Na semana que passou o grupo do projecto de investigação “Falso Movimento” dedicado aos estudos sobre escrita e cinema do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa trouxe a Lisboa o norte-americano Tom Conley, um dos consultores do projecto. Professor em Harvard, dedica-se sobretudo ao estudo das relações entre o espaço e a escrita na literatura, na cartografia e no cinema, tendo editado dois livros sobre este: Film Hieroglyphs (1991) e Cartographic Cinema (2007). No centro dos seus interesses está também um dos seus (e nossos) cineastas favoritos: Raoul Walsh. Tendo vindo dar uma masterclass (nos dias 10 e 11 de Abril) sobre o génio de Hollywood e sendo ele o “santo padroeiro” cá da casa, ao qual lhe dedicámos um dossier em 2012, não pudemos deixar escapar a oportunidade para falar um pouco com ele. Foi na Cinemateca Portuguesa que nos encontramos com um homem simpático e olhar de curiosidade. O dia estava solarengo e a conversa foi ainda mais amena. As fotografias são, como já vai sendo hábito, da nossa colaboradora Mariana Castro.
Carlos Natálio – Se podemos localizar uma boa parte da história de Hollywood na obra de Raoul Walsh, por que pensa que ele não foi – e continua a não ser – um dos auteurs mais estudados do seu tempo? Terá alguma coisa a ver com o seu “toque invisível” ou o seu estilo no-nonsense que era tão prezado, por exemplo, pelos críticos do Mac-Mahon?
Tom Conley – Sim, sim, penso que muito tem a ver com isso. E eu recordo que ele nunca ganhou um Óscar, o que pode ser um sinal da sua grandiosidade. Mas penso que tem muito a ver com isso, porque ele trabalha no âmbito de uma produção de larga escala, com um estilo que herda de Griffith. E o seu trabalho é tão prolífico e dentro de tantos géneros que é difícil estudá-lo. Como se produz um grande auteur de Hollywood, quando há tantos filmes diferentes e de qualidade tão variável? Produzir um grande ícone torna-se muito difícil. Ele fez musicais, films noirs, filmes de mulheres, filmes de homens, filmes de guerra, westerns, filmes de gangsters e um bom número de filmes cujos géneros são difíceis de apontar, por se misturarem tanto. E também o facto de ele se descrever como uma pessoa que trabalha dentro da indústria provavelmente não joga com a figura mítica que teria um John Ford, um Hitchcock ou um Hawks. Quando dizes que os mac-mahonianos prezavam Walsh é algo que só os honra.
Luís Mendonça – Falava ontem [na primeira parte do workshop sobre Raoul Walsh] de André Bazin e da forma como ele valorizava o contributo do sistema de Hollywood na instauração da ideia do auteur. Propôs também que se isolasse a assinatura específica de Raoul Walsh ao longo da sua obra. Onde pensa que o sistema acaba e esta visão particular e pessoal do mundo começa?
TC – Eu falaria dos tópicos que vemos movendo-se através dos filmes na sua obra e que se repetem várias vezes. Um deles é aquilo de que Deleuze tanto abusa brilhantemente: o hífen, o trait d’union, a ligação. Ele pega numa palavra e torna-a numa outra coisa com um hífen. Como a sua bergsoniana imagem–movimento. Em Walsh existe uma assinatura de movimento e vemo-la na profundidade de campo, no estilo da panorâmica, que é extraordinariamente eficiente, não se prende quando pára, é muito gráfico, não é muito rápido, nem muito lento… É uma assinatura de movimento. Este é um tópico: o constante jogo entre profundidade e achatamento (flatness). Este jogo deve-se a uma singular sensibilidade ocular que vemos no trabalho de diferentes directores de fotografia: de Georges Benoît, de Regeneration (Regeneração, 1915), a um dos seus directores de fotografia preferidos, Sid Hickox. Mas ela está lá e torna-se numa assinatura ocular. Há um grande momento em White Heat (Fúria Sanguinária, 1949) em que as pessoas normalmente não reparam. Cagney está na prisão com Edmund O’Brien, que está deitado de barriga para baixo. Este fala com Cagney e há uma corrente que produz um ângulo diagonal, por forma que a sombra projectada pela corrente corta directamente o olho de Cody Jarrett [a personagem de Cagney]. Não conheço nada que lide melhor com enucleação. Há outro momento dele com Ma (Margaret Wycherly) em que os seus olhos são enquadrados entre as linhas da grade [que os separa na ala de visitas da prisão]. Quando ele fala com ela os olhos dele são cortadas por essas linhas.
