A vontade do cinema norte-americano voltar a olhar para a obra-prima Tengoku to jigoku (O Céu e o Inferno, 1963), que Akira Kurosawa fez a partir do romance King’s Ransom de Evan Hunter, não é nova. Ao longo dos anos surgiram vários rumores dessa possibilidade: nos anos 90 David Mamet terá sido abordado para um remake do filme, Chris Rock chegou a escrever um argumento no início dos anos 2000, e realizadores como Martin Scorsese, Mike Nichols ou Walter Salles estiveram ligados a esta possibilidade. Mais recentemente, Denzel Walshington passou o argumento a Spike Lee que, admirador do cinema do japonês (circula por aí a moldura onde o realizador nova-iorquino exibe um autógrafo que lhe deu o mestre japonês), pôs mãos à obra, numa co-produção entre a sua 40 Acres & A Mule, a A24 e a Apple.

Desde logo, este gesto de passagem é importante. Highest 2 Lowest (2025) tornou-se assim a quinta colaboração Denzel Washington – Spike Lee, depois de Mo’ Better Blues (Quanto Mais Melhor, 1990), Malcolm X (1992), He Got Game (Tudo em Jogo, 1998) e Inside Man (Infiltrado, 2006). Ou seja, dentro desta reinterpretação do filme de Kurosawa por Lee, está também esta especial ligação e metodologia partilhada entre os dois criadores americanos. Highest 2 Lowest é igualmente um filme para fazer evoluir, no seio desta parábola de tensão entre classes, o “rei Denzel”, no papel de magnata da indústria musical, David King. No filme de Kurosawa, era Toshirō Mifune a dar vida à personagem de Kingo Gondô, um executivo de uma empresa de sapatos. As diferenças começam logo aqui: no dilema moral do enredo (deve um homem rico, na iminência de ser tornar dono da sua empresa, hipotecar essa possibilidade e pagar o resgate pedido pelo sequestro, não do seu filho, mas do filho do seu motorista, raptado por engano?), enquanto Mifune se diluía no desespero dessa escolha, Washington mergulha o dilema na sua persona. Lee dá-lhe sempre espaço (como não?) e o actor arrisca como poucos, na construção de um homem em declínio, ora dividido e sombrio, ora histriónico e jovial. Por vezes ,enfrenta a sua cena de olhos fechados, outras esmurra o ar como Muhammad Ali; pode improvisar com adereços (uma granada na sua secretária), gestos simbólicos (tiros imaginários), ou diálogos vertidos em súbitas batalhas de rap. Não haja dúvidas: quando falha sabemos que falhou, mas quando acerta a gravitas à sua volta dá poder ao filme. Apesar de tudo, Lee consegue manter esse risco controlado.
O que é fascinante nesta reinterpretação de Spike Lee é que à oposição sem redenção de Kurosawa, o cineasta americano propõe uma transformação em que o baixo é o verdadeiro ponto alto e o ponto alto é na verdade o ponto mais baixo.
Nos anos 60, Kurosawa teria confidenciado à sua filha que esperava que Tengoku to jigoku motivasse uma discussão em torno das sentenças para os crimes de rapto, que no seu entender deviam ser mais pesadas. Além desse propósito, a ideia genial por detrás do filme era a de colocar em oposição o “alto do céu” e o “baixo do inferno” como formas de conceber as classes japonesas. A do empresário japonês, cuja mansão no cimo de Yokohama olha para baixo sobre a pobreza do povo. E, ao mesmo tempo, a inversão do olhar e da arquitectura: o raptor olhava, com ódio, desde esse “baixo infernal” para esse inatingível monte Olimpo. A esta oposição de classe e de arquitectura, Kurosawa acrescenta uma outra divisão, a da estrutura e linguagem cinemática. A primeira metade do filme, feita em planos sequência, é um filme de câmara, passado inteiramente na mansão de Gondô, onde se tem de tomar uma decisão; já a segunda metade, após a escolha, é um procedural crime thriller que implica uma descida ao mundo do raptor, com uma câmara mais viva a tentar capturar algo deste frenesim do submundo.
A abertura do filme de Spike Lee, com os planos dos arranha-céus de Nova Iorque, da estátua da liberdade e de um sinal de néon que diz “Welcome” deixa perceber que esse “high” de Kurosawa, esse céu, é aqui a cidade que nunca dorme, e em particular a baixa de Manhattan. David King vive no ponto mais alto do “céu” (o highest do título), uma penthouse sobre a ponte de Brooklyn. É tentador ver na transformação que Lee opera sobre o título de Kurosawa – “High and Low” para “Highest 2 Lowest” – uma forma de exacerbação que a sociedade americana estabelece entre o alto e o baixo, como se nos dissesse que a metáfora de Kurosawa na América implica conceber um fosso ainda maior entre esses dois pontos.
Mas há ainda que acrescentar um detalhe fundamental, o 2 que separa ambos os mundos. Lee fala desse 2 como uma homenagem a Prince e ao símbolo pelo qual a dada altura era conhecido. Mas, mais importante do que isso, e ao contrário do que acontece com o filme de Kurosawa, Highest 2 Lowest também é uma maneira de conceber um movimento, um trajeto do nosso protagonista, iluminado pela ideia de que afinal less is more. Em Kurosawa, um dos paradoxos mais interessantes é que a motivação do raptor, pobre, não é o dinheiro. Isto é, ele não rapta com o objetivo de enriquecer, mas sim como forma de atingir o rico naquilo que tem de mais vulnerável: a importância dada à manutenção do dinheiro e formas de o reproduzir. O que faz do enfrentamento final, uma cena tão terrível é que o que separa o rico e o pobre é um ressentimento de classe, um ódio que está para lá do dinheiro e, naturalmente, da redenção.
Em Highest 2 Lowest, Lee quer acrescentar uma camada que pode ser vista com um olhar moral, ausente do filme japonês. O rapto Yung Felon (A$AP Rocky) quer atingir o seu ídolo (o seu Deus) mas quer também o dinheiro (pois a ele o “melhor ouvido da indústria musical” nunca deu uma oportunidade). No clímax do filme, com a imagem presa num enquadramento exíguo (como as suas personagens) e o fundo sem profundidade de campo a fechar-se em ambos os planos (mimando uma porta a fechar) Yung Felon, apesar de preso, tem finalmente o mundo a seus pés (from Lowest 2 Highest). A polémica torno-o algo da atenção e por isso tem finalmente, na derrota, a sua vitória: o poder para propor-se assinar um contrato com David King. Inversamente, e eis aqui, a tal trajeto iluminado do título, King compreende que não quer mais habitar no highest e que prefere fundar uma empresa familiar, ter tempo para a família e para a música. Em resumo, o que é fascinante nesta reinterpretação de Spike Lee é que à oposição sem redenção de Kurosawa, o cineasta americano propõe uma transformação em que o baixo é o verdadeiro ponto alto e o ponto alto é na verdade o ponto mais baixo.

