Esta é a segunda parte deste texto sobre a obra de Ingmar Bergman. A primeira parte pode ser lida aqui.
7. Terapia das falas
I am never my private self. I observe, register, establish
and coencourage or refuse. I am not spontaneous,
impulsive, or a fellow actor.(…) If I were to raise the mask
for one moment and say what I really feel, my friends
would turn on me and throw me out of the window.
Ingmar Bergman
Tim leva Katarina para almoçar em sua casa. O plano: um banho e uma salada. Tim diz que a fidelidade não existe, que os homossexuais são incapazes de ser fiéis pois não podem ter filhos. Lamenta-se, no seu alemão carregado, com a traição de Martin mas ao menos ficou com o apartamento. É um belo apartamento. Ele pergunta-lhe se ela é feliz. Ela diz-lhe que vai chorar. Tim não se importa, sabe que isso é um gesto de honestidade. Ele próprio já teve vários esgotamentos nervosos e é normalmente o amor o culpado. É viciado em intimidade. Ele fuma um cigarro de manta nos joelhos, ela está sentada no sofá onde Martin se costumava sentar. “Meus Deus, eu sou tão intelectual”, queixa-se. Katarina tem um presente para o amigo. Um cachecol de Milão. Era para o marido mas ele não o merece. Tim experimenta. “Faz-me parecer mais velho?”, “Não queres envelhecer?”, diz-lhe ela. “O pior não são as rugas, é o ficar feio”. Olha-se ao espelho. Só vemos o seu reflexo. “Quando olho para o espelho não acredito no que vejo”. “Quando fecho os olhos sinto-me como se tivesse dez anos”. “Quando abro os olhos vejo este velho. Este velho infantil. Não é estranho?”. Ela ainda não sabe, não chegou à idade. O sexo é só obscenidade e algum dia alguém o matará. Pensamento agradável. “Médicos, amantes, comprimidos, drogas, álcool, trabalho, nada ajuda. Talvez seja esse o processo de envelhecimento, a putrefacção”. Tim está ao espelho, agora vemos dois, Tim reflexo à esquerda e Tim, de carne e nervos e ossos, à direita. Há duas pessoas incompatíveis, uma que sonha com a intimidade, a ternura e outro onde há violência, horror, morte. Talvez tenham a mesma origem. Impossível saber. A vida castiga quando menos se espera. “Quando se atinge o orgasmo, o nariz está tão enterrado na merda que quase se sufoca”. Katarina tinha adormecido. Tim acorda-a e pede-lhe que encoste a sua mão ao rosto dela. “Sentes a minha mão?, Sentes o que eu sou? O que sou eu?”.
Tínhamos deixado Bergman e Karin de Säsom i en Spegel (Em Busca da Verdade, 1961) nessa espécie de neurose da alma para que apontava a vinda de um Deus imaginário e a não consumação do corpo. Essa neurose, já num corpo-marioneta-masculino, é Peter Egermann de Aus Dem Leben Der Marionetten (Da Vida das Marionetas, 1980). Ele conta ao psiquiatra na segunda sequência do filme como tem uma obsessão pela morte de Katarina, sua mulher. O psiquiatra que é corpo-marioneta-amante trai o segredo do paciente contando tudo a Katarina, sua amante. Essa neurose acaba-começa com o assassinato da outra Katarina, a prostituta, sodomizada e estrangulada por Peter. Segue-se um apuramento das causas (não do culpado, que desde os primeiros minutos se sabe quem é) duplamente teatral. Teatral na circularidade das sequências, como em actos, onde as inquirições e as conversas informais se confundem. Teatral nessa afirmação da vida como um jogo de marionetas movidas pelas cordas da pulsão. Neste caso é a repressão da homossexualidade (que o seu amigo Tim já ultrapassou partindo para outros dilemas) o que move Peter. O levantamento da máscara que equivale à afirmação existencialista da marioneta é algo que gerará em igual medida a disseminação da cura ou da doença (como veremos no capítulo seguinte). Por isso, Peter termina no hospital, apático, a recuperar dos efeitos desse levantamento (de peluche por companhia, edipiano é o seu problema entre a mãe e a esposa) e é dele, do hospital, que sai Elizabeth Vogler no início de Persona (A Máscara, 1966), em busca de uma solução para o espaçamento que existe entre a máscara e o rosto. Em ambos os filmes o branco do sonho, a impotência do branco. Neles, inverte-se a cronologia, o crime antes da cura.