CN – A propósito de outras amputações, existem também vários membros defeituosos ou mesmo literalmente cortados no cinema de Walsh. Braços em Pursued (Núpcias Trágicas, 1947), em They Drive By Night (Vidas Nocturnas, 1940), pernas e pés em High Sierra (O Último Refúgio, 1941) e em Battle Cry (Antes do Furacão, 1955). Como se houvesse uma “falta” que assombrasse os filmes, começando desde logo pelos corpos. Em que medida esta “falha” tem uma conotação psicanalítica?
TC – Essa é uma óptima perspectiva. Não é Hollywood construída sobre o tema da castração? Dizem-te que és castrado e depois existem estes ícones da “falta” que nos são dados. Nestes filmes, nós temos isto, mas as personagens não são vítimas dessa “falta”; no conjunto, elas vivem e trabalham através dela. Dean Jagger em Pursued. Ele é horrível! [risos] Como se chama ele? É um nome maravilhoso – já me lembro dele… E tem aquela voz rouca! [Tom imita-o].
LM – Depois nesse filme há a imagem dos pés no sonho. Penso que os pés são uma obsessiva imagem miniaturizada dos filmes de Walsh. Os pés feridos são símbolos da exaustão do corpo que percorre grandes distâncias, em filmes como Battle Cry ou Objective, Burma! (Objectivo Burma, 1945). No seu livro Film Hieroglyphs escreve sobre o uso subversivo das “partes baixas” do corpo no cinema de Walsh. Concorda que nele tem palco uma espécie de conflito entre corpo e espaço?
TC – Ah, sim! Em Objective, Burma vemos, numa extraordinária última sequência, estas figuras, que se tornam verdadeiramente dantescas. Porque são cabeças sem corpos, nos buracos onde se inserem. Eles estão a cavar as suas próprias sepulturas! Eles põem-se a si mesmos nos seus próprios espaços sepulcrais. E depois há o jogo com os capacetes… Mas sim, nós temos toda esta decapitação, que está implícita. Há uma grande sequência nesse filme, um jogo sobre som e cinema sonoro que acontece quando um soldado japonês aparece. A única coisa que vemos é uma cabeça, que emerge da escuridão. E depois uma figura diz: “Está tudo bem?” E uma voz em off responde: “Sim, Joe, está tudo bem”. Depois a personagem pega na sua granada e atira-a. Boom! E depois diz: “Já agora, o meu nome não é Joe” [risos]. Ajudaste-me agora com esse ponto sobre amputação, porque o assunto de castração tem muito a ver com enucleação. Podemos recuar até In Old Arizona (1928), um filme que foi concluído sem Walsh.
CN – Outro traço do seu cinema é a diversidade de paisagens. Não existe um equivalente ao fordiano Monument Valley. O seu milieu está quase sempre a mudar. Tendo em conta a importância do lugar e da viagem no cinema de Walsh, Dave Kehr forja o conceito de “map movie”. O Tom tem estudado os conceitos de cartografia e topografia. Pergunto-me como localiza a importância da geografia, espaço e paisagem nos filmes de Raoul Walsh.
TC – É crucial. Acho que ele é um dos grandes realizadores de paisagens. Os três grandes paisagistas: Anthony Mann, Walsh e Budd Boetticher. Eles filmam as mesmas áreas de maneira diferente. Eles filmam em Lone Pine. Boetticher é completamente árido e lunar. A figura humana é completamente estrangeira ao espaço. No caso de Mann – penso no final de Winchester ’73 (1950) – temos o mesmo espaço, a mesma área, mas ele filma um recanto onde os cactos estão. E é muito simples porquê: a personagem no filme está obcecada com a arma e, claro, ele não consegue encontrar a arma e é como se cada cacto fosse uma arma. É como se fossem mil armas! É Mille Plateux [referência à obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari]. Quando falo do filme nas minhas aulas, eu recordo os alunos de um ensaio de Freud, chamado «O Inconsciente». Nele, conta a história de um fulano que tem dificuldade em calçar e descalçar as meias. O analista pergunta porquê. E ele diz que vê em cada cruzamento de fios da meia uma vagina. Portanto, ele vê mil vaginas! Essa é a razão pela qual ele não consegue calçar as meias. Mil sexos, mil armas. Em The Naked Spur (Esporas de Aço, 1953), ele usa água, diferentes escalas de rios. É uma área diferente, não é Lone Pine. Em Walsh, há esta paisagem vertiginosa, que vemos em High Sierra. É em Lone Pine. Há uma história sobre isto. Haden Guest [curador da Harvard Film Archive e programador dos ciclos Harvard na Gulbenkian] contou-me – ele tem uma cópia da autobiografia de Budd Boetticher. Boetticher andava à procura de bons planos contrapicados para Ride Lonesome (O Homem Que Luta Só, 1959). Ele atinge um cume, com uma vista extraordinária; olha para uma pedra e vê lá uma assinatura que diz: Raoul Walsh [risos].
