O recente documentário de Daniel Mota, produzido pela Maria Guedes e João Ervedosa e com montagem de Henrique Brazão, é, acima de tudo, um testemunho de magna importância. Alguns pensarão que é com uma certa dose de exagero que afirmo que a cena rave portuguesa foi a segunda mais bela e importante revolução portuguesa: tal como um dos bailarinos do Alcântara salientou, o 25 de Abril foi muito importante para nos libertarmos colectivamente, mas a discoteca foi o lugar onde nos pudemos libertar individualmente, saídos da “tristeza das nossas casas”. A “noite”, composta de luzes, música e festa, serviu de refúgio a tantos de “nós”. Não é por acaso que a cultura da “noite” nasce da desesperança dos subúrbios industrializados, dos guetos segregados e da opressão estatal do desejo (de associação, amoroso, sexual) da cultura queer.

Primeiro o disco, onde negros e homossexuais dançavam lado a lado, cada um libertando-se da violência (sexual, de classe e racial) à qual estavam sujeitos, dando corpo a esse heterogéneo, complexo e belo emaranhado de corpos suados e extenuados, que compunham a primeira comunidade noctívaga da história. Uma década mais tarde, nasce a música electrónica e com ela os primeiros espaços “institucionais” (clubes e bares) e as primeiras festas (rave), de carácter demarcadamente comunista e anárquico, anti-institucional, anti-hierárquico e anti-capitalista. E apesar dos focos geográficos e os seus intervenientes serem em parte os mesmos (ou pelo menos os seus herdeiros), o movimento da “noite” tomou outras proporções (já não eram apenas centenas de corpos metidos em caves, mas antes milhares que se juntavam em complexos industriais abandonados em Nova Iorque ou Berlim, ou nas florestas do Reino Unido), como acossados pelas políticas neoliberais de Thatcher-Reagan e pela devastadora pandemia do HIV (e acrescentaria ainda o flagelo da heroína, inclusive, impossível desassociar ambos), a reacção fez-se sentir a uma outra escala.
Era urgente sair, desassociar, libertar, aproximar e foi isso que a “noite” trouxe enquanto programa político, estético e ético. Até porque não foram apenas os factores externos que nos condicionaram/impeliram; pelo contrário, o final dos anos 80 e o princípio dos anos 90 em Portugal foram vividos com o desencantamento dos resultados da revolução (e de tudo aquilo que ficou por cumprir), a política era então dominada pelo PSD de Cavaco Silva e as dificuldades sentidas resultavam de um país ainda profundamente desigual, pobre e conservador. Foi contra tudo isso que a cena rave portuguesa nasceu e foi contra isso que milhares de pessoas viajavam de Faro a Aveiro, de Lisboa a Coimbra, entre carros e autocarros, chamadas de telefone, passa a palavras e mapas de papel desdobráveis, e juntavam-se aos milhares, todos os fins de semana nesse “paraíso chamado Portugal”, feito de castelos e discotecas (ou “boîtes”, como alguém fez questão de frisar a dado momento, denotando o carácter pejorativo que a “noite” tinha então).
Penso que a importância deste documentário é, acima de tudo, ser a pedra de toque para que outras histórias sejam contadas, para que outros agentes sejam ouvidos, para daqui resulte mais.
É certo que hoje podemos mais facilmente distinguir aquilo que é instrucional, daquilo que são as raves (ou o que resta delas, as poucas que não foram capturadas pela lógica capitalista-mercantilista), mas é importante lembrar que, perante a luz rasante do presente, dificilmente poderemos compreender que sair à noite há 30 anos era um acto transgressor. Assim como a própria imagem do DJ, hoje largamente aceite como profissão (e em muitos casos, até endeusada, à semelhança da estrela pop). À época, ser DJ era estar à margem de uma sociedade do trabalho absolutamente estratificada e estagnada, feita de “empregos para a vida”. Por isso, quando vemos aquelas imagens fotográficas e registos VHS que compõem parte do filme (e é essa a grande mais-valia deste documentário), não sentimos que estamos perante um arquivo, imagens cristalizadas de um passado distante e imperturbável, mas antes perante a matéria viva de um futuro porvir. Sejam as muralhas de um castelo cheio de pessoas a dançar, seja a fotografia de milhares de pessoas enquanto o sol nasce dentro de um estaleiro na Figueira da Foz com vista para mar, sejam as fotografias do Alcântara Mar, do Frágil ou de Xabregas, todas estas imagens são parte de uma história em aberto, em contínua renovação, feita de fantasmas que regressam incessantemente para nos convocar.
Não é por acaso que recorro à imagem fantasmagórica, pois é difícil não convocar os escritos de Mark Fisher quando pensamos a rave. E mesmo perante as críticas que poderão surgir ao filme, sobre a escolha dos agentes, das festas “canónicas” e dos clubes “institucionais”, também parte dos entrevistados do Fisher – dos Massive Attack ao Goldie –, à época figuras marginais, revolucionárias não menos importantes ou necessárias para contar a história hoje, porque, entretanto, tornaram-se figuras “hegemónicas” e “oficiais”. Penso que a importância deste documentário é, acima de tudo, ser a pedra de toque para que outras histórias sejam contadas, para que outros agentes sejam ouvidos, para daqui resulte mais (e não um processo de subtração dos inúmeros agentes que compuseram esta história). Até porque era urgente que (mesmo que seja só uma parte) esta história fosse contada, registada, documentada, não só porque há um crescente interesse sobre a história da cena rave um pouco por toda a parte (não deixa de ser irónico o “haver mercado”), quer em termos literários, quer em termos filosóficos (há cada vez mais literatura sobre esta matéria – destacaria sobretudo os escritos de Mackenzie Wark); como correríamos o risco, dentro de uma ou duas décadas, que a morte dos seus intervenientes representa-se em si mesmo a morte dessas histórias (no filme, sentimos já a ausência de alguns intervenientes chave desta história).
Não posso concluir, sem, no entanto, referir que Paraíso não deixa de ser um documentário bastante conservador no modo como se constitui, intercalando entrevistas com imagens de arquivo (para uma história tão radical, talvez fosse de esperar um pouco mais em termos formais e não o uso da lógica segura e tantas vezes nos documentários expositivos). Ainda assim, a vitalidade que atravessa aquelas imagens, aquelas histórias e aquelas figuras, aguenta o filme. Penso ainda que há lamentar um segundo aspecto conservador do filme ao qual fui sensível: uma certa ausência (pelo menos tudo um tanto velado – apenas a DJ Morgana fala de forma clara sobre) do papel das drogas (não é por acaso que o Mark Fisher escreveu sobre o “acid communism” das raves inglesas) na cena rave; assim como o plano social, económico e político, apresenta-se mais como pano de fundo a histórias internas do mundo da música e do djing, que interligadas a esta dimensão. Gostaria que não tivesse sido apenas uma nota de rodapé a existência de ingleses e americanos a viver em Portugal, muitos deles exilados forçados, graças às políticas que já anteriormente referi da Thatcher-Reagan, por mais sedutor que seja pintar Portugal como esse tal destino solarengo e de brandos costumes. Da mesma forma, a homossexualidade, o racismo ou sexismo nunca são abordados directamente. Talvez não seja esse o lugar do filme, certamente outros filmes virão, assim como não pode caber tudo neste documentário – seria um trabalho hercúleo (este já levou 10 anos!). Ainda assim, fica o repto para que quem vier: não se esqueça de fazer esse trabalho tão necessário.