É difícil pensar numa cineasta que mais vezes tenha sido (re)descoberta e recuperada ao longo das últimas décadas do que Kira Muratova. Filha de pai russo e de mãe romena, nascida na região da Bessarábia (hoje na Moldávia), de nacionalidade soviética até 1991, e depois ucraniana até à sua morte, em 2018, Kira Muratova atravessou as eras soviética e pós-soviética: formou-se no reputado VIGK de Moscovo, estreou-se na realização ao lado do seu primeiro marido, Alexandre Muratov, trabalhou nos estúdios de Odessa onde viveu durante a maior parte da sua carreira, conheceu a censura exercida pela Goskino (organização responsável pela produção e distribuição de filmes na URSS), bem como a consagração internacional, nomeadamente com a longa metragem Astenicheskiy sindrom (Síndrome Asténica, 1989), vencedora do Leão de Prata na Berlinale do mesmo ano… mas nem isso lhe garantiu visibilidade e salvaguarda perenes da sua obra.
Se a censura de que foi alvo entre o final dos anos 60 e a segunda metade dos anos 80 pode ajudar a explicar os hiatos na sua carreira (com vários projetos bloqueados ainda na fase de argumento*) e o seu reconhecimento tardio e lacunar no Ocidente (tendo beneficiado da política de abertura cultural no âmbito da Perestroika, a partir de 1986), parecem-nos menos evidentes as eventuais razões para a omissão de Kira Muratova nos cânones do cinema soviético e pós-soviético, assim como para a relativa invisibilidade e inacessibilidade da sua filmografia até muito recentemente. Com efeito, só após a morte da cineasta, em 2018, é que é levado a cabo o restauro dos seus principais filmes, enfim distribuídos em vários países da Europa – a começar pela França, com uma retrospetiva na Cinémathèque française, em 2019, e agora em Portugal, com a estreia em sala das suas duas primeiras longas metragens realizadas a solo: Korotkie vstrechi (Breves Encontros, 1967) e Dolguie provody (O Longo Adeus, 1971).
O desafio, para o/a espectador/a dos dias de hoje, consistirá em saber ver além deste caráter de exceção histórica, em aprender a apreciar os filmes de Muratova pelo que estes dão a ver e a ouvir, e, sobretudo, em questionar o que é que da sensibilidade singular e radical desta cineasta transparece concretamente nas próprias formas fílmicas.
A tendência de revalorização dos “cinemas femininos”, bem como o agravamento do conflito entre a Rússia e a Ucrânia nos últimos anos, também terão tido a sua quota-parte de responsabilidade na redescoberta recente da obra de Kira Muratova, redescoberta essa certamente salutar e necessária, desde que tenhamos consciência dos riscos de instrumentalização ideológica que tal processo de recuperação acarreta nos dias de hoje. Pois se Kira Muratova merece um lugar cativo na história do cinema e na memória cinéfila mundiais, não deverá ser apenas por ter sido uma “vítima” da censura do regime soviético, e muito menos por se tratar de uma mulher ucraniana. Até porque o seu cinema nunca se deixou reduzir a uma qualquer classificação em termos de género (cinematográfico como relativo ao sexo biológico) ou de filiação (política como estética), apesar de a própria reconhecer que a sua obra deve mais à Nouvelle Vague francesa do que ao cinema soviético seu contemporâneo, encabeçado por realizadores emblemáticos como Andrei Tarkovsky, Alexei German, Elem Klimov ou Sergei Parajanov. À dimensão metafísica que caraterizam as principais obras destes cineastas, entre a estética minimalista e contemplativa de uns e o hiper-realismo pirotécnico ou barroco de outros, Muratova opõe um cinema à escala humana marcado por contradições e dissonâncias, um cinema tão intimista e humanista nas histórias que conta, quanto intransigente e disruptivo nas opções estéticas e ideológicas que lhe são subjacentes.