LM – É propriedade privada!
TC – Sim! Mas Walsh trata [a paisagem] de maneira diferente. Em Seven Men From Now (1956), há uma paisagem que é claramente a mesma onde Walsh filmou o final de High Sierra. Temos Randolph Scott tornado mulher, lavando a roupa e pendurando no estendal e Gail Russell está no outro lado. Há esta atracção invisível entre Russell e Scott. A linha do estendal torna-se aquilo que define a paisagem porque nos dá a sensação da sua extensão e torna-se o telégrafo, o arame que comunica, é o diagrama da sua comunicação entre estas duas personagens. O código é uma série de molas para a roupa.
CN – Escreveu também sobre a falsa virilidade dos homens no cinema de Walsh [por exemplo, no filme ironicamente intitulado Manpower (Discórdia, 1941)]. Mas também sobre os papéis fortes interpretados pelas mulheres. Não só as mulheres são fortes como, muitas vezes, são perturbadas. Existe uma boa frase que exemplifica isto, dita por Shelley Winters em Saskatchewan (A Grande Ofensiva, 1954): “men are saints, women are sinners”. Qual a sua visão das relações de género no cinema de Walsh?
TC – Ele inverte-as permanentemente. Fá-lo sempre assim. Ele abala os estereótipos, o que se vê ao longo de todo o seu trabalho. Mesmo uma figura masculina como é Victor McLaglen em What Price Glory (O Preço da Glória, 1926) torna-se “a mãe” Flagg – o seu nome é Capitão Flagg. Ele dá o seu peito ao soldado abatido para ele mamar. É um plano pietà. O mesmo acontece com Errol Flynn. Quem é mais feminino que Flynn? Em Objective, Burma nós temo-lo a falar num tom de voz baixo. É como a mãe com as suas crias. O tom homoerótico no início torna-se num erotismo de ternura que permite aos homens sobreviverem. O homoerotismo torna-se numa força de vida. Encontra-se isto em toda a obra. Há uma frase que adoro, de Wallace Beery em The Bowery (O Terror dos Cabarets, 1933): “It’s a men’s world!” [Tom imita a expressão “pouco convincente” de Beery]. Nada disso!
LM – Walsh dá também uma grande importância ao dinheiro e às relações de poder. Contudo, com elas, vêm frustrações e quedas épicas. Estou a pensar em Silver River (Rio de Prata, 1948), The Revolt of Mamie Stover (Mulher Rebelde, 1956), King and Four Queens (Um Rei e Quatro Rainhas, 1956), mas também na sequiosa personagem de Cagney em White Heat . Será esta uma forma que Walsh encontrou para retratar a cegueira muito americana por dinheiro ou por uma atitude individualista na vida?
TC – É uma excelente questão. Não pensei sobre isso. Estás-me a puxar até ao limite aqui [risos]. Mamie Stover é o paradigma disso. Jane Russell a segurar o dinheiro, a dizer o que quer. Mas ela deita tudo a perder. É toda uma economia do desperdício, no sentido de Bataille. Tem a ver com o potlatch do filme e o problema da retenção versus dispensa culturalista. Penso que as personagens de que Walsh gosta são as personagens que explodem.
LM – Para além da transacção de dinheiro, detectamos também uma transacção de personagens. Vemos isso em vários dos seus filmes, começando por The Thief of Bagdad (O Ladrão de Bagdad, 1924), que personifica um príncipe que ele não é, e acabando em Blackbeard, the Pirate (Barba Negra, o Pirata, 1952), que usa um clone para distrair o inimigo. Também Uncertain Glory (Três Dias de Vida, 1944) ou Desperate Journey (Jornada Trágica, 1942), com os soldados ingleses disfarçados de soldados alemães, são filmes que parecem girar em torno da famosa frase em Othello: “I am not what I am”. Na sua biografia, Walsh cita Shakespeare: “Each man in his time plays many parts”. De que maneira existe uma forte presença do teatro nestes jogos de cena?