Sobre Riten (Ritual, 1969), também ele um filme de máscaras e de marionetas indignadas chamadas “les riens”, os nadas, o que mais se tem dito é que é um filme menor feito para a televisão. E ainda mais, que antecipa nuns anos, pelo seu plot, a acusação de incumprimento fiscal de que Bergman foi alvo e que o fez cair em estado depressivo. Mas mais importante que isso é que Riten é o filme que mostra como a máscara (isto é, a sua arte) é esse espaço onde a acusação pode ser invertida e o juiz tornar-se o julgado. O ritual de Sorrisos, que vai pôr toda a gente sexualmente predisposta, é aqui o ritual obscuro, dos símbolos fálicos e dos corpos cassavetianos, que se efectua na noite que cai. “Está escuro e eu estou com medo”, diz o juiz perto do final. A pseudo-obscenidade do teatro dá azo à pseudo-obscenidade do julgamento. O ritual da arte e o ritual do julgamento são as pontes mais seguras com Da Vida das Marionetas. Mas é a arte como expiação do quotidiano, a arte que executa o crítico (como disse Truffaut) aquilo que vai aproximando a neurose de uma terapia.
8. Espantar a psyche
Were we given masks instead of faces?
Were we given hysteria instead of feelings?
Were we given shame and guilt instead of love and forgiveness?
Ingmar Bergman
Explode a luz do projector. Ensurdecedor, o som da película. Start. Dez invertido. Seis. Oito. Pila tesa. Lâmpada. Desenhos animados de pés para o ar. Pausa na projecção. Mãos de criança. Branco. Um esqueleto sai do baú e o diabo aparece na sala. Uma aranha. Mãos seguram um cordeiro do qual jorra sangue. O olho morto do animal. As entranhas. Um prego a ser espetado numa mão. Três marteladas no prego. Sinos e um bosque com neve. Uma vedação de ferro. Um monte de neve e lama. A boca, o nariz e o queixo de uma idosa. Uma idosa na cama. Um rapaz na cama. Uma mão que pinga sangue. Um homem prostrado na cama. Pingos. Mãos postas. Pés estendidos. Tocar do telefone. Na cama a senhora abre os olhos. A criança na cama desperta e levanta-se. Põe os óculos e começa a ler um livro. Tenta tocar em algo. De costas, o miúdo tacteia uma superfície onde está projectado um rosto desfocado que vai ficando gradualmente nítido. Plano frontal do miúdo. Persona.
Não é difícil ver a continuidade que existe entre a alma, como palavra estrangeira nas mãos de uma criança que se preparava para viajar (nos anos e no espaço) – é assim o final de O Silêncio – e a Alma, o corpo de Bibi Andersson, bálsamo para o curativo de outro corpo, o de Liv Ullmann, em Persona (A Máscara, 1966). Passaram-se três anos entre um filme e o outro e o silêncio mantém-se. Só que desta vez ele surgiu de repente a meio de uma representação de Electra. Um rosto em silêncio durante um minuto no palco que se transformou num silêncio de três meses no palco da vida. Pois falamos de doença (ou é sinal de força mental e de decisão, esse silêncio?, como pensa Alma), de um corpo dividido entre um rosto-silêncio e uma máscara-prolixa. É esse o mal que comporta toda a sociabilidade (e ainda mais quem tem por ocupação o compor personas), é essa a angústia de Elizabet Vogler que a psiquiatra lhe/nos revela: “o inútil sonho de ser. Não parecer, mas ser. A luta entre o que você é com os outros e o que realmente é”. Perante tal agonia é o silêncio que lhe permite não desempenhar papéis falsos, apenas observar o mundo. Contudo, esse silêncio traz a desordenação daquele e da “apresentação do eu na vida de todos os dias”. É porque de repente, Elizabet, que precisa de curar a alma à custa de outra Alma, se torna apenas superfície que reflecte, apagando o contraponto da inscrição emocional (a opinião). Neste processo é Alma quem fica privada do Outro, encetando um diálogo (mais do que isso, um julgamento de si própria), que resulta no rompimento da imagem, na fusão da identidade, na angústia que Melville já havia endossado ao narrador-advogado de Bartleby.
