Aquela que considero ser uma das mais estimulantes observadoras da condição feminina no mundo ou, lato sensu, uma das documentaristas mais brilhantes e significativas da actualidade acedeu ao convite do À pala de Walsh para uma conversa por email. Kim Longinotto é o seu nome e diria agora ser britânica caso isso significasse alguma coisa sobre o seu cinema ou se não estivesse a falar de uma das mais paisagisticamente diversas cinematografias dos nossos dias. Da paisagem temática e visual do Japão, do wrestling feminino ou de clubes de mulheres que se vestem de homens, passamos para o cenário cinzento e os vários rostos da mulher iraniana ou da mulher africana ou da mulher indiana… O cinema de Longinotto busca essa constância na diversidade que é a mulher e a sua luta, perseverante, incansável e inspiradora, pela igualdade de direitos e pela liberdade, a sua e a dos outros, sobretudo os mais fracos e “sem voz”.
Quando olho para a sua filmografia como um todo ocorre-me, imediatamente, uma questão: se, por um lado, existe nela uma constância formal e política – por exemplo, ao observar mulheres a lutar (e num dos filmes “lutar” é a palavra certa) por uma situação melhor; por outro lado, parece que a diversidade – cultural, geográfica, linguística – é um objectivo claro que se propõe alcançar enquanto realizadora. Planificou desta forma a sua carreira ou vai adaptando a sua “acção” filme a filme?
Eu sinto cada filme como um novo começo. Procuro uma boa história, alguma coisa pela qual me apaixone. Atraem-me as histórias sobre mudança, sobre desafios à tradição e velhas maneiras de pensar. Parece-me que no mundo de hoje, as mulheres estão na linha da frente da mudança porque elas são quem mais precisa dela. Os homens são mais tentados a pensar que esta cultura os favorece, ainda que muitas vezes os obrigue a desempenhar papéis lesivos e restritivos.
Na primeira metade da sua filmografia trabalhou com a ajuda de outras realizadoras, como Jano Williams (Japão), Ziba Mir-Hosseini (Irão), Florence Ayisi (Camarões). Desde Hold Me Tight, Let Me Go (2007), vimo-la realizar “sozinha”. Por que escolheu fazer estas “parcerias” no passado e hoje já não as faz mais?
Parecia-me justo dar créditos de co-realizadora às pessoas com quem trabalhei que falavam a língua do país onde estávamos a rodar. Eu gostei muito das minhas relações de trabalho com Ziba e Jano e elas contribuíram em muito para os filmes onde trabalhámos juntas. Os filmes são sempre um trabalho de equipa; eu admiro o trabalho de Ollie Huddleston como montador, por exemplo, ele é muito inventivo e brincalhão com o material. Também os directores de som com quem trabalhei são quase sempre espantosos. Em Hold Me Tight, The Day I Will Never Forget (2002) e Rough Aunties (2008) não trabalhámos com um tradutor, por isso não podia creditar mais ninguém. Pode ser útil ter alguém como co-realizadora, já que podem ir aos festivais com o filme. Mas com o meu último filme, Salma, a protagonista tem representado o filme nos festivais – ela adora fazê-lo e tem funcionando muito bem!
Para muitos críticos, o seu estilo de realização é observacional, reminiscente do grande Frederick Wiseman. Contudo, se para o realizador norte-americano a constância é alcançada no seio da vida “sem género” das instituições, a sua constância passa por mostrar mulheres a “resistirem” e a “perseverarem” por todo o mundo, debaixo de diferentes tectos. O que procura quando escolhe o indivíduo antes da instituição, a mulher antes do homen?
Eu sou atraída sempre pelos rebeldes, pelos pioneiros. Eu admiro-os. Eles elevam-se contra a tradição com enorme coragem. É muitas vezes doloroso para eles serem outsiders na sua própria comunidade, muitas vezes sentem-se sozinhos e assustados.
O meu primeiro encontro com o seu cinema aconteceu com Shinjuku Boys (1996) e o inesperadamente comovente e intenso Gaea Girls (2000). Nestes dois filmes [e também em Dream Girls (1994), claro] mostra-nos mulheres envergando “roupas de homem”, lutando pela sua identidade. Acredito existir uma forte tomada de posição humanista no seu cinema que se relaciona com esta ideia: mesmo quando querem fazer coisas de homem ou se virem a tornar num homem (a extraordinária treinadora de wrestling de Gaea Girls é quase um Shinjuku boy, na medida em que a sua masculinidade ultrapassa a masculinidade do homem comum), as mulheres estão a batalhar contra todas as barreiras pela sua identidade. Existe, todavia, uma valorização da força interior da mulher. Sente-se confortável quando alguém diz que o seu cinema é mais feminista que feminino?
Eu penso que o século XXI continua a redefinir e alargar o que é considerado “masculino” e “feminino”. Tradicionalmente “masculino” significa: aventuroso, prático, poderoso e egoísta. “Feminino” é visto como sendo protector, sensível, intuitivo e sacrificial. Eu penso que hoje nós somos mais flexíveis e imaginativos em relação a isto. Muitos homens estão a aperceber-se que existe mais alegria nas suas vidas se forem capazes de assumir sentimentos que eram talvez tabu para a geração do seus pais e as mulheres estão cada vez mais a avançar sozinhas e sem sentimentos de culpa.