TC – De novo, acertaste em cheio! A dissimulação corre em toda a sua obra. Mesmo em Captain Horation Hornblower R.N. (Epopeia nos Mares, 1951) eles põem-se noutros uniformes. Mas Desperate Journey é magnífico desse ponto de vista. Podemos transpor, de novo, para a questão do género, com mulheres a fazerem de homens e homens de mulheres ou ingleses a fazerem de alemães. Apanhaste melhor do que eu. Eu tinha sido avisado!
CN – Temos falado do corpo, personagens e teatro. Isto lembra-nos que Walsh foi, previamente, um actor – trabalhou nomeadamente com D.W. Griffith – e um realizador do mudo. De que forma estes dois factos moldaram o seu estilo?
TC – Penso que bastante. Acho que é muito marcado pela eficiência e o que Tom Gunning chama de sistema narrativo. É um realizador que quer que a narrativa seja uma função do movimento visual. Narrativa sim, mas só na medida em que é cinematográfica. Há uma eficiência narrativa neo-griffithiana em filmes como Distant Drums (As Aventuras do Capitão Wyatt, 1951). Há este movimento através destes pântanos, que são feitos com extraordinária graça e simplicidade. Em Pursued, temos de percorrer os mesmos espaços duas vezes. Há o procurado e o procurador – isso duplica o efeito. Algo que não seria possível num romance… Mas agora eu tenho uma questão a colocar [risos]. Onde está a questão sobre The Horn Blows at Midnight (1945)? Considerado um dos seus piores filmes e eu acho-o magnífico!
CN – Nós temos um artigo no nosso site sobre o filme.
LM – Do Ricardo Vieira Lisboa, que escreveu também um texto sobre as relações de género, onde aliás o cita a si. Nesse texto, ele diz que adora particularmente os “maus filmes” (turkeys) de Walsh, como The Revolt of Mamie Stover e também alguns filmes dos anos trinta, menos conhecidos e reconhecidos.
TC – The Yellow Ticket (1931) é um grande filme! E Big Brown Eyes (Aqueles Olhos Negros, 1936), maravilhoso! E Wild Girl (1932), com Joan Bennett, oh! Acabei agora um artigo sobre The Horn Blows at Mid Night, que fiz lendo os primeiros planos de Christmas in July (Natal em Julho, 1940) de Preston Sturges, que é um filme sobre o potlatch. Bem, devíamos fazer um trabalho só sobre turkeys.
CN – Estava a pensar sobre qual a sua relação com o cinema contemporâneo. Quem vê hoje como o natural herdeiro de Raoul Walsh?
TC – Essa é uma pergunta mesmo boa. Bem, há um que gostaria muito de ser o herdeiro de Raoul Walsh, que é Bertrand Tavernier. Ele admite-o num filme que não é mau, que… que… bem, que não é mau: La princesse de Montpensier (A Princesa de Montpensier, 2010). Ele diz que tentou captar o movimento dos cavalos dentro do estilo de Walsh, através desse filme. E quando vi comecei a ver Walsh através de Madame de La Fayette, cuja história é a base do filme. Portanto, Tavernier é um deles. Eu não vejo todos os filmes contemporâneos. Alguns de Assayas terão essa eficiência de estilo.
CN – É curioso apontar só autores franceses.
LM – Terá alguma relação com esta ligação entre a recuperação do cinema de Walsh e o grande elogio dos críticos do Mac-Mahon?
TC – Sim, penso que sim.
LM – Ontem, falou sobre Scorsese e Tarantino.
TC – Mas claro! Scorsese é um grande herdeiro!
LM – Uma das coisas que fixei da sua aula de ontem foi a importância que deu às ligações de sangue, sobretudo fraternas, na análise ao cinema de Walsh. Estava a pensar noutro grande realizador norte-americano, James Gray. Talvez seja mais um fenómeno europeu…
TC – Pois, não o conheço, não.
CN – Ele tenta encapsular o cinema clássico nos dias de hoje.
