1. O termo giallo, que referia, num primeiro nível, a cor (amarela) das capas de romances policiais hard boiled, com elementos gore e de sexo (uma espécie de literatura pulp e trash popular de quiosques de bairro e gares, em que se podem incluir os “foto-romances” e os fumetti [banda-desenhada]), foi usado para caracterizar um conjunto de filmes produzidos a partir dos anos 60 (Mario Bava, por assim dizer, “inaugura” o género com La ragazza che sapeva troppo [A Rapariga que Sabia de Mais], em 1963 e ainda a preto-e-branco, logo seguido por Sei donne per l’assassino [Seis Mulheres para um Assassino], no mesmo ano, mas já a cores) e a que os três primeiros filmes de Dario Argento, já no início dos anos 70 (L’Ucello dalle piume di cristalo [O Pássaro das Plumas de Cristal, 1970], Quattro mosche di velluto nero [Quatro Moscas sobre Fundo de Cinzento, 1971] e Il gatto de nove coda [O gato das Nove Caudas, 1971]), logo seguidos de Profondo Rosso (O Mistério da Casa Assombrada, 1975), deram um incremento decisivo. Neste tipo de cinema “especializaram-se” realizadores como Lucio Fulci, Umberto Lenzi, Fernando di Leo, Sergio Martino, Riccardo Freda, entre outros.
Como observa Alice Laguarda (L’Ultima maniera – Le Giallo, un cinéma de passions, Rouge Profond, 2021), num livro que sublinha o lado hitchcockiano (em 2005 Dario Argento fará mesmo Ti piace Hitchcock?) e “maneirista tardio” do género – que influenciou e continua a influenciar muito do neo noir (Brian De Palma) e do “horror” contemporâneos (pense-se na recente trilogia de Ti West: X, Pearl e MaXXXine [2022/4]) -, caracteriza-o por um pânico do olhar (“a mania é a paixão do olho”, o “poder” de um “olho maníaco inquiridor e abstracto”, encadeado pela “fascinação pelas imagens de destruição”, de si, do récit e do próprio cinema [205]) que se “alucina” e “desterritorializa” (perdendo as suas coordenadas de percepção no espaço e na imagem) para se “abismar” no puzzle (xadrez) de uma imagem (sempre a decifrar) de que ele raramente sai “imune” (caso de Sette notte in nero de Lucio Fulci [1977] ou dos filmes de Lenzi com Carroll Baker, a que aqui nos referiremos).

Para lá disso, parece-nos também importante referir a relação do giallo com o Teatro do Grand Guignol, ainda activo em França nos anos 50 e 60 (encerra em 1963) – Robert Hossein, aliás, foi um dos seus últimos directores, nos anos 50, tendo encenado Les salauds vont en enfer, de Fréderic Dard (peça de que tirou um filme em 1955) -, e cuja “estética” continua a ressurgir em vários locais (nomeadamente no Japão, com o Tokyo Grand Guignol, activo entre 1983/6). Mais recentemente (2018), Franck Ribière realizou um bem interessante filme, La Femme la plus assassinée du monde, sobre Paula Maxa (Anna Mouglalis), actriz do Théâtre du Grand Guignol de Paris entre 1917 e 1933.
Na verdade, o Teatro do Grand Guignol, criado em Paris em 1897 por Oscar Méténier (que chegou a colaborar com o Théâtre Libre de Antoine), inscreve-se na linha profunda do Melodrama do final do século XVIII (Pixérécourt) que seria retomada pelo melodrama sensacionalista romântico dos anos 20/ 30 do século seguinte: para Charles Nodier, ele constituía mesmo a verdadeira “tragédia popular”.
Como características cénicas, para lá da estética da “sugestão” (imaginação) e do “(hiper)realismo sensacionalista”, com “implicação” (subjugação, mesmo) do espectador ao que via em cena, há que referir uma manipulação particular do Tempo em palco: tanto um tempo acelerado (quase cronometrado) – acentuando a descontinuidade e o carácter mecânico da acção -, como um tempo desacelerado ou suspenso que se continua na própria dicção. Características, percebe-se, bem cinematográficas. Tanto a sístole / diástole da mecanização (precipitação) e expansão (desaceleração) do tempo, como uma tendência para a exteriorização es(x)tática e apática da acção que faz da “heroína-vítima” a testemunha (espectadora) impotente do “horror” que sobre ela recai (caso de Carroll Baker nos filmes de Lenzi). No Grand Guignol, como no primeiro cinema (ou no giallo), o excesso e a intensificação da acção e dos efeitos de cena criavam momentos de “ruptura” (blackout) da percepção e dos sentidos que favoreciam uma relação “hipnótica” ou “extática” face ao que acontecia em palco (ou no ecrã).
Com efeito, as últimas décadas do século XIX caracterizam-se pelo desenvolvimento das “ciências do espírito”, quer na sua vertente mais “esotérica” – o magnetismo e o espiritismo positivista (Conan Doyle, por exemplo) -, quer na “psicológica”, mais “científica” – apoiando-se na neurologia e na nova psiquiatria (Charcot). Deste ponto de vista é particularmente importante o trabalho desenvolvido por Charcot, desde a década de 60, no Hospital de la Salpêtrière (Paris) e a publicação da sua Iconografia Fotográfica entre 1876-1880 (um “teatro anatómico” que marca aliás a concepção de fotografia, e cinema, em Le secret de la chambre noire [O Segredo da Câmara Escura, 2016] de Kiyoshi Kurosawa). Freud, estagiário de Charcot entre Outubro de 1885 e Fevereiro de 1886, publicará em 1895, em colaboração com Breuer, os Estudos sobre Histeria (Studien über Hysteria). No “teatro da Salpêtrière”, a fixação fotográfica de “poses histéricas”, sobretudo de pacientes femininos, conduz à elaboração de um conjunto (repertório, catálogo) de posições/atitudes (tipo) que foram rapidamente adoptadas pelo Music Hall (nomeadamente na performance das “gommeuses épyléptiques” [Polaire, amiga de Colette, mas também Polin e Dranem, filmados por Alice Guy), pelo melodrama e, claro, pelo Grand Guignol.