Se as imagens operam um corte, uma luta com a coisa em si, e sabendo nós que o cinema de Ingmar Bergman é todo ele feito de confrontos de palavras, com pessoas que a elas vêm agarradas – e especialmente no duelo feminino, como n’O Silêncio, mas também na Sonata de Outono ou, de certa forma, também nas Lágrimas e Suspiros – talvez não faça muito sentido separar a “cura” do alastrar da própria doença. Desta forma, Persona mostra o processo visual da alteridade, simultaneamente como circuito de psicoses e exorcismo. Bergman, que havia estado no hospital três meses doente, escreveu e filmou uma mulher que pudesse ter uma outra como sua máscara. Elas comparavam rostos (fundidas na mesma imagem, com a alma de dois seres a transbordar) e comparavam mãos. Assombravam-se mutuamente durante a noite e vingavam-se à lei do estalo ou do vidro durante o dia. Esse confronto-fusão será também a forma de o corpo se sincronizar com a alma, as intenções com as suas acções.
Também de confrontos no feminino e de grandes planos que fazem o circuito, a viagem (entre o exterior, a intenção interior, que o olhar revela, e a alma), é feita a penúltima obra de Ingrid Bergman. Ingmar filmou-a como viúva, mas sobretudo como mãe, em Sonata de Outono. Charlotte visita as filhas no campo, Eva (Liv Ullman) e Helena (Lena Nyman). Eva pertence à galeria de filhos (como Jacqueline em Lição de Amor ou Minus em Em Busca da Verdade) esquecidos em crianças pelo sucesso ou egoísmo dos pais. Eva vive uma felicidade intocada que irá ser revirada pelo evocação das memórias (é sempre esse o espaço do desbloqueio). Embora feito quatro anos antes, Scener ur ett äktenskap (Cenas de uma Vida Conjugal, 1974) podia muito bem ser a continuação de Sonata, se Ingmar Bergman virasse a atenção para Viktor e Eva, sobretudo para esta, “fechada na prisão infeliz da sua vida”. Liv está nos dois filmes mas é sobretudo a sensação de que aquela felicidade que o marido nos confidencia no início de Sonata é algo que se desfolha por camadas, que pode girar entre a aproximação e o afastamento. Eva, tal como Marianne diz no final de Cenas de Uma Vida Conjugal, teme ser incapaz de amar (apesar de percebermos bem do injustificado desse receio). E esse amor “resolve-se”, ou antes, é descoberto na célebre noite em que mãe e filha, combinação terrível, Bergman e Ullmann (como havia sido com Ullmann e Andersson) de vermelho e verde vestidas, despedem-se da máscara e vão à luta. É nesse instinto de sobrevivência que a cartografia da alma das personagens-tipo de Bergman se efectua, é assim que vão espantando o trauma tatuado pelo passado: ao sabor do conflito, ao sabor da fusão, ao sabor da música. Mas que ninguém se engane. Como qualquer tatuagem, a impressão continuará, não há perdão, injure is for life. E, como diz Eva: “maybe everything is already too late”.
9. O amor entre um homem e uma mulher é guerra
No outro dia li no jornal que um homem se tinha divorciado sete vezes e, consequentemente, se tinha casado também sete vezes. No final, quando já tinha noventa anos, foi a correr casar-se outra vez com a primeira mulher. É isto o amor. Nunca cheguei a perceber se a vida é uma coisa séria ou apenas uma farsa.
