No passado dia 11 morreu Diane Keaton aos 79 anos. As homenagens não demoraram a chegar. Não foi apenas “uma actriz” a deixar-nos, mas um símbolo de uma atitude perante o mundo e a vida. Ícone dos filmes de Woody Allen, com Annie Hall (1977) à cabeça (e que lhe valeu o Oscar), a força do seu talento revelou-se em muitos grandes e não tão grandes filmes – alguns deles recuperados nos últimos anos, como Looking for Mr. Goodbar (À Procura dum Homem, 1977). Seguem-se três testemunhos da relação com a obra de uma mulher maior do que a vida.

Não há assim tantas personagens nas quais depositemos o peso da identificação. Claro que haverá sempre um fator mínimo de empatia que nos liga a uma ou outra, mas raras são as vezes em que vemos naquela atitude, naquela obsessão ou forma de estar, um espírito idêntico, ou, mais do que isso, o nosso “eu” ficcionado. Aconteceu-me com a Carol Lipton de Manhattan Murder Mystery (O Misterioso Assassínio em Manhattan, 1993), uma mulher de meia-idade disposta a correr todos os riscos para confirmar a sua suspeita de um homicídio na porta ao lado… através dela, recordo pois a singularíssima Diane Keaton, atriz que tornou perfeita a equação dos filmes de Woody Allen, enquanto par ideal nos passeios e conversas pelas ruas de Nova Iorque, neste filme em particular, com os níveis bem altos de inteligência lúdica e paixão neurótica.
Sendo já da década de 90, Manhattan Murder Mystery contém os despojos de Annie Hall e Manhattan (1979). É o encontro maduro entre Woody e Diane, na pele de Larry e Carol, qual “fórmula” nova-iorquina reativada para falar de uma certa pancada pelo crime como literatura light. Temos então um casal intelectualmente excitado com a ideia de que o vizinho matou a mulher. Entenda-se: é Carol quem não pára quieta com a ânsia de desvendar o mistério, levando Larry numa jornada de medo “constitucional” (ele recusa-se a infringir a Constituição americana) que se transforma numa fabulosa aventura. Adoro-a por isso. Pelo modo como se deixa levar pela febre do amadorismo detetivesco – um pouco como me sinto em relação ao cinema, essa eterna cena de crime a pedir para ser desvendada.
Inês N. Lourenço

Poderia ter escrito sobre Annie Hall (1977), Looking for Mr. Goodbar, Interiors (Intimidade, 1978), Reds (1981), Manhattan Murder Mystery (O Misterioso Assassínio em Manhattan, 1993)… a lista de performances que só poderiam vir de Diane Keaton é longa. O seu sorriso largo, a fugacidade corporal, linguagem leve mas irrequieta, sempre ligeiramente desconfortável, como quem sabe que a sobrevivência passa por não ter receio em expor a interioridade de forma física, levou a que fosse criada uma energia eléctrica e francamente encantadora à sua volta. Era a primeira a rir-se de si mesma.
Desde que a perdemos que o eco da sua luz é descrito em antíteses. Tão sofisticada mas vagamente desgrenhada. Excêntrica, e tão valente na forma como se despe no ecrã, agarrada à sua vulnerabilidade. “She was an original”, lê-se nas homenagens por todo o lado. Nada é mais verdadeiro. Exactamente por isso é que resolvi voltar à comédia romântica de Nancy Meyers, Something’s Gotta Give (Alguém tem que Ceder, 2003), frequentemente revisto lá em casa (como não?). Ao contrário do que parece, o coração do filme de Meyers não se situa no triângulo amoroso que eventualmente se enleia. Também não é sobre como Erica Barry, uma talentosa dramaturga divorciada, acaba por se ver conquistada pelo “escape artist” Nicholson, um mulherengo de 63 anos a quem dão o nome de Harry. Something’s Gotta Give é, como os actores que o encarnam, superior em textura e ritmo. Num filme sobre descobrir o amor mais tarde na vida, assiste-se à dança entre dois veteranos, actores e amigos, que se movem na direcção um do outro, enquanto os seus personagens caem mesmo por amor e são forçados a viver um sem o outro por uns tempos para o vir a confirmar. A queda no amor ascenderá a uma das comédias mais carismáticas que Keaton faria, onde Meyers activa uma mulher que se vê, de repente, inconsolável. É-nos levado a crer que ela está perdida sem a sua habitual força ou determinação. Através de Keaton ela aprende a ser autenticamente ela, talvez desregulada mas feliz por isso.
Quando o filme saiu em 2003, David Denby escreve na New Yorker que a personagem de Erica veste camisolas de gola alta e que a razão deve-se a “(…) uma declaração de moda anti-sex”. Apreciações similares surgem de amigos de Keaton a sua vida toda, incluindo de um ex-namorado, o cineasta Woody Allen, que antes de lhe entregar em mãos o seu AFI (Life Achievement Award) em 2017, mencionou que “Keaton veste-se para esconder a sua sexualidade”. Não há nada de rígido na mulher que se tornou um ícone de moda andrógino misturando o que seriam tidas, na altura, como peças de roupa exclusivamente masculinas com elementos objectivamente femininos, exponenciando o charme de uma actriz a florescer durante a visceral era dos seventies no cinema. Não havia como convencê-la a ser uma “actriz”. Ainda menos uma celebridade. Ela seria primeiro dela mesma. Quando Nicholson/Harry lhe pergunta porque é que usa camisolas de gola alta no meio do verão, a resposta não podia ser outra. “I’m just a turtleneck kind of gal”. Ali está ela. O mesmo volta a acontecer durante a afamada montagem de Erica a chorar laboriosamente, sequência que poderia pender para a paródia, mas que me faz pensar em tantas outras personagens interpretadas por Keaton, nomeadamente Annie Paradis, em The First Wives Club (O Clube das Divorciadas, 1996), que grita ao marido com a sua voz rouca e estridente: “I’M SORRY!” Corpo contido, focado naquela fúria que nem por um segundo considera não libertar. Ele andava a traí-la com a terapeuta dela! No estabelecimento de paralelos entre a vida real e a ficção, todas as suas personagens se revêem num magnetismo idiossincrático que é incapaz de se curvar ao conformismo.
Eis então Diane Keaton, não só “a woman to love”, mas uma mulher que amou sem se prender. Hollywood queria-a a iluminar cada canto. Mas ela quis ser cantora primeiro. Depois descobriu-se ambiciosa, mas não competitiva. Em suma, o classicismo moderno de uma feminista, irresistível no seu bowler hat e luvas, que se queria casar, mas nunca ser uma esposa. Envolta nas contradições mais deliciosas – é tanta a feliz ambiguidade -, vestida de Erica vemos Keaton ter um final, longe dos padrões sufocantes predefinidos por outros. Não ficam só os filmes, ou o sorriso, ou a honestidade alimentada pela inaptidão social. Fica também um legado para as mulheres que ainda estão por nascer. Haverá maior vitória que aquela de pertencermos sempre a nós próprios?
Susana Bessa

