O autor deste diário e o diário propriamente dito são, claro, imaginários. Contudo, é claro que estas pessoas tal como o escritor destas notas não só podem, como positivamente têm de existir na nossa sociedade, quando consideramos as circunstâncias no meio das quais a nossa sociedade é formada.
Eu juro, cavalheiros, que ser-se demasiado consciente é uma doença – uma verdadeira e completa doença.
De facto, acredito que a melhor definição de homem é a de bípede ingrato. Mas não é só isso, esse não é o pior defeito; o seu pior defeito é a sua perpétua obliquidade moral.
Fiódor Dostoiévski, Notas do Submundo
He’s a prophet, he’s a pusher
He’s a pilgrim and a preacher, (…)
He’s a walkin’ contradiction, partly truth and partly fiction, (…)
Kris Kristofferson, The pilgrim, Chapter 33
Vi pela última vez Taxi Driver (1976) numa edição VHS que, se bem me lembro, me custou os olhos da cara. Quando o vi pela última vez a imagem já estava gasta pelos sucessivos revisionamentos. Por isso, a última imagem que guardava do filme tinha tudo para sofrer um restauro violento agora, quando o podemos ver em sala, numa cópia digital cristalina. Confesso que nos créditos iniciais torci o nariz: o grão da imagem, o fumo branco intoxicante, as letras alaranjadas, a música atmosférica e demencial de Bernard Herrmann, tudo aquilo me aparecia supostamente “de cara lavada”. Mas que sentido fará dar banho ao mais sujo e visceral filme de Scorsese? Não lhe retirará o mau olfacto, a viscosidade e a poluição das ruas? Não me tenho como conservador nestas coisas e a minha recomendação, apesar do choque inicial, é simples: não pense por um segundo perder esta reposição, mas também não deixe de enfrentar o que é altamente indefinido e que se esconde, subterraneamente, por trás do HD.
Antes de mais, a reposição de Taxi Driver, o filme mais ideológico de Scorsese, constitui, hoje e neste país, uma opção política e – é preciso percebermos – uma opção política de risco. Desta maré de recuperações em sala de grandes clássicos, iniciada pela Midas Filmes com duas das obras-primas maiores de Alfred Hitchcock, a escolha Taxi Driver é aquela que se arrisca mais imediatamente a gerar um efeito político sobre a sua plateia. Um efeito se calhar equivalente ao que terá tido nos anos 70, bastando para isso pensar no que estava para vir, desde o fim da guerra no Vietname (no ano da rodagem do filme), à (posterior) tentativa de assassínio de Reagan e à higienização sócio-rácica de Giuliani na cidade-sarjeta, cidade-selva [usando uma imagem mais própria de Mean Streets (Os Cavaleiros do Asfalto, 1973)] por onde se move, em passo fúnebre, o táxi tumular de Travis Bickle (Robert De Niro). Como dá para ver, a positividade ou negatividade desse efeito não está em discussão ou, pelo menos, será susceptível de inúmeras interpretações contrárias. Mas aquilo que o “projecto de sociedade” que Travis Bickle literalmente corporiza não será indiferente a nenhum espectador, sobretudo num país que se acha, em 2013, destituído da sua soberania, à beira da implosão social ou da desintegração política (o filme estreia hoje, mas o Tribunal Constitucional só decide sexta qual o grau de relatividade da lei fundamental ou, reza a interpretação dos partidos mais à esquerda, se passamos a viver ou não num “estado de excepção”). Quando se diz que o país não aguenta – ou que o país aguenta, o sinal não importa – estamos a falar de uma acumulação de tensão que importa – e esta é a reacção da nomenklatura – saber controlar.