August Strindberg em “Dança da Morte”
Johan e Marianne amam-se. Johan e Marianne já não se suportam. Estiveram casados, estiveram afastados, estiveram separados, estiveram reencontrados e agora são amantes. Porque estão juntos? Johan pede a cabana ao seu amigo Peter para uma escapadela. Arrumam tudo para se instalarem. Ele assobia e ela olha-o, a chorar: “És tão comovente. Tornaste-te tão pequeno”. O casamento actual de Marianne é um erro mas é o marido errado que lhe dá os orgasmos. Ele amua ao saber disto, “que bom para ti”. Ele aplaude a sua emancipação mas não quer saber dos seus orgasmos. Ele faz-lhe prometer que ela não usará o seu super poder feminino. Vamos para a cama, diz. Beijam-se. Um plano azul da noite e o omnipresente som dos barcos no porto. Adormecem de mão dada. Marianne acorda a meio da noite. Pesadelo. Johan conforta-a. “Estavas a sonhar com o quê?”. Marianne diz com ar assustado: “Estávamos a atravessar uma estrada perigosa. Queria que tu e as meninas se agarrassem a mim. Mas não tinha mãos, só cotos. E estava a deslizar em areia macia. Tu estavas na estrada e eu não conseguia alcançar-te.” Que sonho horrível era. E Marianne pergunta se eles viveram as suas vidas em confusão. Todos nós, responde Johan. “Estamos a ir pela ribanceira abaixo e não sabemos o que fazer?”. “Sim, acho que é isso”. “É demasiado tarde?”. “Sim, mas não devíamos dizer coisas destas”, Johan tenta acalmá-la. “Johan, perdemos algo importante? Tu e eu? Às vezes consigo ler o teu pensamento e sentir uma tal doçura”. “Johan, aflige-me o facto de nunca ter amado ninguém, Eu acho que também nunca fui amada”. “Agora estás a ser teatral”, diz Johan. Ela olha-o surpreendida. Johan continua: “Eu sei o que sinto. Amo-te à minha maneira egoísta. E acho que tu me amas à tua maneira confusa e ameaçadora. Amamo-nos como as pessoas se amam na Terra. É tão simples quanto isto: aqui estou eu numa casa escura algures no planeta com os meus braços à tua volta. E aqui estás tu nos meus braços. Eu não tenho empatia com os outros seres humanos”. Ela repete-o, balbuciando sem nada se perceber das últimas palavras dele. “Não sei como é o meu amor e não consigo descrevê-lo. Maior parte do tempo eu não o sinto”, diz ainda Johan. “Achas que eu também te amo?”, pergunta ela. “Penso que sim”, responde. “Vamos ficar assim toda a noite”. Não vão pois ele tem a perna dormente e ela sono e frio nas costas. Johan apaga a vela para que o sono prossiga. “Dorme bem”. “Tu também”.
Bergman sempre disse que Uma Lição de Amor tinha sido feito para o momento que passa. Como os seus amores de juventude, até certo ponto os seus casamentos, fizeram todos parte de um mesmo contínuo por onde o seu amor ia passando através de vários corpos. O tom descontraído dessa “lição” via o amor com um jogo que se jogava ora com astúcia masculina (é o plano de Gunnar Björnstrand que só percebemos no final do filme) ora com sageza feminina nas manobras de Sorrisos de uma Noite de Verão. São os filmes do “esgar vigoroso” com que todo o amor começa, ao que se lhe seguiriam os “filmes do bocejo”, com que todo o amor termina. Se, por um lado, nestes está à mostra o fel destilado entre casais (lembro-me de repente de Harriet Anderson/Max von Sydow em Em Busca da Verdade, Ingrid Thulin/Gunnar Björnstrand em Ritual, Christine Buchegger/Robert Atzorn em Da Vida das Marionetas [que aliás “reaparecem” no primeiro episódio de Scener Ur Ett Aktenskap (Cenas da Vida Conjugal, 1973)], o casal a quem o Prof. Borg dá boleia nos Morangos, só para citar alguns); por outro lado, o lado militar dos Sorrisos antecipa a “guerra séria” do amor verdadeiro de Cenas da Vida Conjugal (1973). Além das naturais diferenças de tom, que são sinais da maturidade de Bergman, há ainda uma coisa que também fica de Lição para Cenas. Na passagem do jogo à guerra, da “règle du jeu” ao “jeu de règles”, temos David que termina um affair com Suzanne, Marianne/Eva Dalhbeck que se junta temporariamente ao abstruso escultor Carl-Adam, para quem “as flores são verdura”, mas também Johan que foge para Paris com Paula (como Bergman fez com Gun Hagberg em 1949, deixando a sua segunda esposa, Ellen Lundström) e Marianne/Liv Ullmann que casa com o super orgásmico Henrik. Trocas e baldrocas, esses momentos que passam num fundo que permanece, afirmado num quarto de hotel ou no “meio da noite numa casa escura”. Esse fundo é o amor. E a sublime inversão de Lição a Cenas é esta: passamos do marido e mulher que se tratavam como estranhos no comboio no início do primeiro filme, aos estranhos que se se tratam como marido e mulher no final do segundo.