Confesso que, de todos os momentos marcantes da única Diane Keaton, o momento em que soube da sua morte, através das redes sociais, me fez logo ir parar a estas frases: “To love is to suffer. To avoid suffering one must not love. But then one suffers from not loving. Therefore, to love is to suffer; not to love is to suffer; to suffer is to suffer. To be happy is to love. To be happy, then, is to suffer, but suffering makes one unhappy. Therefore, to be unhappy, one must love or love to suffer or suffer from too much happiness. I hope you’re getting this down.”
É um pequeno monólogo memorável de Keaton em Love and Death (Nem Guerra, Nem Paz, 1975), talvez um dos melhores pedaços de escrita de Woody Allen. Este é um dos filmes marcantes da primeira fase da obra dele enquanto realizador, período que o próprio define como o dos “funny ones”, composto comédias tresloucadas e algo anárquicas. Esta tem um pouco disso, mas também da densidade textual e intelectual que faria parte das comédias (e vários dramas) que se seguiriam, em que a actriz também seria figura central. Afinal, estamos a falar de uma paródia de Tolstoi e da sua obra monumental. Não fui revê-la com a morte de Keaton – talvez seja melhor guardar a memória das gargalhadas muito sonoras que o filme me proporcionou, mas é certo que um dia destes terei de tirar a teima, e testar se a graça se renovou em mim.
Por outro lado, não precisei de recordar Keaton porque é daquelas figuras que está sempre presente no meu imaginário. As pessoas que mais me cativam são as que me tiram o tapete dos pés, que denotam uma personalidade sempre surpreendente e difícil de catalogar. Diane era uma dessas pessoas: actriz extraordinária, mas também dona de uma persona pública irreverente. Vale a pena ver a pequena entrevista que Stephen Colbert recuperou há dias no seu Late Show. É uma singela prova de como ela podia ser desconcertante e hilariante, mas ao mesmo tempo ternurenta e amigável. Sabia ser cáustica e caótica, mas o seu caos tinha uma ordem muito própria que soubemos decifrar através de uma profunda admiração.
Faltam-me as palavras depois de ler os contributos da Inês e da Susana para esta pequena homenagem. Por isso vou roubar uma ideia do texto da Susana que me fez muito sentido: a do “magnetismo idiossincrático que é incapaz de se curvar ao conformismo”. É essa resistência ao status quo, às catalogações de um sistema tão castrador como o da máquina hollywoodesca, que a fez sempre brilhar, mesmo em filmes medianos ou maus – lembram-se de And So It Goes (Nunca Digas Nunca, 2014)?
Mas a sua resistência foi também ao que as convenções do cinema queriam de uma mulher nos anos 70, 80 e por aí fora. Foi igual a si própria e, felizmente, podemos ver isso, nem que seja por Annie Hall, que será sempre a personagem mais falada e adorada da sua obra. Talvez seja a que melhor transparece a personalidade extraordinária da actriz. Mas felizmente há tantos papéis inesquecíveis. Que continuemos a lembrar, com alegria e espanto, o caos adorável que foi Diane Keaton.
Rui Alves de Sousa