Essa consonância do cinema com a “atmosfera” (de nervosismo, neurastenia, fadiga) do fim de século faz dele a superfície de “inscrição” e o lugar de défoulement imagético das “patologias” da modernidade. E isto em dois registos: 1) o da Hipnose, favorecida pelo parti pris de “frontalidade” dos primeiros filmes; 2) o da concepção do cinema como meio de realização (reenactement) e objectivação dos “fantasmas histéricos” de deformação e divisão (desmembramento) do corpo e do indivíduo (cujos exemplos vão da canção de Polin L’Anatomie du conscrit, com o verso “Je suis atteint d’anatomie”, às metamorfoses do corpo nos filmes de Georges Méliès) (sobre tudo isto ver o livro de Rae Beth Gordon, Why the French Love Jerry Lewis – From Cabaret to Early Cinema, Stanford University Press, 2001).
Cena clínica (psiquiátrica) do primeiro cinema que, após a Iª Guerra Mundial (1914-1918), sobretudo na Alemanha, se orientará no sentido da relação com a emergente Psicanálise: casos de Nerven (1919) de Robert Reinert ou de Gehaimnisse einer Seele (Segredos de uma Alma, 1926) de G. W. Pabst e que, para lá da vaga “psicanalítica” (freudiana) do noir (ou fantástico) americano dos anos 40 (casos de Cat People [A Pantera, 1942] de Jacques Tourneur, The Phantom Lady [ A Mulher Desconhecida, 1944] de Robert Siodmack ou Spellbound [A Casa Encantada, 1945] de Alfred Hitchcock, entre muitos outros), se prolonga nesse cinema do trauma (psíquico) que é o giallo italiano (Trauma é aliás o título de um filme de Argento de 1993).
2. Profumo di donna (Perfume de Mulher, 1974) é um filme de Dino Risi (1974) e Perfume de Morte poderia ser o título de Dellamorte dellamore (1994) de Michele Soavi , autor também de Deliria (Aquarius ou Stage Fright [1987]), que foi assistente de Dario Argento (Tenebrae [Tenebre, 1982], Phenomena [1985] ou Opera [Terror na ópera, 1987]), sobre o qual elaborou um documentário (em 1985).
A primeira cena de “amor” entre Francesco dos Mortos (Ruppert Everett) e Anna Falchi, no cemitério de Buffalora, de que ele é guarda, começa com um plano que tem ao fundo A Ilha dos Mortos (Die Toteninsel) de Arnold Böcklin – como se já tivéssemos passado para outra dimensão, a das configurações associativas segundo a lei do desejo (melhor, da dupla postulação de Eros e Thanatos gravada no nome de Francesco, Dellamorte, pelo lado do pai, e Dellamore, pelo da mãe); trata-se de uma imagem a que se segue uma nova composição (que evoca tanto Paul Delvaux como Karel Willinck) em que, recuando a câmera, no plano entra a figura feminina enquanto à frente esvoaçam vaga-lumes (talvez as “almas” dos enterrados); então, a câmera avança sobre o nó do cabelo da mulher (o de Vertigo [A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958], claro) com a lua (cheia) ao fundo: do fundido no negro do cabelo passamos para planos do seu rosto em êxtase a que se seguem outros em que, em slow motion, o cabelo se desprende e invade o plano (como uma anémona a abrir-se) enquanto os rostos dos dois amantes se aproximam e beijam, duas manchas (sombras) escuras cujos contornos se esbatem sobre o fundo da lua iluminada. Se no filme de Risi a cegueira do personagem masculino (Vittorio Gassman) o tornava mais sensível e o abria a outros sentidos – uma percepção não-figurativa do desejo – , aqui a atracção pela morte (a necrofilia de Francesco e o fetichismo mórbido da mulher) constitui também ela uma “cegueira”, vertigem, que não só transgride como transborda o plano da figuração, impondo o pulsar da forma associativa (imaginária) do cinema. Glosando Pasolini, com a “partida dos pirilampos”, afastada a natureza, não é só a sociedade mecânica (moderna) que vem mas o próprio “inconsciente”, o que está para lá do discurso melodramático da “memória” – dito de outro modo, l’aldilà (Fulci), o que está por detrás da nuca e vem ao de cimo para se instalar, como único plano de referência, à nossa frente. O cinema da morte, o que não é o mesmo, longe disso, do que a “morte no cinema”.
Assim, enquanto os dois fazem amor sobre a campa de Augusto (o marido), este levanta-se e morde a mulher antes que Francesco o abata a tiro. Todo o desejo (amor), com efeito, é já para lá da morte porque é dela que ele brota e cresce. Toca-se então um ponto limite do que não pode (deve) ser visto. Compreende-se assim por que razão, quando se beijam pela primeira vez num ossuário, os seus rostos se encontram cobertos por panos (como com Os Amantes de René Magritte) e um sudário cobre o corpo e rosto da mulher que regresssa da morte para ser de novo abatida por Francesco (aliás, como a lei do cinema é a da “repetição”, resta-lhe apenas regressar noutros corpos – fá-lo por duas vezes- conduzida por essa memória de outre tombe que a guia).

Claro que todo o macabro e grotesco (sempre mesclado de burlesco) dos vários acidentes do filme (é essa também a função do acólito de Francesco, Gnaghi [François Hadji-Lazare, que fez parte das bandas skinhead francesas Les Garçons Bouchers e Pigalle]), está lá para nos distrair da “verdade” que passa pelo filme: os mortos podem voltar e a lei que os faz regressar é a do desejo – como se depreende do episódio do “motard” (misto de Ghost Rider e do Meatloaf do clip Bat out of hell) que foge com a sua inconsolável namorada: “Ele está apenas a comer-me. Deixo-me comer por quem quero”, diz esta (jogando com o duplo sentido do termo “comer”) a Francesco (caso também interessante dessa continuação do ”amor na morte” é o de Gnaghi que substitui o ecrã do seu televisor pela cabeça “animada” da rapariga que amava).