Descritos pela própria cineasta como dois “melodramas provinciais”, Breves Encontros e O Longo Adeus podem ser vistos como uma espécie de díptico que não cessa de se contradizer, a começar pelos títulos quase opostos que trazem a dimensão temporal ao primeiro plano e anunciam a natureza íntima e melancólica das intrigas. Com efeito, as sinopses dos filmes parecem esboçar situações potencialmente “melodramáticas”: o primeiro gira em torno de um triângulo amoroso entre um homem ausente e duas mulheres cujos destinos se cruzam, mas que ignoram que amam o mesmo; o segundo foca-se na relação de co-dependência entre uma mãe e o seu filho, inseparáveis face à iminência de uma separação. Porém, o modo como Muratova (des)constrói as narrativas refreia quaisquer subterfúgios melodramáticos na forma de golpes fatídicos, soluções deus ex machina ou laivos de tragédia catártica: enquanto Breves Encontros aposta numa narração acronológica tecida em filigrana através de uma série de flashbacks subjetivos, O Longo Adeus assenta numa estrutura repetitiva e cíclica que não deixa antever qualquer outro desenlace além de um Eterno Retorno (que é, curiosamente, o título do último filme de Muratova, estreado em 2012).
Ainda que, em pano de fundo, ambos os filmes evoquem a disparidade material entre os cidadãos de uma cidade de província e a classe burocrática que a governa, será menos pelo seu conteúdo ideológico do que pela ousadia sem concessões do estilo de realização de Muratova que as suas obras serão ostracizadas pelas autoridades soviéticas. Efetivamente, nada na mise en scène de Breves Encontros e de O Longo Adeus pode ser considerado “provinciano”, no sentido de rudimentar ou de ligeiro. A modernidade destes primeiros filmes, radicais (e) livres, é não só visível como audível: modernidade visível nos desenquadramentos que cristalizam os desencontros e os desacordos entre as personagens, nas transições de pontos de vista no interior dos próprios planos e nos raccords de olhar que não conhecem limites espácio-temporais, nos momentos de contemplação e rememoração que permeiam o quotidiano ordenado e austero, na tensão entre a teatralidade assumida do desempenho dos atores e aquilo a que a realizadora chama de “resistência do real”; modernidade audível nos “monólogos dialogados” que ecoam a incomunicabilidade entre as personagens, na dessincronização voluntária das vozes que mais parece que (se) narram do que conversam, nos ambientes cacofónicos trabalhados em pós-sincronização que funcionam como retratos coletivos da sociedade, nas repetições e ritournelles que semeiam grãos de burlesco e de poesia na tragédia banal do dia-a-dia, e que funcionam como bóias de salvação para o espectador submergido pelo excesso de estímulos visuais e sonoros.
Se as intrigas de Breves Encontros e O Longo Adeus não se podem resumir a uma crítica aberta ao regime da parte da cineasta, estas contém elementos narrativos que espelham uma crise de valores em germe na sociedade soviética. Em ambos os filmes, o verdadeiro conflito não é vivido simplesmente entre as personagens, mas entre o que estas desejam individualmente, e o que a sociedade espera delas. Em Breves Encontros, percebemos através dos flashbacks desordenados que o afastamento entre o casal de protagonistas, Valentina ou Valya (interpretada pela própria Kira Muratova) e Maksim (Vladimir Vysotskiy), não se deve às traições deste último, mas ao facto de terem visões incompatíveis do mundo e dos papéis que nele devem desempenhar: Valya vive uma vida solitária mas confortável na sua posição de funcionária estatal responsável pela inspeção das habitações locais, e confia cegamente na máquina burocrática como chave para um futuro melhor; Maskim, geólogo “Johnny Guitar” com alma de bardo e de viajante (várias vezes filmado em enquadramentos que podiam ser tirados de um western americano), preza acima de tudo a sua independência e não está disposto a abdicar do seu estilo de vida nómada e livre em nome de um “bem comum”; e, entre ambos, orbita Nadya (Nina Ruslanova), a jovem camponesa com quem Maskim vivera uma paixão adúltera mas sincera, e que Valentina contrata como empregada doméstica sem saber que se trata da amante do marido. Insondável e luminosa, a personagem de Nadja parece ser a única verdadeiramente capaz de se sacrificar pela felicidade de outrem… e de desaparecer na noite depois de deixar a mesa posta para o reencontro que tanto esperava, mas para o qual não foi convidada.