Em Taxi Driver, como já nos anos 70 davam conta críticos como Pauline Kael e sobretudo Manny Farber, Bickle é o paradigma desse exacto “estado de coisas”, mas a sua acção ou reacção desnorteante (curiosa, esta “falta de orientação” ideológica num taxista ou num zeloso ex-militar) não pode ou não deve efectivar o sucesso do seu projecto ideológico (= uma sociedade mais justa) e, por isso, Scorsese está longe de ser politicamente unívoco. No artigo «Undergound man», título que faz uma muito feliz ponte entre o filme de Scorsese e a ficção existencialista de Dostoiévski Notas do Submundo, Pauline Kael refreia a sua veia mais moralista de sancionamento do uso ideológico da violência no cinema, a mesma que a fez associar a persona de Clint Eastwood a um cinema anti-liberal, de extrema-direita, para agraciar o mais recente filme daquele que considera ser “o mais carnal dos realizadores”. Escreve Kael: “Este filme não opera ao nível do julgamento moral daquilo que Travis faz. Pelo contrário, ao arrastar-nos para o vórtice, faz-nos compreender a descarga psíquica dos rapazes silenciosos que se passam da cabeça”. Esta é uma das vias de análise do filme de Scorsese, isto é, ver-se em Taxi Driver a história de um homem que, consumido pelos traumas da guerra, não consegue comunicar com o mundo à sua volta, de tal modo que este – o mundo, entenda-se – se vai tornando num reflexo do lado mais terrível, mais visceralmente podre, de si mesmo; exteriorização, enfim, do seu “eu” sufocado, soterrado.
A psicopatia ou sociopatia de Bickle atinge o seu clímax na famosa cena do espelho: “You talkin’ to me?”. Esta é a versão desencantada, anti-americana, disse-se na época, do loner dos velhos westerns clássicos: o pior inimigo de Bickle não é a sociedade – não é só Kael que fala num filme expressionista, mas também Farber, que chega a citar Fritz Lang – mas a imagem que ele reflecte do mundo que o rodeia (não há mundo, apenas uma constante reflexão fantasmática de si mesmo), ou seja, o grande inimigo de Bickle é o próprio Bickle – o mesmo acontece com a personagem de Nicolas Cage, no também escrito por Paul Schrader, mas infelizmente não tão apreciado, Bringing Out the Dead (Por Um Fio, 1999)… Findo o trabalho sobre o corpo e a mente, Travis Bickle decide “sair do buraco”, emergir, e tornar-se parte da grande família de escroques e vermes que poluem a cidade, faz isso mas no sentido de a sabotar – Lang, Dostoiévski… as coisas começam a fazer sentido. Em Taxi Driver, pode-se pensar que aquela Nova Iorque é mais uma distorção “brought out from the dead”, uma anamorfose psíquica, do que uma realização fidedigna – muito mais Lang que De Sica, de facto. Esta é a versão das coisas que o espectador mais moderado quererá extrair deste grande filme-problema. Aliás, esta será a versão que colherá frutos inclusivamente junto de quem, por norma, acredita que o cinema é uma entidade politicamente neutra.
Roger Ebert, por exemplo, consegue redigir uma crítica que, por muito habilidosa e bem feita que esteja, ignora quase por completo toda a poderosa ambiguidade ideológica que este filme com-pre(e)nde. Para o bem informado crítico norte-americano, Taxi Driver não é um fresquíssimo exemplar do noir contemporâneo, nem uma reflexão languiana sobre o poder e a violência – este é o caminho de Kael e, já lá vou, de Farber. Não: Taxi Driver é um western. Cinefilamente, a ideia é sedutora e decerto correcta, já que, segundo Ebert, o argumentista Paul Schrader ter-se-á inspirado em The Searchers (A Desaparecida, 1956) de John Ford. A grande narrativa que vence nos dois filmes é – e aqui entra a metafísica schraderiana a par do cristianismo convulso de Scorsese vis-à-vis o catolicismo conservador de Ford – uma história sacrificial de procura e redenção. Numa palavra, Bickle tenta salvar Iris como Ethan Edwards (John Wayne) procura salvar Debbie Edwards (Natalie Wood).
Tal paralelismo é interessante, até porque parece claro que Scorsese quis encontrar em Bickle uma reedição decadente do cowboy solitário, lacónico na palavra e vertical na postura, contra o grupo de selvagens índios que tentam barbarizar a jovem tão radiantemente pura quanto a cor do seu cabelo ariano. De um lado, temos De Niro e as suas botas de cowboy, ex-combatente do Vietname que é mais rápido que o seu reflexo a sacar da sua Magnum salvífica à la Dirty Harry, por sinal, outro cowboy deslocado na cidade onde os altos edifícios são, como se sugere em Mean Streets, as novas montanhas; do outro lado, o “nativo” Keitel, confortavelmente sem maneiras num mundo todo ele feito à sua imagem, veste-se como um excêntrico chefe Apache. De repente, quase sem querer, já estraguei a pintura que Ebert deixara tão imaculada e superficialmente destituída daquilo que desconforta e inquieta quando vemos Taxi Driver.