LM – Penso ainda que há outro, que está mais ligado aos filmes de acção de Raoul Walsh, que é Zero Dark Thirty (00:30 Hora Negra, 2012). Uma espécie de Objective, Osama.
TC – Sim, um dos meus estudantes publicou um bom trabalho sobre isso, essa relação no cinema de guerra: Robert Burgin.
LM – Proponho passarmos agora para outra faceta da sua investigação académica, onde tem mostrado interesse em ver o cinema como uma forma de escrita (écriture). Relacionado com isto está o conceito central de hieróglifo, que para si liga a imagem-movimento à imagem-tempo de Gilles Deleuze. Podia explicar esta abordagem?
TC – Posso tentar. Eu não sou formado em estudos fílmicos. O cinema é uma paixão. A minha formação é em literatura, especificamente literatura francesa do século XVI. Nós somos como as baleias-brancas, uma espécie sob ameaça e em vias de extinção. Uma das coisas notáveis que nós descobrimos, que se prende com a literatura na adolescência da cultura da imprensa, é a relação que se estabelece entre voz e imprensa, entre voz e escrita. Vejo no Renascimento uma clara autonomia que é celebrada entre a escrita e som, uma relação que Derrida chamará “logocêntrica”. É suposto ouvirmos ou obtermos conceitos através da escrita? Derrida, em Gramatologia, fala em “pro-gramme”, para a letra, para a escrita (writing track). Escrever tem, na realidade, a sua própria autonomia sem ter em conta a voz que é suposto transmitir. Temos isto como uma coisa omnipresente na literatura deste tempo. Depois de escrever Film Hieroglyphs, escrevi um livro chamado The Graphic Unconscious. Quis mostrar que muitos lêem sem terem em conta qual o efeito visual da escrita em si. O que, consciente ou inconscientemente, estava a fazer era levar o cinema para a Renascença, abrindo uma questão na literatura, filosofia e cultura renascentista através do cinema, por causa da natureza dos filmes (tracks of film). Um serviu para ampliar o outro. Cheguei a um ponto em que é obsessivo, porque eu tenho os meus estudantes a ler no tipo original. Digitalizo os trabalhos e forço uma leitura diferente, lenta, baseada em princípios cinematográficos, mas sem o dizer.
LM – Sobre a relação com a escrita, uma das coisas que mais me chamaram à atenção no seu livro é o facto de, propondo-se estudar a relação entre imagem e texto, o seu objecto de estudo ser o cinema clássico. A grande tentação seria, a meu ver, estudar o cinema moderno: Godard, Varda, etc. Estava consciente dessa nada previsível escolha?
TC – Queria olhar para trabalhos onde a problemática estava embebida e não “posta à frente”. Se está à frente não é um problema. Tem uma diferente função. Vemos que muito do que Godard faz se deve a Duchamp. O que ele faz é quase uma poética do processo texto e imagem, o que é muito bem visto em Histoire(s) du cinéma.
CN – No começo do mês, desapareceu um escritor e jornalista português, Jorge Fallorca, e eu guardei uma das suas frases: “Às vezes, escrevia a ler um filme de Godard”. Pensa que no caso de Godard esta legibilidade está mais relacionada com a literatura, pela forma como coloca excertos ou citações nos filmes, ou com o modo como ele satura o filme com múltiplas referências?
TC – Ele é constantemente referencial. Ele encena exactamente o que Montaigne diz que faz nos seus ensaios: ele tem mil livros à volta, vai pegando qualquer um e faz uma colagem. Ele leva uma frase da “teoria dos autores” a um outro nível: “não há obras, só há autores”, “não há autores, só há títulos”, porque ele só troca os títulos e faz a imaginação jogar com eles, para produzir um mosaico móvel e associações mentais.
CN – Estava a mencionar isso sobre Montaigne e eu já falei com o meu amigo sobre isto: quando começo um ensaio sobre algo, se tenho espaço, gosto de pôr coisas que me interessam por perto e depois é como tocar piano, ir acertando nas diferentes teclas.
LM – É como um disc jockey. Godard tem uma frase interessante sobre isto, em que diz que nunca na vida leu um livro inteiro. Ele abre um livro e é como se pescasse…
CN – Deleuze diz que nunca leu um livro por pura curiosidade.
LM – Estava a dizer que Godard não está no seu livro Film Hieroglyphs, mas a maneira como aborda o cinema clássico é muito godardiana. Adora jogos de palavras, analisa o texto nos créditos ou as inscrições verbais na imagem. Para mais, está agora a escrever um texto para um Companion sobre Godard.