Se em Cenas da Vida Conjugal se cita Strindberg é precisamente por causa desse amor também oscilar sempre entre o jogo e a guerra, o que se sente e o que não se sente, entre a comédia e a farsa, entre a perfeição encenada para a televisão do casal encenada para a televisão no início e os problemas que daí lhe seguirão. Este é também um trajecto onde os planos de juventude caem até não haver mais planos, onde o amor é um “drôle de chemin” no qual é preciso experimentar a dor e perceber o que se sente. Nesse caminho a “felicidade é uma massa paralizante”, como diz David em Lição, ou a ausência de problemas entre o casal pode ser um problema, como se diz no início de Cenas da Vida Conjugal. Nesse caminho, Liv Ullmann e Erland Josephson são o casal recorrente. Já estavam presentes, de certa forma, em Lágrimas e Suspiros, na cena em que David, o médico, rejeitava Maria e a “despia”, mostrando-lhe sinais do seu envelhecimento [grande plano em que ele lhe conta as rugas em cima das sobrancelhas. Mas nós não as vemos. Não a esta (aquela) luz. “Sabes o que as causou?”, pergunta-lhe. “Indiferença”, responde]. E mais tarde, claro, Ullmann e Josephson voltam em Saraband, o último filme de Bergman em vida. O último filme de Bergman sobre o amor, que é como quem diz, sobre a vida.
10. A vida sabe a morango
La mort… est du domaine de la foi. Vous avez bien raison de croire que vous allez mourir, bien sûr.
Ça vous soutient ! Si vous n’y croyez pas, est-ce que vous pourriez supporter la vie que vous avez ?
Jacques Lacan
Block está numa pausa do seu jogo com a Morte, quem sabe para repensar a estratégia do mesmo. Paisagem bucólica não fosse a caveirinha na carroça dos saltimbancos. Mia diz a Block que preferia que o seu filho fosse cavaleiro a malabarista. Jof vem da cidade, de onde vem humilhado, maltratado. Teve de dançar como um urso. “Porque não reagiste?”. “Fiquei nervoso… Mas rugi como um leão”. “Ficaram assustados?”, pergunta a esposa. “Não, só riram…” , diz o marido. Jof pega no filho que dá gargalhadas. Cheira bem e é tão grande. O cavaleiro cumprimenta Jof e este pergunta à mulher se não tem nada para oferecer ao seu convidado. “Morangos silvestres e leite fresco”, responde. A refeição é humilde e os morangos são da colina. “Nunca os vi tão grandes”, diz Mia. Sentam-se em frente da carroça a partilham do mesmo leite e dos mesmos frutos. O futuro há-de decidir-se depois.