Também Yevgeniya (Zinaida Sharko), a “mãe-galinha” de O Longo Adeus,se compraz com a sua vida de divorciada pequeno-burguesa, trabalhando como tradutora para as autoridades locais e partilhando um modesto estúdio com o seu filho adolescente, Sasha (Oleg Vladimirsky); mas este, tímido poeta nas horas vagas, recentemente desperto para os charmes do sexo oposto, sonha com algo diferente: o primeiro passo para a independência será sair de “debaixo das saias” da mãe para ir viver com o seu pai, que é arqueólogo em Novosibirsk, figura idealizada porque ausente – no cinema de Muratova, há sempre uma ausência à espera de ser preenchida… Ora, para uma “boa” mãe russa, não deveria haver maior orgulho do que ver o seu filho partir para novas conquistas; mas Yevgeniya é excessiva, ciumenta, prepotente, sufocante… à imagem, diríamos, da própria “Mãe Rússia” na relação com os estados satélites durante a Guerra Fria.
De certa maneira, todas as personagens apresentam traços de personalidade ambíguos ou atitudes inadmissíveis à luz da moralidade politicamente correta do regime soviético, mas Valentina e Yevgeniya mostram-se particularmente incapazes de conciliar os seus papéis sociais de funcionárias/camaradas exemplares com os de amantes/mães na esfera privada. A cena de abertura de Breves Encontros coloca esse conflito identitário por palavras: Valentina debate-se com a escrita de um discurso sobre a política agrícola mas, incapaz de ir além da saudação inicial – “Camaradas” ou “Caros camaradas”? –, acaba por se virar para as lides domésticas – “Lavar a louça ou não lavar, eis a questão”, qual solilóquio hamletiano da mulher dos tempos modernos. Esta não é a única ocasião em que uma personagem é mostrada a falar sozinha; também Yevgeniya e Sasha têm direito ao seus monólogos, a primeira ensaiando um discurso para o patrão em frente ao espelho, o segundo recitando de memória citações literárias ou improvisando as rimas de um poema naïf; mas mesmo quando um deles interpela o outro, mãe e filho não se olham e tampouco escutam o que o outro tem a dizer. Noutros momentos, a câmara de Muratova demora-se sobre os rostos de personagens secundárias, mulheres mal-amadas, jovens sonhadores e idosos esquecidos, que nos contam fragmentos das suas histórias, deste modo dando voz a muitos daqueles e daquelas que a sociedade foi silenciando.
Em suma, os primeiros filmes a solo de Muratova não são melhores, mais interessantes ou mais inovadores do que quaisquer outros por terem sido realizados por uma mulher; mas podemos considerá-los obras excecionais na medida em que, na década de 60/70, na URSS como em qualquer outro país, ser-se uma realizadora capaz de fazer frente às normas da indústria cinematográfica do seu país e de impor a sua visão artística constitui por si só uma exceção à regra. O desafio, para o/a espectador/a dos dias de hoje, consistirá em saber ver além deste caráter de exceção histórica, em aprender a apreciar os filmes de Muratova pelo que estes dão a ver e a ouvir, e, sobretudo, em questionar o que é que da sensibilidade singular e radical desta cineasta transparece concretamente nas próprias formas fílmicas. O mais certo é não encontrar uma única resposta, mas um rebuliço de ideias, imagens, sons e sensações avassaladoramente dissonantes.
* Autora de uma tese sobre Kira Muratova, Eugénie Zvonkine publicou igualmente um dos seus guiões jamais realizados: Regardez attentivement les rêves de Kira Mouratova et Vladimir Zouev. Un scénario sans film, edições L’Harmattan, coleção « Le Parti pris du cinéma », Paris, 2019.
Distribuídos pelas Midas Filmes, Breves Encontros e O Longo Adeus estão em exibição, desde 22 de Agosto, em versão digital restaurada 4K, no Cinema Ideal em Lisboa, e na Casa do Cinema de Coimbra.