Também não aceito bem – sobretudo porque nos faz fugir da questão central… – que se arrume todas estas implicações difíceis despachando o final com a hipótese de que tudo poderá passar de uma fantasia forjada pela e na cabeça de Travis Bickle pouco antes deste morrer. Se calhar, “lemos” nas personagens de De Niro, o loner justiceiro, e de Keitel, o índio selvagem, que, sem cerimónia, faz de cada pedaço do mundo o seu território e que usa as suas mulheres como mercadoria transaccionável, o mesmo racismo que caracteriza boa parte da mitologia hollywoodiana/americana. Se calhar, nova história “do ovo e da galinha”, Bickle ou o seu projecto fascizante de sociedade é tão produtor (vide o expressionismo languiano) da sociedade por onde nos guia como produto (à la De Sica) da mesma. Se calhar, pegando em Dostoiévski, o “mal” ou a “doença” de Bickle é a sua extrema consciência de tudo, a começar pela extrema consciência de si mesmo.
Está visto que, além do político, o filme está carregado, subterraneamente, de um forte simbolismo religioso, mitológico, cultural e até sexual. Kael é inventiva quando escreve: “este filme também tem uma aura erótica. Praticamente não há sexo nele, mas não haver sexo é quase tão perturbador quanto haver sexo. E é sobre isso o filme: a ausência de sexo (…). O facto de experienciarmos a necessidade de Travis por uma explosão visceral, e que essa explosão tenha uma qualidade de consumação, faz de Taxi Driver um dos poucos filmes modernos verdadeiramente de horror”. Esta ideia cola muito menos com a conclusão final de Ebert, a de que o desenlace é “mais emocional que literal”, do que com outra ideia aduzida, com alguma ironia por Farber, no texto «The Power and the Gory». Segundo este, podemos ver o filme como a história de um homem que enlouquece depois de levar sucessivas tampas do sexo feminino: da mulher negra no cinema – interpretada, curiosamente, por aquela que viria a ser a primeira mulher de De Niro, Grace Hightower – até à jovem Iris (Jodie Foster), que lembra (e Farber traçará o mesmo paralelismo de Kael ) a prostituta na referida história de Dostoiévski, passando ou, na realidade, começando pela “mulher dos seus sonhos” (outra loira deslumbrante…) chamada Betsy (Cybill Shepherd).
Por outro lado, voltando a Kael, a imagem do massacre final quase como um “orgasmo de sangue” é, todavia, mais uma vez útil para citarmos Mean Streets, o filme-irmão de Taxi Driver, obra (paradoxalmente) de interiores, pululando nos vermelhos, onde temos também uma personagem, Charlie (Harvey Keitel), que tenta ajudar outra, Johnny (Robert De Niro). (Curiosamente, aí temos um Keitel e um De Niro quase em papéis invertidos face ao que acontece em Taxi Driver.) A certa altura, Charlie deixa escapar a frase “Nobody helps anyone” à sua amante Teresa, prima de Johnny. É referindo-se a ela, em over, que Charlie narra uma fantasia sexual que se transformou num terrível pesadelo erótico: da imprevidente ejaculação veio sangue em vez de sémen. Três anos depois, tínhamos Bickle a limpar alternadamente sémen e sangue dos assentos do seu táxi e, depois, bang!, a tornar real a fantasia brutal de Charlie: um orgasmo de sangue, uma libertação de energia e tensão como poucas vezes se filmou na história do cinema.