Não há em como deixar de pensar no “díptico”, com enormes aspas, a inventar uma ligação temática de Det Sjunde Inseglet (O Sétimo Selo) e Smulltronstället (Morangos Silvestres) como filmes de fim. É a morte (e a Morte), o pessimismo, os céus escuros e carregados, a nostalgia que me fazem pensar assim. Curiosamente, eles pertencem à primeira parte da carreira de Bergman, feitos quando ele tinha apenas, sim apenas, 39 anos. Quer dizer, eu, quase sincronizado com a sua idade, não posso deixar de pensar que o fim terá aquelas imagens, aquelas negociações entre o corpo e a alma, aqueles relógios que ansiamos ver sem ponteiros. Contudo, os fins não possuem tanta carga dramática e são passados a dançar com palavras [a sarabanda de Saraband (Saraband, 2003)] ou a criar filmes em hospitais psiquiátricos [Larmar Och Gor Sig Till (Na Presença de um Palhaço, 1997)]. Tal engano corresponde à diferença entre a angústia do fim (que se tem quando ainda nada está para terminar) e o entretém, apressado, do real fim (para o qual o tempo passado a temer é perda de tempo). Tudo isto para dizer que entre um dos planos finais de Mónica e o Desejo – o de Lars Ekborg ao espelho de filho nos braços – e o famoso olhar de Victor Sjöström no fim de Morangos Silvestres há uma diferença que ultrapassa em muito o crescimento físico de Bergman. De um filme para outro há apenas quatro anos de diferença, isto é, a diferença entre um homem de 35 e um de 39 anos. No entanto há todo um mundo que muda entre a escapadela de Verão, que termina na idade adulta (e mais não é esse olhar de Lars que olha para a frente do que essa consciência e força para enfrentar o que segue), e a recordação de Prof. Isak Borg de uma vida plena (e mais não é esse olhar do que um olhar para trás). Se este é o filme dos flashbacks antecipados pelas recordações de David na Lição de Amor (a ele também já lhe afligem os dilemas da velhice, “já lhe falha o isqueiro”), este olhar de Isak é o olhar do mais puro flashback, o flashback interior que vai de encontro ao pai (e ao Pai). Como se sabe a rodagem com Sjöström foi muito atribulada (essa é a palavra mais inócua que serve para quase tudo) e o famoso realizador, então já bastante doente, morreu pouco tempo depois daquele olhar.
Mas como dizia há um certo lirismo em olhares à retaguarda, retrospectivos, aos 39 anos (isto se não aceitarmos a ideia de que estamos sempre a fazer imperfeitos movimentos de retrospecção, mas isso é outra história). Assim, entre o olhar para a frente e o olhar para trás há essa mudança, essa consciência que o corpo decai, que tudo terminará um dia. Em ambos, n’O Sétimo Selo e n’ Os Morangos, há essa alternância entre a vida a morte, ou melhor, entre o burlesco e o grave que tão só ilustram o que tenho vindo a destacar, a pulsão de morte ligada à pulsão de vida (ver introdução da primeira parte) na mecânica de criação de Bergman. Não é por acaso que os seus “filmes de morte” estão na época mais prolífica da sua carreira, os anos 50. Mais do que um tema comum, é a cena que descrevo acima, em que Block partilha o leite e os morangos com os saltimbancos, que faz o evidente raccord para esses outros morangos que Sarah está a colher e que são evidentemente um símbolo da juventude do professor, do amor que sentia por essa donzela que sustia a respiração pelo odor viril e masculino do tabaco do outro primo. Os morangos são sinais da fisicalidade da vida [um pouco como o terçolho do diabo em Djävulens Öga (O Olho do Diabo, 1960) em que a vida e a castidade de Britt Marie ferem afinal a imortalidade de morte e apaixonam D. Juan] e neles está contida toda a “metafísica” necessária. É essa fisicalidade que Borg vê como algo perdido. A ciência sempre foi a sua “religião” e as sequências de sonho, que transformam Smulltronstället numa viagem entre caixões, berços e amores insatisfeitos, são a imposição da vida sobre os dogmas do espírito , e impelem o professor a sentir-se um “morto-vivo”, um homem que passou pela vida sem sentir o sabor dos morangos (que não são colhidos para ele mas sim para o dia de anos do tio Aron), um homem de quem todas as mulheres gostam, pois é sensível e fala do pecado e da vida para além a morte, mas que nenhuma delas escolhe.
