Não é por causa da escuridão que invocamos a memória. Não é por causa dessa terrível escuridão na qual pessoas, ruas e cidades desaparecem – e desaparecem completamente. Não é por causa da escuridão. É, sim, pelas pequenas luzes que cintilaram inesperadamente, que viveriam rápido pouco e morreram sem clamar. Por aqueles que tinham pouco, mais deram tudo. Aqueles que viveram apenas por um instante. Aqueles que amaram, mas não saborearam o amor.
“É difícil pensar numa cineasta que mais vezes tenha sido (re)descoberta e recuperada ao longo das últimas décadas do que…” Há uns meses, começava assim um texto dedicado à cineasta soviética/ucraniana Kira Muratova, cujos primeiros filmes realizados a solo, Breves Encontros (“Korotkie vstrechi”, 1967) e O Longo Adeus (“Dolguie provody”, 1971), estreavam, pela primeira vez em Portugal, no final do verão passado. Concluía o artigo com um desafio lançado ao/à espectador/a: apreciar os filmes de Muratova pelo que estes dão a ver e a ouvir, ao invés de os interpretar à luz do seu caráter de exceção histórica – o estatuto de cineasta mulher, tão raro quanto subversivo para a época; a perseverança sem concessões face à censura do regime vigente e a agridoce consagração internacional; a longa invisibilização e, por fim, a recente recuperação da sua obra sob a etiqueta do “cinema no feminino”.

Mais uma moeda, mais uma voltinha no carrossel das lacunas do matrimónio cinematográfico. A mesma introdução e o mesmo exercício poder-se-iam aplicar a Binka Jeliaskova, enfant terrible da nova vaga do cinema búlgaro do período soviético, em foco no início deste mês de Maio na Cinemateca Portuguesa, numa retrospectiva em parceria com o IndieLisboa – a primeira fora do seu país. Todos os seus nove filmes poderão ser vistos, sendo que apenas o segundo, A Byahme Mladi (Éramos Jovens, 1961), foi anteriormente exibido na Cinemateca, nomeadamente em outubro do ano passado. (E já que o menciono: bem-maldito sejas, Ricardo Vieira Lisboa, por teres estabelecido esse paralelo certeiro e clarividente com o poema A Invenção do Amor de Daniel Filipe em jeito de sinopse na folha de sala do filme; como gostaria de ter sido eu a ter essa ideia!)
Éramos Jovens começa no escuro, com um corpo que caí, vítima de um tiro, numa qualquer rua deserta, e a câmara que se eleva nos ares, percorre a linha do horizonte como se procurasse uma aberta no céu carregado, ou espreita através das janelas iluminadas de um prédio austero, que se apagam uma à uma até à escuridão absoluta. Ou então, talvez o filme só comece realmente momentos depois, desta vez à luz do dia, câmara apontada para o céu onde rodopia um bando de pássaros em alvoroço – ou são aviões de guerra? –, sobrevoando as ruínas de uma cidade sob a bandeira nazi. É nessas ruas desertas, onde ecoam os passos daqueles que nelas erram, que se vêm cruzar pela primeira vez dois jovens, ele empunhando um jornal enrolado, ela mordiscando o pé de uma flor, em breve desfeita de nervosismo, deixando fugir as pétalas por entre os dedos.
Ainda não se conhecem, mas este primeiro encontro, selado com uma palavra-passe luminosa – “pirilampo” – e com o estertor de um avião a rasgar o céu faz, parte do ritual de iniciação e integração da jovem Veska (Rumyana Karabelova) no grupo de partisans ao qual pertence Dimo (Dimitar Buynozov). Momentos antes, entre as duas sequências de abertura, ainda na escuridão absoluta, ouvira-se uma voz invocar as pequenas luzes que acendem a chama da memória, materializadas pelas fichas de jovens resistentes anónimos, que progressivamente enchem o ecrã.
Resta-nos (e já é suficiente) viver a experiência estética de Éramos jovens como uma fulgurância, fazendo do nome Binka Jeliaskova uma promessa de tantas outras iluminações cinematográficas por vir.
A intriga de Éramos jovens gira em torno das operações de resistência e de sabotagem que organiza, na Sófia ocupada pelos nazis durante a Segunda Guerra Mundial, uma célula clandestina da resistência comunista. Estes jovens são “rebeldes por uma causa”, na qual acreditam com a inocência das primeiras paixões, e pela qual lutam ao ponto de sacrificarem a sua juventude. É neste contexto político “com carácter de urgência” que Veska e Dimo vão timidamente inventar os contornos de um primeiro amor, desenhado pelos focos das lanternas com que iluminam as rondas noturnas que fazem lado a lado. Descrevendo no espaço clandestino da resistência coletiva os movimentos secretos do desejo nascente entre dois jovens, o filme trata sobretudo do destino inglório dos indivíduos que acabam “engolidos” pela grande História.
Binka Jeliaskova bebeu dos mesmos ideais e conheceu as mesmas lutas que o bando de jovens no centro do filme, tendo ela própria feito parte da União da Juventude Operária; mas também conheceu, anos mais tarde, o reverso das utopias, a crise ética e o fosso entre os ideais marxistas e a realidade do sistema soviético nos estados satélite. Patente desde a sua primeira longa metragem, Zhivotut si teche tiho… (“A vida corre calmamente…”, 1957), co-realizada com o seu marido e colaborador Hristo Ganev, cuja intriga já então denunciava a desilusão e a corrupção dos heróis da resistência no país recentemente libertado, o olhar crítico do casal sobre o rumo do sistema soviético valeram-lhes a reputação de cineastas dissidentes: em consequência, este primeiro filme foi censurado e banido durante mais de trinta anos, e todos os seus projetos posteriores, sete ficções e dois documentários, realizados entre 1961 e 1990, encontraram inúmeros entraves de financiamento, de produção e de distribuição, não obstante o reconhecimento efémero que alguns deles foram alcançando em festivais internacionais.
Filmado em grande parte com a mesma equipa que A vida corre calmamente…, Éramos jovens escapou inexplicavelmente à censura, tendo até saído vencedor do festival de Moscovo, em 1961. Na esteira das novas vagas cinematográficas do pós-guerra, encabeçadas pelo neo-realismo italiano, Éramos jovens vê-se igualmente atribuir o estandarte do lirismo eslavo e da inventividade formal do “cinema do degelo” soviético, sendo muitas vezes comparado a Letyat juravli (Quando Voam as Cegonhas, 1957) de Mikhail Kalatozov. Várias outras influências estilísticas e formais poderiam ser apontadas, do film noir americano à nouvelle vague francesa; e até o recurso ao suspense poderia ser comparado ao domínio dos tempos fílmicos de um certo Alfred Hitchcock, com a diferença de que, no filme de Jeliaskova, todo o suspense se solda invariavelmente por um falhanço, mas sem cair no sadismo; pelo contrário, a ironia de uma bomba plantada num restaurante que não explode, ou a auto-sabotagem de uma operação de propaganda antifascista reforçam a nossa empatia para com as personagens (por exemplo, na cena em que o jovem Dimo assiste pela primeira vez a um espetáculo de bailado, e fica de tal modo enfeitiçado pelo que vê, que se esquece de lançar os panfletos sobre a plateia…).