O filme, depois, num registo mais próximo do giallo, deriva para um thriller psicótico (onde a espiral do cabelo e a da escadaria do hospício constituem a fórm[ul]a que liga as suas duas partes) em que Francesco se transforma num serial killer que regressa ao cemitério e, depois de uma conversa com a Morte, decide partir.
No final, depois de atravessar um túnel e diante de uma paisagem de montanha nevada, Francesco conclui que “o resto do mundo não existe”. Com efeito, se o filme, como Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941) de Welles, começa com uma bola de vidro que contém uma paisagem nevada, ele acaba com a imagem do interior desse globo (que se apercebia mal no início): a de Francesco e Gnaghi face a um abismo (o final diegético). A esfera, afinal, de que nunca saímos, a do seu delírio (pesadelo) narcísico (por duas vezes os rostos dos amantes reflectem-se na água e Francesco olha para esse espelho plissado [Cocteau] de onde ela vem): o do cinema, sim, na sua forma mais bruta e, talvez, mais pura.
3. Orgasmo (1969) é o primeiro de 4 filmes que Carroll Baker (então com 38 anos) fez com Umberto Lenzi entre 1969 e 1972. Em certa medida, os quatro, até pelo curto espaço temporal entre eles, constituem uma única “peça” com modalizações e variantes plástico-imaginárias em torno de Baker, ela própria uma actriz “desviante”, da “Lolita” de Baby Doll (Boneca de Carne, 1956) de Elia Kazan à “mulher em queda” de The Carpetbeggars (Os Insaciáveis, 1964) de Edward Dmytryk, que deu ainda corpo e imagem, um ano depois, a Jean Harlow no biopic homónimo de Gordon Douglas, antes de partir para a Itália onde iniciou uma segunda carreira (com L’harem [O Harém, 1967] de Marco Ferreri) que se prolongou até 1975.
Aqui, ela surge como uma mulher rica americana que, depois da morte do marido num desastre de automóvel, recupera emotivamente numa sua mansão em Itália: como depois a traumatizada Martha de Il Coltello di ghiaccio (O Cutelo de Gelo, 1972) (que “emudece” depois da morte dos pais num desastre ferroviário), Catherine pinta, nomeadamente um “auto-retrato” feito ao espelho, como sublinha Peter (Lou Castel, vindo de I Pugni in tasca [De Punhos nos Bolsos, 1965] de Marco Bellochio), o jovem blasé que se introduz em sua casa; nesse auto-retrato ela encontra-se nua, o que coloca na raiz da sua perturbação (que se agravará depois com bebida, sexo e drogas) uma falha narcísica que tem a ver com a sua incapacidade de corresponder a essa imagem idealizada de si. É dessa “falha” da imagem (espelho) que se desprende a dimensão imaginária do filme (a instalação do “fantasma” que a estrutura e atormenta), como o dá a ver a sequência, na sua mansão, depois do regresso de Londres, em que ela percorre a casa à procura de um possível invasor de que ouvira o ruído: cena (teatro) do “fantasma”, do seu “desejo”, que dá corpo e espaço para o aparecimento de Peter a partir da dimensão imaginária (imaterial) do som. Mais do que nos filmes que se seguiram a este, Carroll Baker é aqui oferecida ao espectador como um corpo passivo e sacrificial, despojada de personalidade e roupas, pronta a dar corpo e imagem aos “fantasmas” dos outros (no teatro, “câmera de horrores”, que ela afinal se constrói para si própria): ir ao fundo de si, abismar-se nessa brecha do espelho é ao fim e ao cabo atingir o ça (id), o fundo comum, anónimo, dos vários cenários do desejo, potenciado aqui (nos seus jogos, permutas) pela introdução do personagem da pretensa “irmã” de Peter, Eva (Colette Descombes), o 3º vértice exorbitante deste triângulo vertiginoso.

O filme tem o título Orgasmo – referindo talvez a procura sem fim de uma “satisfação (fantasma) – mas é um título, pensamos, enganador, já que, mais do que o “prazer”, é a dormência extática (vazia), beatífica, do gozo (Eros = Thanatos) que comanda o comportamento (narcisismo para a morte) de Catherine. Se , como pretende Nicolas Abraham (com Maria Torok, L’Écorce et le Noyau [Flammarion, 1987]), o Fantasma reside numa cripta (túmulo) cavado em nós, no nosso inconsciente, em que se guarda um “segredo” (tanto do indivíduo como da sua história familiar) que o estrutura, Catherine encontra-se enclausurada (murada) no cenário do “fantasma” do seu desejo que, no início, ela parece convocar mas que, depois, se autonomiza (solta) para a assolar.
À medida que se esgota a lascívia (“la chair est triste, hélàs!…”[Mallarmé]), a estrutura (forma) do filme, sem nunca perder a sua “concretude”, torna-se cada vez mais “abstracta”, como é próprio de Lenzi que, nos outros filmes, explorará mais esta via do seu cinema. Na parte final, em que Catherine se encontra presa em casa pelos dois “meios-irmãos”, o filme adquire uma tonalidade boundage (ela é atada por cordas a uma cama de que se pretende libertar), crescendo a atmosfera carceral do filme que evoca, e num dos seus episódios de “tortura” cita mesmo, What Happened to Baby Jane? (O que Aconteceu a Baby Jane?, 1962) de Robert Aldrich: aí, Betty Davis serve um rato a Joan Crawford (que ela mantinha presa), aqui Eva dá um sapo vivo a comer a Catherine. “Quero morrer”, grita ela, então.