TC – Sim, vai ter cerca de 1000 páginas. 33 autores. Eu escrevi um pequeno capítulo. E fiz uma introdução, onde tentei não escrever algo que um qualquer autor pode dizer em duas frases. Não menciono um único autor nessa introdução, mas tento falar das obsessões [em Godard]. Godard é quase uma modelo (template) para as nossas vidas. Eu cresci a ver filmes de Godard e, depois, em todos os momentos na minha vida tenho um ponto de referência através de um filme de Godard. Nunca falho um. E é como Walsh: tem muitos turkeys. Adoro Film Socialisme (Filme Socialismo, 2010), por exemplo.
CN – Podemos dizer que existe uma função especial na forma como nós começamos a assumir a importância do cinema como reflexão ou meta-comentário ao mundo depois de “lermos” Histoire(s) du cinéma ou Film Socialisme e na forma como estes filmes usam a imagem em movimento? No fundo, não é como se tivéssemos a assistir a “mais um filme”…
TC – Sim, ele põe em questão a nossa relação com o mundo. Por exemplo, põe em questão o dinheiro em Film Socialisme, que é sobre as depredações do capital e o facto de não podermos fugir dele sem pensarmos na nossa relação com a polis – “lis” e não “lice”, essa temos o bastante. E sobre os modos de intervenção política. Voltando a Walsh, existe um risco poético e estético de fazer “filmes antigos”. Ninguém os viu e eles comovem-nos de modo muito impactante. Os meus estudantes, num curso que dei sobre o western e o género pós-guerra, ficaram espantados com os filmes antigos que mostrei, como The Woman They Almost Lynched (1953). Eles vêm para os cursos e descontraidamente pedem para ver Once Upon a Time in the West (Aconteceu no Oeste, 1968), que é sobre o fim do western, ou querem ver um filme como Dead Man (Homem Morto, 1995), que nem é um western. Depois eles vêem estes filmes antigos em 35mm, o que muda a sua visão do mundo. Não há mal nenhum em sermos “deslocados” por esses filmes. Isso não é recuarmos ao passado ou sermos uma “archival mole” (toupeira de arquivo), mas há uma selecção aqui.
CN – Muitas vezes, filmes antigos e referências antigas vivem num sistema que quer pôr tudo sob a perspectiva do presente. Quando temos oportunidade de olhar para o passado, nós reconsideramos as coisas e se reconsideramos as coisas, nós pomos o presente em questão.
TC – Exactamente. Voltando a Walsh, eu mostrei The Cock-Eyed World (O Mundo às Avessas, 1929). Um filme muito difícil de ver, que é um retrato devastador da política colonial norte-americana. É outro turkey.
LM – É interessante falar em colonialismo a propósito de Walsh. Filmes como The Big Trail (A Pista dos Gigantes, 1930) ou Saskatchewan, onde o herói é amigo dos índios, mas também um drama sobre a escravatura como é Band of Angels (A Escrava, 1957) parecem moldar uma visão fortemente política ou até social desse problema na sociedade norte-americana. De que maneira questões como a discriminação, o racismo e o colonialismo são encaradas pelo cinema de Walsh?
TC – Estava a tentar sugerir isso ontem, a propósito da diferença entre justiça e justeza. Existe uma dimensão política nesses filmes. Eles não são inteiramente meras funções da indústria. Mas, ao mesmo tempo, a indústria alimentou-os e usou-os de modo menos controlado: quando lançaram um filme como The Cock-Eyed World nunca pensariam que este título seria visto em 2014.
LM – Actualmente, temas como o racismo ganharam de novo popularidade, sobretudo com filmes como 12 Years a Slave (12 Anos Escravo, 2013) e Django Unchained (Django Libertado, 2012). O Tom comparou este último com Band of Angels, no workshop de ontem. Existe um passado e este passado continua fresco, nomeadamente através destes filmes antigos. Lembrei-me de uma inscrição textual – regressando de novo às inscrições… – num quadro negro em Bande à part (Bando à Parte, 1964) que diz: clássico = moderno. Em certa maneira, Walsh e Godard casam-se bem nesta nossa conversa.
TC – Magnífico! E Virginia Mayo em White Heat aparece num dos episódios de Histoire(s) du cinéma. É um dos primeiros episódios. Depois posso-te mostrar, no workshop.