Esse jogo, o do amor, é o jogo mais difícil a ser jogado, mesmo no Sétimo Selo, a obra-prima de Bergman sobre a mortalidade do homem. “Se tudo é coisa imperfeita neste mundo de imperfeições então o amor é a mais imperfeita de todas”, diz Jons, o escudeiro. É curioso que François Truffaut oponha este filme a Nära Livet (No Limiar da Vida), realizado em 1958. Como escreve, é uma “inquirição meditativa” sobre a vida (o filme narra as peripécias da maternidade de três mulheres) contra uma “meditação inquisitiva” sobre a morte. Se nos detivermos na “vizinhança” de um filme e de outro na obra de Bergman, então os nascimentos são também o mais provável a seguir-se após a célebre sequência da “dança da morte” na subida ao promontório com que termina O Sétimo Selo. Tudo está fechado ou tudo está aberto na mesma dança. “You are all going to die”. “You are all going to be born”. Escreve ainda Truffaut sobre No Limiar da Vida: “A vida, o nascimento, a morte são segredos – segredos pelos quais uns são convocados a viver e outros condenados a morrer. Podemos tomar de assalto os céus e a ciência com questões – mas só existe uma resposta: onde quer que a vida esteja a ser vivida, os que a vivem são presenteados simultaneamente com angústia e alegria”. É neste sentido que este filme é ao mesmo tempo o contratipo e o seguimento lógico destes dois filmes sobre a morte. É ainda essa inversão que ajuda a explicar, dois anos mais tarde, a inversão burlesca de O Olho do Diabo, em que um pouco como em “Le Diable et Le Bon Dieu” (1951) de Jean-Paul Sartre, o bem faz o mal e D. Juan, que até aprendera o “manual de sedução de mulheres nórdicas”, se apaixona e sai condenado a sonhar com o paraíso terrestre (“pois nenhum castigo é duro demais para quem ama”, diz o diabo). E este, figura cómica e envelhecida, só perde a zarolha porque Britt Marie mente ao seu amado dizendo que nunca tinha beijado outro homem. Fica intacto o provérbio irlandês que tinha dado origem ao filme “a castidade de uma mulher é um terçolho no olho do diabo”, isto porque no ano anterior já Bergman tinha arrancado violentamente essa castidade a Karin em Jungfrukällan (A Fonte da Virgem, 1960). Aliás, mais uma vez os filmes são a paga um do outro, o segundo encomenda pela possibilidade de ter feito o primeiro, uma virgindade por outra.
E terminamos a interminável história das inversões vida/morte, começos/fins com esse filme-tese a que já várias vezes fui fazendo referência ao longo do texto: Fängelse (A Prisão, 1949). Não é só porque no fim a prostituta Birgitta, de rosto suado, se vai suicidar na cave com a arma da criança mascarada de índio, ligando a inocência à morte. E quando morre ouvimos o choro do seu bebé… morto. É sobretudo porque é aqui, na primeira vez que realiza um filme escrito por si, que Ingmar Bergman, unindo a traço grosso a morte (“There is no way out”; o mundo como fängelse “onde quem pensa realmente sobre a vida comete suicídio”) ao nascimento da sua arte cinematográfica, rapidamente percebe como o pessimismo, assim como o optimismo, são duas opções de simplificação. Que o espectro entre a liberdade na arte (era a primeira vez que tinha total controlo de uma obra cinematográfica) e a prisão na (e da) vida (tema do filme) não se opunham. Que os filmes acontecem no intervalo entre a ausência de planos (é porque o diabo não os tem que o filme do professor não pode acontecer) e o excesso de planos (como denuncia a montagem do filme jorrando ideias originais, muitas delas carecendo de maior consolidação). Como disse Bergman mais tarde na sua autobiografia a propósito dos inventivos: “What about the absurdist, the trendy, the inventive? Aren’t they predictable, easily repeated, tempting and fun, handy little kicks, fast food for the impatient?”. Essa impaciência (da vida), junto a esse nihilismo (da morte) ligam os inícios dos fins em Bergman, assim como vão fazendo caminhar este texto para o seu término. Para terminar, como se renascesse.