Como é próprio do giallo, a galeria de “perversidades” (isto é, de cenários da pulsão/ paixão) tem como suporte um enredo de “maquinação”, um complot de diferentes personagens (o advogado Brian [Tino Carraro], com a colaboração de Peter e Eva) para levar Catherine ao suicídio, de modo a eles ficarem com a sua fortuna. Os dois jovens constituem o veículo desse plano, de acordo com a tópica de um cinema de “intriga” que o giallo mimetiza para fazer passar o “veneno” de uma concepção de forma (sensorialista) que se vira contra o próprio cinema. É essa corrente de fundo que corporiza Catherine (Carroll Baker), primeiro pela “passividade” (masoquismo) – ela é o corpo mórbido do desejo, luxúria do espectador, desvanecendo-se no horizonte-limite da sua carne exposta branca -, e depois agindo, ganhando densidade (física) e cor (os tons escuros da roupa em sintonia com a ambiência do quarto em que se encontra presa), de modo a encarnar, ainda que no seu ponto de “desmaio” (fading) agónico, essa hipótese de um cinema da abjecção, matérico e expressionista (Aldrich, precisamente).
“Che peccato, era quanto bella”, exclama Eva face ao seu corpo duplamente morto, primeiro pela queda do telhado da casa, depois pelo advogado Brain. A última imagem, num plano-crash de lata amachucada, é a do carro desportivo dos dois jovens esmagado contra um camião. “The way of all flesh”, poder-se-ia dizer…
Um aspecto aparentemente paradoxal destes filmes é que, feitos em princípio para satisfazer o prazer (vício) escópico do espectador (julga-se que “masculino”, o famoso male gaze), acabam por metodicamente – engrenagem a engrenagem, nu a nu – o confirmar na destituição, esvaziamento de qualquer posição (fálica) de domínio. Algo bem presente logo numa das primeiras situações (cena do Fantasma, sim, mas de qual: masculino ou feminino?) de Così dolce…così perversa (So Sweet… So Perverse, 1969) de Umberto Lenzi, cena em que se vê uma mulher semi-nua ao espelho (Danielle [Erika Blanc]) e em que o homem que entra nesse boudoir, Jean (Jean-Louis Trintignant), seu marido (a quem ela se recusa), se vai encaixar na parte superior esquerda do espelho em que se mira. Sim, ele encontra-se preso da sua imagem (é Danielle que tanto o imagina como prende/fixa) e a sua errância por outras figuras femininas não passa de uma tentativa para compensar essa “falha” (lacuna) narcísica. É aqui que entra Nicole (Carroll Baker), figura enigmática, loura e estrangeira (americana), possivelmente brutalizada pelo homem com quem vive (Klaus [Horst Frank]), mas também dada a práticas desviantes S/M; com efeito, como se descobrirá, ela constrói-se como figura misteriosa já que, como Jean lhe diz na primeira vez que a vê, “o mundo é tão banal que o mais pequeno mistério nos cria espanto”. Essa figura é construída em combinação com Danielle (elas são amantes) para matar Jean e assim apoderarem-se do seu dinheiro.

Carroll Baker, no segundo filme que fez com Lenzi (este em França, com Bertrand Tavernier como assistente), é bem a configuração desse “mistério feminino” (aureolada de louro mas com a densidade do “continente negro” a que se referia Freud) elaborado para seduzir os homens e alimentar as suas fantasias (toda a sequência do primeiro encontro entre Nicole e Jean é aliás paradigmática desse “jogo de espelhos”). Jean-François Rauger (no DVD do filme) observa que, sobretudo no seu “período italiano”, Carroll Baker era o “símbolo [vivo] da decadência do cinema de Hollywood” – com efeito, para lá de Baby Doll e The Carpetbeggars, a que já nos referimos, ela participou em Andy Warhol’s Bad (1977), de Jed Johnson (1977) e Star 80 (1983) de Bob Fosse, sobre a curta vida e morte (violenta) de Dorothy Stratten (apaixonada de Peter Bogdanovich [vd. They All Laughed [Romance em Nova Iorque, 1981]).
Assistimos assim a dois filmes ao mesmo tempo: o aparente, superficial – dado num registo horizontal -, das aventuras de Jean (o seu donjuanismo desabusado) e o filme debaixo desse filme (o da conspiração das duas mulheres) que, a um nível mais profundo (vertical), o sustenta e estrutura. Exemplo dessa construção em “espelho” (mas falhado, en creux), logo depois desse primeiro encontro com Nicole, quando Jean deixa a mulher numa das praças de Paris, Nicole surge, tomando o seu lugar, enquanto ele a segue. As guirlandas ornamentais de ferro forjado (“arte nova”) do prédio onde ele vai dar, figuram bem os meandros rococó-kitsch dos fantasmas eróticos de Jean que convergem no que, com a ajuda de Freud, podemos talvez designar como o cenário de batem numa mulher (subjugada, passiva e que, depreende-se, tem de ser salva).
Jean (e com ele o espectador) encontra-se preso (encadeado) no jogo de reflexos entre Danielle e Nicole: assim, depois da primeira vez em que eles têm relações, temos um plano correspondente ao do boudoir de Danielle em que Nicole também se arranja frente a um espelho oval em que se vem reflectir (encastrar) a imagem de Jean. Mas, sabe-se, todas as relações especulares são fissuradas: se Jean está preso do espelho (que o fabrica), manipulado pelas duas mulheres, a reverberação (em circuito fechado) do desejo feminino também não parece suficiente já que Nicole vive com Jean (ou pelo menos simula-o) o que Danielle já não consegue ter mas de que ainda parece sentir a falta.
“Não era o que querias?”, pergunta Nicole, depois de Jean morto, face a uma Danielle dividida. O “jogo de espelhos” – que regula tudo – muda outra vez: agora temos Nicole a pentear-se, ocupando o seu centro (no quarto de Danielle, como no início, na cena com Jean) e Danielle por detrás, numa posição segunda, presa do fantasma de Nicole; de seguida, Danielle sai do espelho, deixando nele o vazio do seu lugar onde agora apenas Nicole se reflecte. Subtraída a sua imagem do espelho, resta a Danielle pôr no seu lugar a do fantasma de Jean, obsessão que Nicole e Klaus se encarregam de alimentar: assim, quando Danielle olha, pela derradeira vez, para o espelho este devolve-lhe a sua imagem com a inscrição “Tu morrerás também”. Morta por Klaus, e encenado o seu suicídio, Nicole e o comparsa partem com o dinheiro de Jean.
