede o texto de ser explícito e desprovido de mistério. Sim, as personagens de Sob a Chama da Candeia (2024), de André Gil Mata, raramente falam, como acontece, aliás, em The Substance, mas o que dizem através dos gestos dispensa de interpretação, porquanto o seu enquadramento é de leitura fácil.
Sob a chama da candeia é parcimonioso quanto à utilização de diálogos, mas não se inibe de soletrar grande parte do enunciado imagético e de o so-le-trar devagarinho através de gestos facilmente passíveis de serem decifrados
Vamos a um exemplo. Alzira (Eva Ras), uma senhora de oitenta anos, está sentada num sofá a repousar. Ela levanta-se, arrasta os pés até à janela mais próxima e abre-a, uma decisão sensata, uma vez que, por esta altura, tanto a casa quanto o filme beneficiavam de uma janela aberta, de uma corrente de ar que combatesse o ar rarefeito propício ao bafio e ao mal-estar. Assim que a janela se abre, ouve-se um ruído distorcido à distância, um barulho impossível de identificar que rompe com o silêncio sepulcral que infecta a casa. A gestão do silêncio exemplifica como o telegrafar da significação se pode concretizar de diferentes formas. Neste caso, o silêncio que assombra a casa e as personagens é de tal modo carregado que se torna numa imposição o espectador adjectivá-lo de “sepulcral”. Noutras instâncias, para além de produzir um efeito óbvio, o controle sobre o silêncio chega mesmo a ser contraproducente de um ponto de vista dramático, na medida em que o que se queria sepulcral e fantasmático se afigura caricatural, conforme se verifica na sequência em que Alzira, ainda jovem, recebe a professora de piano em casa, e ambas se cumprimentam afasicamente por via de gestos afectados.

Incomodada pelo ruído proveniente da rua, a protagonista fecha a janela e um travelling lateral acompanha-a novamente até à poltrona, rematando a trajectória circular da cena. O círculo é uma forma cara a Sob a chama da candeia (2024), de André Gil Mata, conforme demonstram os movimentos circulares da câmara, a estrutura circular de várias sequências, os gestos repetidos das personagens e as alusões às estações do ano. Se o silêncio é sepulcral, o círculo é impositivamente vicioso, visto que, como o fechar da janela demonstra, não existem pontos de fuga para Alzira. A inexistência de vias de escape é um ponto reiterado, tanto que se pressente um contentamento velado em encerrar a personagem (e o espectador) no mausoléu que é esta velha casa de família. Neste âmbito, o plano-sequência em travelling que conclui o filme é lapidar – a câmara move-se por corredores envoltos num lusco-fusco lúgubre, como é apanágio em certos cinemas que fazem escola, até que embate numa parede, o que origina o retroceder da trajectória, que termina exactamente no ponto de onde partiu, junto de Alzira.
Contudo, como dar a ver não basta, existe uma rara sequência falada em que uma criança lê uma passagem de um livro que explica o movimento de rotação da terra, pelo que o texto recitado estabelece, num piscar de olho auto-reflexivo, um paralelo entre a ordem repetitiva que rege o trânsito dos astros e a organização da realidade doméstica de Alzira.

Foquemo-nos, agora, noutro episódio. Alzira prepara a mesa para o marido, que está sentado numa poltrona a ler o jornal. Enquanto a protagonista cobre a mesa com o napperon e mete o café e as torradas à disposição do marido, vê-se, no plano de fundo, a empregada do casal, Beatriz (Márcia Breia), a colocar uns lençóis lavados num alguidar. Com tudo ao dispor, o marido senta-se à mesa e come as torradas tranquilamente, em silêncio. A hierarquia do lar é estabelecida: Alzira vive em função do marido, que sai de casa depois do pequeno-almoço, ao passo que ela nunca vai além dessas paredes, e Beatriz serve Alzira, cozinhando e realizando as lides da casa. A cena termina e dá lugar a uma analepse que parte de um plano-detalhe de uns copos de cristal empoeirados para um plano-geral de Alzira, ainda jovem, sentada ao lado da mãe, ambas em silêncio. Nenhuma delas fala, quem toma a palavra é Augusto (Raimundo Cosme), que balbucia as primeiras frases do filme ao pedir à matriarca a mão da rapariga em casamento. A ideia de servitude e clausura estabelecida na primeira cena é rapidamente consolidada pela segunda, que reporta o espectador para o momento em que Alzira deixou de ser subordinada pela mãe e passou a responder às ordens de um marido que não desejava. Caso o semblante de condenada à morte que Alzira enverga em resposta ao pedido de casamento fosse insuficiente, uma cena posterior entre a protagonista e a professora de piano confirmará que a rapariga se sente cativa de uma condição que a silencia.
Sob a chama da candeia é parcimonioso quanto à utilização de diálogos, mas não se inibe de soletrar grande parte do enunciado imagético e de o so-le-trar devagarinho através de gestos facilmente passíveis de serem decifrados e que, talvez pior ainda, dificilmente podem ser interpretados de forma que não a imposta. A título de exemplo, confronte-se o plano-sequência dos passarinhos dentro de uma gaiola – porque a casa pode ser um abrigo, pode ser um espaço de memórias, mas pode também ser um claustro.

A rede de temporalidades atenua, em parte, a sensação de que se está a ler um enunciado com marginália explicativa. O primeiro plano de Alzira quando era criança, por exemplo, causa uma estranheza bem-vinda porque se tem dificuldade em determinar quem é a menina e qual o tempo em que a acção decorre. O mesmo se aplica a alguns outros episódios, como o do sarampo. Todavia, existem pontos em que a articulação das camadas do passado da casa é menos misteriosa do que se possa pressupor. Por exemplo, a cena em que Alzira abre e fecha a janela termina com a protagonista a sentar-se numa poltrona e a fechar os olhos, pelo que esse gesto insinua um movimento introspectivo que dá origem à analepse de Alzira a tocar Bach quando era nova – ou seja, a relação de identidade entre a mulher velha e jovem é prontamente esclarecida.
Portanto, o ponto mais intrigante de Sob a Chama da Candeia talvez não seja a forma como o enredo se desdobra em várias temporalidades, mas a revelação de que Alzira alimenta um ressentimento por Beatriz, a sua empregada de longa data que compartilhou consigo a clausura, ainda que de maneira distinta. A descoberta dessa cólera anima, pelo menos em retrospectiva, a relação de Alzira e Beatriz, que deixa de ser meramente processual. Contudo, é uma nuance tardia que não impede o filme de terminar numa nota previsível, comunicada a martelo, que salienta o problema da solidão na velhice.
★☆☆☆☆