Comparando o seu díptico iraniano composto por Divorce Iranian Style (1998) e Runaway (2001) com um filme como Gaea Girls, há uma coisa que me passa pela cabeça: ante estruturas de poder, a sua câmara concentra-se na reacção – gestos, fisicalidade – do indíviduo. Em Divorce Iranian Style, oferece-nos vários planos de rostos femininos em aflição. Na cultura iraniana o rosto da mulher condensa – pelo menos socialmente – toda a expressão do seu corpo. Em nome do “argumento político” ou de um estilo objectivo, deve um realizador de documentários lutar contra este tipo de plasticidade “natural”?
Eu fui muito feliz no Irão. A vida é interminavelmente fascinante lá tanto quanto é contraditória. Nós fomos forçadas a viver num mundo centrado nas mulheres, mas isto suscitou uma grande solidariedade entre nós. As mulheres entravam no tribunal e sorriam para a Ziba e para mim. Elas estavam contentes que estivessem três mulheres ali, a testemunhar a sua batalha, e a apoiá-las.
Outra possível comparação pode ser feita entre Divorce Iranian Style e Sisters in Law (2005), dois filmes que reflectem um certa realidade social e cultural no grande teatro do tribunal. De que maneira é a sua câmara atraída pelo tribunal como um perfeito microcosmos da sociedade e qual o papel que ela desempenha: advogada, juíza, testemunha…?
Sim, tem razão. Eu fiquei surpreendida quão similares eram esses dois filmes. A estrutura, tudo. Por exemplo, as cenas de abertura nos dois filmes dão-nos um lampejo sobre o passado, elas dão-nos a ideia do que aquelas mulheres estão a desafiar. Em Divorce, a primeira mulher que vemos é de uma geração mais antiga, ela levou uma “vida infernal” com o seu marido durante 30 anos; as mulheres mais novas que vemos a seguir não estão dispostas a aguentar uma vida assim. Na primeira cena de Sisters in Law aprendemos como uma mulher se casou contra a sua vontade, na realidade ela nem esteve presente no próprio casamento e foi trocada por um porco! Num dado momento em Divorce, uma rapariga de 6 anos, Parniz, brinca como se fosse o juiz e demonstra muito maior compreensão sobre as vidas das mulheres do que o verdadeiro juiz que nós acompanhamos ao longo do filme. Mas Sisters tem muito mais a ver com esperança por causa das maravilhosas juízas, Vera e Beatrice que têm a ousadia de desafiar as superstições e a cultura e têm a lei a suportá-las.
Nós fomos testemunhas, mas também fomos envolvidas pela acção. Por exemplo, Ziba não diz à juíza que Maryam destruiu a Ordem. Nós dizíamos às mulheres quão corajosas elas eram e que estávamos do seu lado. Ziba contou-lhes que também ela se divorciou, quando tinha 16 anos e depois outra vez com 18 anos. Nós não fomos objectivas de modo algum, o que foi importante para aquelas mulheres, que estavam habituadas a serem criticadas por toda a gente e enfrentavam uma lei com raízes em 500 A.C. Eu penso que a nossa ligação com aquelas mulheres salta à vista fortemente no filme. Elas confiam em nós, sussurram para nós quando a juíza não está a ouvir.
Não consigo imaginar quão difícil deve ser capturar momentos tão duros e privados, como faz várias vezes, por exemplo, na sequência do funeral em Rough Aunties, sem se sentir ou fazer os espectadores sentirem que a câmara está a ser invasiva. Como equaciona as fronteiras entre o que é fiel à verdade e o que é exploratório? Preocupam-na enquanto cineasta todas estas “linhas ténues” morais?
Eu faço estes filmes com as pessoas que estou a filmar. Se eu sinto que estou a ser invasiva, eu paro. As Rough Aunties chamaram-nos para filmarmos no rio quando Shubaba morreu. As pessoas de lá queriam que fossemos testemunhas do que aquelas empresas estavam a fazer. Nós fomos lá como parte da equipa.
Os seus dois filmes mais recentes, Pink Saris (2010) e Salma (2013), foram rodados na Índia. Escolhe primeiro o tema (como Sampat Pal ou Salma) ou o destino?
O tema, definitivamente. Eu senti-me inspirada pela história de Salma. Eu TINHA de a contar. É a história de milhões de raparigas por todo o mundo, neste momento. Salma deu-lhes uma escolha, finalmente. Tenho muito orgulho dela.
Kim Longinotto marcará presença na retrospectiva de parte substancial da sua obra, ainda inédita no nosso país, que terá lugar no Porto (entre os dias 28 e 30 deste mês, no Cinema Passos Manuel) e em Lisboa (entre os dias 4 e 7 de Abril, no Cinema City Alvalade). A organização do evento Kim Longinotto: Histórias no Feminino está a cargo da Zero em Comportamento, a quem agradecemos esta oportunidade.
Consulte a entrevista em inglês aqui.