Algo que caracteriza Lenzi, quando confrontado com os seus colegas da época, é o lado engenhoso, tortuoso e habilmente construído dos seus filmes: aqui, o “jogo de espelhos” que estrutura todo o filme, exemplifica-o bem. Esse ponto de vista distanciado, objectivo e frio – que não exclui o fulgor de vários momentos (caso dos flashes associativos que afectam todos os personagens ou o delírio alucinatório de Danielle na parte final do filme) –, corresponde afinal à sua visão de cinema enquanto mise en scène, mostração quase geométrica (formulária) do trabalho do fantasma.
Assim, no edifício “arte nova” em que Jean segue Nicole há uma porta (de onde ele sai lacrimejante) com o letreiro “PHOTO INDUSTRIELLE”. É a porta de uma espécie de laboratório fotográfico por onde deambula um empregado cego. “PHOTO INDUSTRIELLE”? A expressão refere esse registo mecânico, assente em clichés mas nem por isso menos verdadeiro (analítico), do cinema entendido como uma cadeia (fatal) de fotogramas. Não escrevia André Breton (em 1924), num dos textos de Les Pas Perdus (“Max Ernst”), que a “escrita automática” (o discurso do inconsciente) era uma verdadeira fotografia do pensamento? É esse registo, o do cinema, que Lenzi parece nestes filmes perseguir. O seu ponto de vista é também (Serge Daney talvez tivesse gostado disso) o das imagens de TV (uma cena de pancadaria num salão de western, a preto e branco) ou o dos peixes do aquário que vemos nos planos com o velho porteiro do hotel, já no final do filme. O ponto de vista mecânico, alienígena e não-humano do cinema.
Todos os filmes da tetralogia de Lenzi com Carroll Baker têm a ver com um trauma do personagem feminino a que ela dá corpo (e talvez o que lhe resta de “alma”): a morte do marido em Orgasmo, a mudez (histérica?) causada pela morte dos pais em Il Cottello di giachio e aqui, Paranoia (1970), o desastre de automóvel de Helene – só a Nicole de Così dolce…così perversa mantém certa opacidade sobre a motivação das suas acções. Os próprios filmes, na sua forma, elaboram(-se) sobre essa situação de “perturbação” (dissociativa) tanto das estruturas narrativas (com frequentes flashbacks, assemblages enigmáticos de objectos no plano) como da “forma” (flous, caleidoscópios psicadélicos e momentos de hipnose estereoscópica da imagem), procurando não tanto resolver esse “trauma” como pô-lo em situação (cena) e abismá-lo. O genérico de Paranoia é sintomático desse ponto de vista, com imagens de Helene, num negativo com efeito de flou (avivado pontualmente pela cor, sobretudo o azul), a maquilhar-se ou frente a um espelho (os espelhos são recorrentes nos flous de Lenzi já que tudo nele é dado numa situação de reflexão e de refracção segunda, “espelhada”): essas imagens incluem inclusive (num efeito de prolepse) planos que já têm a ver com o desenlace da intriga, configurando-se (no seu tudo) como um rébus a decifrar pelo filme.

O primeiro plano de Helene, depois do genérico, passa do flou (desfocado) para o nítido, redefinindo a imagem e o registo do filme: vemo-la primeiro a colocar um capacete – ela é corredora de automóveis – e depois uma sequência com planos do carro em movimento (alguns subjectivos), sobre um fundo enevoado que contrasta com a maior definição dos dizeres e cores de cartazes publicitários ou dos edifícios que rodeiam a pista – e isto até que o bólide se despiste e arda. Passamos então para outro cenário, agora Palma de Maiorca, onde, a convite do ex-marido, Maurice (Jean Sorel) (de facto da actual mulher dele, Constance [Anna Proclemer]), Helene se desloca para recuperar do acidente: aí, ela encontra personagens singulares como Alberto (Luís Dávila), que gosta de viver em grutas porque as acha “cinematográficas”, e o Dr. Harry Webb (Alberto Dalbes) que filma tudo com uma pequena câmera. Tudo se encontra, portanto, sob observação (vigilância), dado e encadeado num jogo de imagens e reflexos que arma a estrutura “especular” (abismada [a tentação da queda no abismo é aqui recorrente]) do filme. O mesmo “espelho”, ele próprio flou, pelo qual Heleen é apercebida nua, a tomar duche, ao mesmo tempo que é espiada por Constance e Maurice (que também eles se reflectem no espelho embaciado da casa de banho): efeito estereoscópico de duas imagens (óculos: olhos) no plano cujo 3.º termo, de síntese, se resolve no imaginário do espectador (e do filme – a sua “teoria”).
A “engrenagem” do filme dá então a sua primeira volta (twist) quando Constance convida Helene a participar num complot para matar Maurice, descrito pelas duas mulheres (“americanas”), como um típico playboy europeu: egoísta, amoral e corrupto (significativamente, elas selam o pacto frente a um espelho em que se reflectem). O assassinato de Maurice deveria ocorrer durante um passeio de barco dos três, no entanto, quando Helene se prepara para desferir o dardo, arrepende-se, acabando Maurice por matar Constance, sendo o corpo lançado ao mar (os dois simulam então um naufrágio para explicar o seu desaparecimento). No entanto, como referimos, há sempre um terceiro olho (olhar), exterior, que procede à deflacção e crítica (análise) do ilusionismo (ou impasses) das imagens especulares: aqui, o da câmera do Dr. Webb que registou, de longe, os acontecimentos no barco. O tempo que medeia a chegada do rolo, enviado a Londres para revelar, é o de um cinema metonímico, horizontal, que serve para que os diferentes personagens (sobretudo Susan [Marina Coffa], a filha de Constance, que não acredita na história do par) procedam a uma crítica do comportamento de Maurice e Helene. O título, Paranoia, ganha aqui o seu sentido já que, à “objectividade” destas sequências, se opõe a crescente ansiedade do par, e sobretudo de Helene, constantemente provocada por Susan que, inclusivamente, se veste com as roupas da mãe.