Se dizia que este é um filme focado na presença de Denzel Washington, não é menos um filme de Spike Lee. À verticalidade da referida oposição, acrescenta-se ainda uma horizontalidade na qual as marcas do realizador nova iorquino estão presentes nas paredes, como mensagens de força e inspiração. A casa de King está protegida por símbolos da sua arte, ícones da cultura negra: desde as quadros de Jean-Michel Basquiat e Kehinde Wiley, aos retratos de James Brown, Stevie Wonder, Jimi Hendrix ou Aretha Franklin (a quem King numa cena chave do filme pede orientação). É ainda a Nova-Iorque de Spike Lee, ávido fã de basquetebol e dos New York Nicks, que vemos, com as sequências de acção a passarem-se em ambiente de rivalidade desportiva, imagens granulosas no subway (ainda a verticalidade) e junto ao estádio dos New York Yankees, em dia de jogo contra os rivais Boston Red Sox. A América de Lee não é aquela onde em cada esquina vemos uma banheira americana, mas uma que se orgulha da sua diversidade, e por isso o vermelho, branco e azul que vemos é sim o das bandeiras de Porto Rico, no seu dia nacional.
Em suma, Highest 2 Lowest não é o filme grave e que suscita perplexidade que Kurowasa fez. É apenas uma revisitação dessa oposição de classe, com os trejeitos de uma América que encontra ao lado dos pontos mais inacessíveis e elevados, a proximidade das pessoas, as cores e o cheiro da cidade. Spike Lee sabe filmá-los como comunidade urbana que baralha esse esquema onde subir é sempre (e apenas) para cima.
★★★★☆
Highest 2 Lowest está disponível para visionamento na plataforma streaming Apple TV.

 
         
         
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
            