Acredito que, nesta altura, o leitor começa a ficar farto: dou uma no cravo e outra na ferradura. Bem, vou tentar ser claro: traço tangentes entre autores, sobretudo entre Kael e Ebert, para tentar dizer que a eles lhes faltou a coragem que teve Farber no seu texto, coragem de tornar claro q.b. quão ideologicamente confuso, contraditório, turbulento é este filme de Scorsese. Farber constrói dialecticamente uma teia de argumentos que, do meu ponto de vista, espelha com precisão a força e o poder perturbante – quase tão terrorista quanto é o protagonista – deste filme. É curioso que esta reflexão tenha nascido em Farber – crítico menos susceptível ou moralista que Kael -, mas se pensarmos bem não há nada de extraordinário aqui: podemos dar conta do carácter ideologicamente esquivo de uma obra se nos estivermos a reportar a um contexto político já de si desestabilizador das mais íntimas convicções ideológicas. E agora estou a falar tanto de Nova Iorque de 1976 como de Portugal em 2013. Posto de outra maneira: a “obliquidade moral” do protagonista é a “obliquidade moral” do zeitgeist, que, por sua vez, é a “obliquidade moral” do filme.
Com efeito, Kael não quis apelidá-la de reaccionária, já Farber não teve problemas em identificar toda a evidente conotação racista da realidade (alucinada ou não) de Bickle, personagem sempre-glamorizada pela câmara de Scorsese. Distância ou identidade? “O intenso De Niro é vendido como um deslocado psicótico e, ao mesmo tempo, uma estrela carismática na qual se centra cada plano e a quem é dado um detalhamento prismático por um realizador que se move como um louco multiplicando sobre ela efeitos de glamorosa mitificação e energia terrena”. Farber também denuncia a incongruência dramática – culpa de Schrader, que assinaria argumentos mais bem polidos, tal como o fabuloso Rolling Thunder (O Executor Implacável, 1977) de John Flynn – da personagem principal, cujo quociente de inteligência parece oscilar como um barco à deriva: “Num momento, não sabendo o significado da palavra “moonlighting” [“biscate”, na legendagem portuguesa] (…); noutro ele diz palavras como “venal”, “mórbido egocentrismo” (…)”. De qualquer maneira, como diz Betsy, logo no seu primeiro encontro, Travis faz lembrar aquela música de Kris Kristofferson: “a walkin’ contradiction”.
A culpabilidade versus a inocência de Bickle é outro (se não “o”) conflito espinhoso dentro do filme, já que, como diz Farber, parece que a câmara se inclina sempre para suportar a sua acção. E claro que aqui o desenlace heroicizante sintetiza a dimensão revoltante (no sentido de induzir “sentimentos de revolta”) de Taxi Driver. Peço ao leitor para digerir esta sinopse possível de Taxi Driver, verbalizada por Farber da seguinte forma: “Um taxista que matou três pessoas, que foi por duas vezes localizado pelo FBI, e que tem suficiente artilharia não licenciada agarrada ao seu corpo para matar todo um pelotão, é saudado como um herói pela imprensa nova-iorquina”. O (anti-)herói que é Travis Bickle não é bem o psicopata que Kael viu nem exactamente o cowboy anti ou pós-john wayniano de Ebert, mas é – muito mais próximo de nós, muito mais parecido connosco do que se calhar queremos supor… – o produto de uma sociedade apática, submergida no mar de ilusões vendidas pelos media e por políticos moralmente corruptos e oportunistas. Um produto que, no entanto, acaba por ser um “produto(r) frustrado” (mas, ainda assim, bem menos que nós? ), já que contra os primeiros faz o mínimo (= destrói o televisor) e contra os segundos não terá tido determinação suficiente para avançar…
Bickle será aclamado ou não será aclamado, mas, apesar de tudo, a sua acção (conducente a uma distensão tão sexual quanto política) é celebrada por Scorsese: em terreno inimigo, fazendo-se passar por “mais um verme” que polui a cidade fedorenta, tornou-se, citando de novo o texto de Dostoiévski, o primeiro mártir “do belo e do sublime” ou, citando o cinema e o filme, a primeira reacção concreta ao “efeito Iris”. O que é que tudo isto significa concretamente? Bem, aí importa citar o que disse Scorsese há dias sobre a literacia visual dos mais novos: “Precisamos de os educar para perceberem a diferença entre imagens em movimento que envolvem a sua humanidade e a sua inteligência, e as imagens em movimento que lhes estão apenas a vender algo”. Por não conseguir responder, apenas pergunto de modo nada inocente: o que venderá – se vender… – o filme Taxi Driver, hoje, a si, cidadão português do ano 2013?