Quando o filme chega, Maurice organiza uma sessão em sua casa, para o projectar com Webb, a que se juntam, inesperadamente, Susan e Albert (também juiz): a atmosfera de “suspense” da projecção é contudo subitamente interrompida antes dos acontecimentos no barco. Na verdade, Maurice, a quem Helene entregara o filme, cortou e queimou as imagens finais com o crime.
Tem-se então um novo twist – já que uma característica dos cenários do desejo, dos seus jogos de espelhos, é que eles tendem a repetir-se e reciclar os seus arquétipos até estes se esgotarem ou implodir – e Helene vê Maurice e Susan a beijarem-se reflectidos, também, num espelho. Para Helene seria essa a razão de Constance querer matar o marido, acabar com a relação entre ele e Susan. No entanto, como se fosse necessário esgotar todas as posições num jogo de xadrez, depois de uma série de peripécias que estilhaçam a unidade e verosimilhança da intriga (a “verdade” deste cinema que se faz desconstruindo os cenários da ficção), revela-se que todo o plano fora gizado por Susan e Maurice para, primeiro, incriminar Helene da suposta morte de Maurice (Susan mascara-se dela, com uma peruca loura, para enganar Albert) e depois matá-la (Maurice aparece numa curva apertada da estrada fazendo o carro de Helene despenhar-se e cair no mar). Mas, e essa é também a “verdade” do filme, há sempre um cadáver por detrás de outro cadáver (um espelho por detrás de outro espelho), uma “rainha” por detrás de todo o jogo, estruturando-o e o seu nome é morte, que aqui toma a forma do corpo enegrecido (e corrompido) de Constance que regressa à superfície (o último plano é dele).
Sobretudo em toda a sua segunda parte, depois da morte de Constance, este é o filme que mais se aproxima do thriller passional, passando a “frio” (as cenas de sexo com Carroll Baker aqui são quase estáticas, agónicas) a pulsionalidade mais mórbida (no sentido original de morbideza) do giallo dos outros filmes de Lenzi com a actriz.
“L’une chante, l’autre pas”, podia ser, no seu nível mais profundo, o título de Il Coltello di Ghiaccio (O Cutelo de Gelo, 1972), o último filme de Lenzi com Carroll Baker.
O seu cerne, nó-cego, reside na relação de espelho (mimética, reflexiva mas deformante) entre duas mulheres: Martha (Carroll Baker), pintora que emudeceu em criança depois de assistir à morte dos pais num desastre ferroviário, e Jenny (Evelyn Stewart), sua prima e conhecida cantora. As duas são louras, partilham o mesmo tipo físico e constituem as duas faces de um mesmo personagem (mulher). O “trauma” da morte dos pais de Martha (secreto desejo da “cena primitiva” de qualquer filho) é o factor que quebra (racha) o espelho e introduz uma perspectiva de anamorfose (deformação) nas suas imagens (reflexos). Martha é assim uma deformação (anamorfose) da sua imagem ideal, Jenny, antes do desastre. Mas esta relação de espelho esquinada, doente, é também a do cinema face a si mesmo e o giallo inscreve-se nesse hiato, falha e estilhaço do espelho que permite descer aos subterrâneos (espessura da matéria) do dispositivo de “reflexão” que sustenta a grande operação de “ilusão” do cinema (a saber, o seu princípio mimético e a sublimação por ele permitida [Aristóteles, Poética, IV]). A “mudez” patológica (histérica?) de Martha é também a do cinema que deixou de falar (de se idealizar como música = canto) e que regressou ao estado mudo (de sideração) das suas origens: como estamos em Itália, o cinema dessas mulheres frias (de gelo?), langorosas e melancólicas, as divas. É daí que vem Martha, isto é, Carroll Baker.
Sintomaticamente (tudo aqui é da ordem do sintoma), o filme começa (é o genérico com os créditos) com uma tourada em Espanha a que as duas mulheres (Martha e Jenny) assistem, sublinhando-se assim essa dimensão letal e sacrificial da “arte” (prática das formas) que o filme trabalha, procurando proceder à passagem do plano (latente) dos “arquétipos” (grandes fixações, clichés) ao da sua figuração em situações (da intriga) e imagens (= trauma, símbolos). À morte do touro correspondem grandes planos do rosto extático de Martha que reconhece assim – por entre a neblina que se depõe como um filtro sobre grande parte do filme – a imagem (tropo) do seu fantasma.
Quando Jenny põe a correr a fita gravada em que Martha recita um passo de Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll, dá-se a sobreposição (e co-incidência) dos tempos do real e do fantasma e este reactiva-se em Martha (que interrompe a gravação) lançando-a numa série de crimes (o primeiro dos quais é o de Jenny). Neste giallo de maquinação (Rauger), isto é, de intriga, sem sexo (quase) ou excesso de violência (gore), reduzido ao seu esquema mais simples (elementar, sólido e quase abstracto), o engenho de Lenzi está em fazer de Martha a aparente vítima desse surto de violência, lançando várias falsas pistas (o motorista, o jovem satânico) mas ocultando sempre o rosto (e o próprio acto) do criminoso. Esse parti pris formal (e dramático) de subtracção (elisão) de efeitos, de violência ou de discurso (Martha comunica pela expressão do rosto e por sons), como que isola a fórmula (essência) do Horror, desdramatizando-o e fazendo dele uma experiência quase apática ou extática (a Histeria, poder-se-ia dizer). Martha, por exemplo, não consegue gritar (do grito só temos o esgar) e nos flashes associativos que por vezes a assaltam surgem imagens de olhos (os seus e os do satanista – olhos sem pupila, com uma névoa no seu centro), assim como da boca (de Jenny), que dão a impressão de uma cisão dos sentidos, da sua divisão e não-articulação sobre um vazio.