11. Depois da morte, a insónia
A vida é a infância da nossa imortalidade.
Goethe
Agnes está agónica. Os lábios crestados, as pálpebras vermelhas, a tez muito branca. O relógio ruge com o peso de cada minuto. Ela espera, elas esperam, que a luz calma da morte entre naquele quarto encarnado. Cá fora, sentadas, as irmãs e Anna, a empregada, já sabem o que se segue. Esperam. A respiração funda explode como um gemido. Senta-se na cama, grita por ajuda mas o zoom na cara de Maria sabe que nada há já a fazer. Há que suportar o sofrimento. Vomitar para um alguidar de louça, ajeitar os cabelos na fronte molhada. Agnes abre os olhos no vazio uma última vez e vira a cabeça para Anna. O relógio não pára. Anna tapa-lhe os olhos e deita-se sobre o seu corpo. Mas quem chora é Maria. As suas irmãs reentram no quarto. Karin ajeita o corpo da irmã na cama. O relógio dá a hora. Destapam-na e endireitam-lhe as pernas. As mãos põem-nas sobre o corpo. Agnes morreu. E então começa.
Se a última paragem tinha sido nos filmes que mais punham em confronto a física e a metafísica – um que olhava o passado de forma nostálgica e a morte como recomeço (os Morangos) e o outro que parecia mostrar a parvoíce de jogar um jogo que era inevitável perder e que opunha a gravidade da morte à fisicalidade da vida (O Sétimo Selo) –, em Lágrimas e Suspiros o que se percebe é que a morte não é o fim. Estão lá as peças do xadrez, peões inabaláveis com vestidos brancos numa “casa de sangue”, estão lá as lágrimas prontas para o sacrifício do “cordeiro” (Agnes) de Deus, estão lá os relógios a compassar o tempo a escoar-se até ao fim. Mas não há morte. Harriet, que com Bergman viveu o seu amor de Verão, que foi mãe, que enlouqueceu, que se curou, aqui morre, mas não adormece. Talvez seja o triunfo da angústia que se atribuiu a Bergman, a ausência de valores como a fidelidade (não existe), o amor (às vezes não se dá por ele), o trabalho (é a ansiedade a “driving force” da sua criatividade) que aqui ganhe expressão. Talvez seja afinal que toda a obra de Bergman seja o tal filme que o professor de matemática propõe ao seu aluno em A Prisão. Minius também já o dizia em Em Busca da Verdade: “Estamos todos enjaulados. Cada um na sua prisão”. Por isso, não adianta morrer. “Estou morta, mas não consigo adormecer”, diz Agnes a Maria, que lhe dará de mamar, como quem alimenta o seu filho morto, na célebre “Pietá” de Bergman.
Mas estamos enganados. Agnes acabará mesmo por morrer, quer dizer, o seu corpo deixará de existir, mas a casa, essa (como a do cinema de Bergman) permanecerá habitada pelos suspiros, ou melhor, pelos nossos sussurros (“whispers”), pelos fantasmas de um passado que levou a que o toque físico fosse coisa de horror, de sangue. Do toque dos primeiros beijos de Monika ao toque de mutilação genital de Karin há todo um espaço que se aperta (da praia ao chambre movie), toda uma infância que se reverte em sereno desencanto. Nesse trajecto, a morte de Agnes, pela doença, acaba por vir preencher de vida aquela casa (é o impulso de morte, como sustento da vida). Que vida é essa? É a vida do espírito, dos espíritos, que hão-de insuflar de memórias os novos nascimentos. Enquanto isso, os mortos, sem sono, andam de balouço e são felizes. Por isso é que o cinema em Bergman é o acontecimento que supera a divisão entre o real e o irreal, entre a vida e a morte, onde a existência é aquilo que se filma como uma festa na prisão ou um luto na Primavera.