“Apreciar os filmes da cineasta pelo que estes dão a ver e a ouvir”, tal era o desafio que lançava em introdução. Na verdade, poderia citar quase todas as cenas de Éramos jovens como exemplos marcantes da criatividade transbordante e da radicalmente moderna de Binka Jeliaskova: numa sequência, pelo tecer do som e da imagem, a mão do homem que faz vibrar das cordas de uma guitarra – eco de um ente querido ausente ou alarme de uma tragédia anunciada? – alternando com a mão feminina que cose uma dose de veneno na bainha de um vestido; noutra sequência, pela montagem que forja raccords e atravessa paredes, estabelecendo, num ilusório plano sequência, um diálogo impossível entre várias personagens fisicamente distantes; noutras cenas, ainda, pelos movimentos de câmara vertiginosos, ostensivos e omniscientes, capazes de fazer desaparecer um indivíduo na paisagem urbana ou na floresta dos seus sentimentos; por fim, pela beleza gráfica e eloquência silenciosa das inúmeras sequências que revisitam o motivo das pequenas luzes ou “pirilampos” da luta anti-fascista, como as lanternas que descrevem no espaço as aproximações e afastamentos entre Veska e Dimo, à maneira de holofotes no palco de um bailado romântico, antes que a sombra da dúvida e da traição se instale definitivamente entre eles.
Pois neste bailado de luz e sombra, nem tudo é luz, nem tudo é sombra; tudo é, simultaneamente, branco e preto, como explica a Dimo a jovem fotógrafa paraplégica sua vizinha (Lyudmila Cheshmedzhieva), mostrando-lhe o orignal negativo e a tiragem positiva de uma mesma fotografia – metáfora do poder da imagem fotográfica como revelação da essência das pessoas que se esconde no reverso das aparências. Trata-se de uma das personagens mais emblemáticas do filme, e possivelmente daquela em cujo olhar – de mulher, de testemunha e de artista – Binka Jeliaskova mais se projeta. Prisioneira da sua cadeira de rodas e condenada à posição de observadora cúmplice dos movimentos da resistência, a partir da sua janela indiscreta, como uma frágil flor no parapeito de uma janela (é assim que ela própria se descreve), a jovem fotógrafa protagoniza não só um dos momentos mais libertadores do filme – uma primeira corrida desenfreada e eufórica pelas ruas de Sófia, de cadeira de rodas, cabelos ao vento e câmara em riste – como também alguns dos mais desoladores – como quando, depois de ter sido interrogada por um informador nazi quanto ao paradeiro do chefe dos partisans, decide destruir todas as suas películas fotográficas, com receio de que possam ser utilizadas como provas para o denunciar.
E quando os punhos em chama da resistência e os sonhos da juventude se transformam em cinzas, e que novos focos de luz se encontram na sombra para dançar as mesmas rondas de sempre, resta-nos (e já é suficiente) viver a experiência estética de Éramos jovens como uma fulgurância, fazendo do nome Binka Jeliaskova uma promessa de tantas outras iluminações cinematográficas por vir. Afinal, não é pela escuridão a que foi relegado todo um pedaço da história do cinema mundial que tentamos hoje “recuperar” aqueles – e sobretudo aquelas – que foram caindo no esquecimento. É, pelo contrário, pelas luzes inesperadas que foram acendendo nos ecrãs da História, e da nossa memória.

A Byahme Mladi (“Éramos jovens”) passa na Cinemateca Portuguesa no próximo dia 7 de Maio, às 15h30. O ciclo “Binka Jeliaskova: A luta é um murmúrio” prolonga-se até dia 10.