É curioso, aliás, o estado de “suspensão” em que é dada Martha: na verdade, não se sabe bem se ela tem consciência dos seus actos já que eles parecem cometidos numa espécie de transe, só parecendo ter conhecimento deles a posteriori quando é confrontada com os cadáveres (caso de Jenny). Esse hiato, vazio, é o lugar silencioso interior da não-articulação do filme (e do espectador). O carácter letal desse vazio vem ao de cimo quando Martha, vendada, procura Christine – com quem jogara às escondidas – e não encontra ninguém à sua volta: é desse vazio que é depois regurgitada a criança, já morta.
No final, a polícia – com o tio, o médico e o motorista – monta-lhe uma armadilha para a desmascarar e, com o choque, ela recupera a voz e recita o texto de Lewis Carroll. O último plano é o das arcadas de uma cripta do cemitério que no seu rendilhado piranesiano evoca bem os subterrâneos da mente em que mergulhou Martha.
4. Nos primeiros dez minutos de Hebi no michi (Serpent’s Path) -, filme de 1998 de Kiyoshi Kurosawa que teve um remake, feito em França (La Voie du serpent), em 2024 -, o dispositivo da obra, que tem a ver (de acordo com a injunção do autor de “investigar no enquadramento”) com o esquadrinhamento do espaço, encontra-se já montado: o filme assenta no contraste, mais “emperrado” do que “dialéctico”, entre a superfície chata do plano (ecrã) – ele começa com planos subjectivos (travellings para diante) tirados do ponto de vista do carro ou dos seus condutores (Miyashita e Nijima) -, a sua profundidade (aberta logo nos primeiros planos no armazém em que os dois homens acorrentam Otsuki a uma parede) e um plano intermediário onde Miyashita (Teruyuki Kagawa) coloca um ecrã em que passa em looping vídeos com a sua filha de 8 anos, Emi, raptada, violada e depois abandonada já morta num descampado. O vídeo no monitor de TV reproduz uma segunda profundidade de campo, a do ginásio em que ele foi tirado. Se a “superfície” se encontra barrada (é o plano do cinema: espectador), as outras duas “profundidades” estabelecem um jogo de relações entre si: a do armazém em que se passa a acção está lá, por assim dizer, pelo “real” (que funda a situação) e a do ecrã (vídeo) pela rememoriação do imaginário, estabelecendo um jogo entre o “imaginário” (o romance de Miyashita pela sua filha) e o ”inconsciente” (esse fundo indiferente que tudo estrutura). Uma situação que é reforçada pelo plano enquadrado de uma porta que dá para o espaço do armazém vazio – com apenas uma cadeira, a do espectador – enquanto se ouve Miyashita a ler o relatório pormenorizado da autópsia da filha. Sela-se assim a desconectação (divisão) do signo cinematográfico: o que Miyashita (assim como o próprio filme) procura fazer é precisamente re-ligar as coisas, som e imagem (ou a própria sequência de planos), de modo a, por um lado, serenar a dor (angústia) criada por essa divisão (a perda da filha) e, por outro lado, encontrar uma razão (explicação: verosimilhança) para o que aconteceu (a verdade da irrupção bruta do real e das pulsões). Em certa medida, o mapa das fórmulas (de matemática) escritas no quadro (negro) por Nijima (Show Aikawa) refere, cifrada e enigmaticamente, essa demanda de sentido.
Ao dispositivo montado (o seu carácter carceral é acentuado pela prática do enquadramento e duplo (re)enquadramento adoptada em todo o filme) encontra-se subjacente (como no giallo) a ideia do cinema como câmera de tortura – e duplamente, em termos físicos mas também psíquicos, já que o contraponto da acção exercida sobre Otsuki (Yûrei Yanagi) é o processo de regressão vivido por Miyashima – as culpas que ele pode ter na vingança exercida sobre ele, via Emi, por Hiyama (Shiro Shimomoto). No entanto, este aparente huis clos em que parecem dados Miyashita e Otsuki, recai também sobre Nijima e as razões obscuras da sua participação na vingança do primeiro (ele diz querer “testemunhar”, “experimentar” essa situação). Como com os “círculos do Inferno” – para Kiyshi Kurosawa o cinema tenderia a seguir a lógica fatal do seu mecanicismo -, a situação repete-se com Hiyama, também ele raptado e interrogado pelos dois homens; no entanto, instigados por Nijima, os dois prisioneiros inventam um 3.º cúmplice, Ariga (Kaiei Okina); Nijima, que cada vez mais conduz e controla a situação (experiência), leva Hiyama a abater Otsuki e usa-o para chegar a Ariga; preso Ariga, ele telefona para a enigmática mulher (Kaoru Sunada), muda e coxa, que, na ausência de Hiyama, dirige o grupo de yakusas: assim, na fábrica abandonada onde Emi teria sido torturada e filmada pelos gangsters, o gang e Ariga são entregues a si mesmos enquanto num sistema de múltiplos ecrãs passa o vídeo de Emi que, contudo, acaba por ser substituído por outro, com outra criança, agora a filha de Nijima que também fora assassinada naquele sítio; no final, todos mortos, Nijima mata a mulher coxa, afinal o seu alvo desde o início.
Por fim, Nijima prende Miyashita, que também fazia parte do grupo que raptara a sua ilha e que se dedicava a vender os snuff movies das crianças, obrigando-o a ver a gravação da morte de Emi: nesse vídeo, contudo, para lá de sons indistintos (numa atmosfera que lembra a do barracão vazio do final de Cure [1997]), só se apercebem imagens nebulosas. Não as coisas ou as imagens, mas o seu espectro= fantasma. Sébastien Journel, aliás, no seu livro sobre Kairo (Pulse, 2001) (Le réseau des solitudes), refere-se à função de bloqueamento, anti-olhar, dos ecrãs no autor que, por um lado, reflectiriam a “morte” – “é a morte que apercebemos no efeito de reenvio da imagem” – e que, por outro, produziriam um outro tipo de imagens, aquilo que ele designa, bem, por imagens fantasma, que não pertencem a ninguém (L’Harmattan, 2009 [86, 69]).

O filme acaba com um flashback a um ano antes em que se vê Myashita rodeado pelas fórmulas que Nijima e a filha (Wow) traçam na rua. “Compreende?”, pergunta Nijima, “Não”, responde Miyashita. Ao fim e ao cabo, a “malha” de fórmulas e equações matemáticas escritas no quadro por Nijima e pela sua jovem aluna (reencarnação talvez do fantasma da sua filha) constituem o palimpsesto, mapa cartográfico cifrado do jogo de pulsões do filme.
Deste ponto de vista, o remake feito em França (La Voie du serpent), em 2024, do filme de 1998, integra-se numa concepção menos “individual” e mais “larvar”, imanente, do mal, agora entendido como tendo uma origem “mundanal” ou mesmo “cósmica” (como já sucedia, aliás, em filmes como Cure e Kairo ou o díptico sobre o “fim do mundo”).
Na verdade, existem várias diferenças entre as duas versões do filme.
Antes de mais, passamos do Japão para França, onde Kurosawa já filmara, em 2016, Le secret de la chambre noire (sobre o qual escrevemos em “Os fantasmas da fotografia revelados pelo cinema: de Nadar a Kiyoshi Kurosawa, Le Secret de la chambre noire”, in F. Guerreiro/ José Bértolo [ed.], Morte e Espectralidade nas Artes e na Literatura, Húmus, 2019).
Segundo aspecto, o terceiro personagem (Maurice Maeterlinck)– o que traz consigo a noção de “fatalidade” (destino) e realiza a tendência para o “pior” (o encadeamento das formas que conduz à morte no cinema do autor) – é aqui uma mulher (Sayoko) e não um homem (Nijima).
Em terceiro lugar, embora se mantenha a estética de (re)enquadramento do autor, esta não é tão sistemática (rígida) mas mais solta, o que cria, no início, uma certa “incomodidade” no espectador (conhecedor do seu cinema). No entanto, por um lado, isso abre o filme ao “exterior”, nomeadamente a uma percepção mais variada da cidade (Paris), tornando-o menos “concentracionário” (fechado) e mais aberto ao “imaginário” e ao “orgânico: assim, o negócio de órgãos ganha aqui relevância em relação ao dos snuff movies e o “dinheiro” constitui uma pulsão que, como em Cloud (2024), move os personagens; por outro lado, liberta espaço para o desenvolvimento do personagem de Sayoko (Ko Shibasaki), uma psiquiatra (endocrinologista), de quem se conhece a casa e a vida familiar (tem um marido, de quem se separou e que regressou ao Japão, mantendo conversas difíceis com ele via Skype). Que ela seja médica da “psique” (o que nos remete para a atmosfera de Cure) e não matemática, como o Nijima do primeiro filme, contribui para a perda de rigor da estrutura em puzzle (mise en abyme enigmática e cifrada) da obra anterior. Com o desenvolvimento do background do personagem feminino antecipa-se também o seu “volte-face” que, no primeiro, só se dá já no final – aliás, o titulo (Le regard su serpent) é descodificado logo no inicio por Laval (Mathieu Almaric), um dos homens raptados por Sayoko e Albert (Damien Bonnard), que se refere ao “olhar frio de cobra” da mulher. E de facto há nela algo do Mamiya de Cure no modo como deixa cair, leva ao suicídio o seu paciente japonês, Yoshimura (Hidetoshi Nishijima, actor de Doraibu mai kā [Conduz o Meu Carro, 2021] de Ryusuke Hamaguchi que já entrara em Loft [2005] e Kurīpī: itsuwari no rinjin [Creepy, 2016] de Kurosawa).

O filme, no entanto, reflecte também aspectos da “última forma” (e estética) do autor (sobretudo se pensarmos em Cloud).
Como se tornou constante em Kurosawa, o mal aqui (como em Cure ou Kairo) encontra-se disseminado no ar, é um mal estar de época, contagioso (os momentos de tensão dos personagens são dados menos por imagens choc do que pelo som mecânico da banda-sonora [como em Chime (2024)]), algo afinal “universal” (uma espécie de Dasein negativo) que está à espera de ser actualizado e assenta menos na acção do indivíduo (não há um seu condutor, “messias” diabólico como o Mamya de Cure) do que em pactos fáusticos que têm a ver com a questão do “poder” sobre os outros (aqui, o negócio de venda de órgãos e de pornografia infantil em que todos se encontram envolvidos, mesmo o marido de Sayoko). Daí a impressão escatológica de um “inferno na terra” de que fôssemos percorrendo os vários círculos (na linha de Jigoku [Inferno, 1960] de Nobuo Nakagawa que nos parece cada vez mais uma obra de referência primordial para o “novo horror” japonês).
Mais orgânico, encarnado (no sangue, tecido familiar e social dos personagens), esse “mal” radica aqui num mal estar familiar (o coração negro, sangue venoso do filme) que tem a ver com a rejeição dos filhos pelos pais (que os vendem por dinheiro ou para se verem livres deles) mas também dos pais pelos filhos (a estranheza que Lola, a mulher de Albert, detectava no olhar da filha, Marie). A “fábrica de horrores” – e centro de produção de cinema (dos snuff movies) – encontra-se aliás sediada num parque de diversões (uma espécie de pequena “disneylândia” fora do tempo e do espaço).
O que surgia ainda contido por uma “forma” concentracionária (carceral) no primeiro filme (a “disposição letal” das imagens a que nos referimos), volatiliza-se, espalha-se e dissipa-se agora no ar, na plasmaticidade e fluidez venenosa de uma “forma” que se automatizou e pode substituir-se ao mundo (como sucede com os Zombies de Kairo ou os extraterrestres do díptico do “fim do mundo”). Não há ninguém, de facto, aqui para nos salvar.