Ser-se menino nos anos noventa implica que o que aconteceu nessa década esteja envolto em místicas lembranças de proibição. Ver certos filmes era desafiar uma autoridade paternal que os escondia, ver certos programas televisivos também se enchia de rebeldia: sair às escondidas do quarto, pé ante pé, ligar a televisão com o seu zumbido característico que nos parecia sempre demasiado elevado, encontrar o canal e quase sem som admirar o que os raios catódicos nos projectavam na retina. A inocência afastava-me, ainda, do mítico canal 18, mas o gosto pela ficção científica puxava-me para séries como os The X-Files. Poucos foram os episódios que vi, e menos ainda são os episódios de que me lembro. Mas há um que se deixou arrastar nos interstícios da memória, seu nome Kill Switch.
Tudo isto porque Transcendence (Transcendence: A Nova Inteligência, 2014) de Wally Pfister – o director de fotografia de Christopher Nolan, entre outros, e que agora se estreia na realização com aprovação do enegrecido mentor – parece ser a versão de 100 milhões de dólares desse episódio da deliciosa ficção cyberpunk do anos 90. Onde o que difere um objecto do outro seja pouco mais do que os referidos milhões (e efeitos que os ditos provocam, entenda-se efeitos especiais amiúde e terceiro acto explosivo/explodido), já que tanto a trama como as intenções e preocupações pouco diferem. Uma diferença, no entanto: onde Kill Switch era premonitório de uma perversão que o digital e a comunicação em rede trariam, Transcendence olha para as mesmas situações com a noção de que essa perversão já não é apenas delírio ficcional de um Asimov mas sim uma realidade não tão distante assim. Por isso, e também pela seriedade algo pomposa da fotografia, dos enquadramentos sempre muito educados e pela segurança sufocante de toda a empresa, aquilo que era rugoso, badalhoco, mal-amanhado – numa palavra, televisivo – em Kill Switch (e em quase toda a ficção científica dessa época) vira comentário sério, e algo enfadonho, com pretensões professorais.
O filme de Wally Pfister é estrelado por Johnny Depp, um cientista que trabalha na criação de uma inteligência artificial superior que permita à Humanidade um último passo evolutivo – a titular transcendência -, em que consciência humana e máquina se fundem num ser simbiótico que termina com desigualdades, acidentes, doenças, erros, guerras e todas as demais maleitas que afectam as gentes deste nosso mundo. Mas como criar uma máquina com consciência? A solução é partir de uma consciência e maquinizá-la, isto é, digitalizá-la. No fundo, o que o filme nos propõe é uma simples troca de letras – quase um exercício semântico -, em vez de AI (Artificial Intelligence) passamos a ter IA (Intelligence Amplifiction), conceito este primeiramente proposto nos anos 50 e que tem originado os mais diversos estudos de cientistas, filósofos e epistemólogos. A troca não é, pois, inocente, já que no caso da AI o que se pretende é construir uma nova entidade pensante partindo do nada, ao passo que na IA parte-se do já existente ser pensante e pretende-se expandir o seu intelecto ao tornar íntima a sua relação com o poder computacional da máquinas.
Mas como lidar com tal entidade? Essa é a questão que Transcendence coloca. Os problemas surgem a dois níveis, um íntimo e privado e outro de natureza social e comunitária. Começando pelo segundo, como fazer conviver as consciências dos humanos terrenos com a aumentada do ser simbiótico? (partindo do pressuposto de que este tunning cerebral não é acessível a todos); quanto ao primeiro, como conviver e amar um ser já desprovido de fisicalidade, onde todo ele é apenas pensamento? Tudo isto para dizer que o aqui se fala não é simples frenesim sci-fi o que, embora honre a escrita do argumento, não lhe tire a sisudez.
Curioso, ou nem tanto assim, nos últimos meses este é o terceiro filme que trata dessa digitalização do indivíduo e de como se pode (ainda) estabelecer uma relação entre os que mantêm a carne e os que optam – ou nunca puderam escolher – por seguir a via des-material, a recordar: The Congress (O Congresso, 2013) de Ari Folman e Her (Uma História de Amor, 2013) de Spike Jonze. Talvez seja provocação minha, ou simples parvoíce, mas independentemente das qualidades de todos estes filmes (e nalguns casos elas são muito escassas), penso que há um discurso mais complexo e talvez mais elaborado sobre toda esta questão da impossibilidade do toque nesta nossa era de comunicações à distância e relações virtuais num filme como G.I. Joe: The Rise of Cobra (G.I. Joe – O Ataque dos Cobra, 2009). Isto porque todo esse raciocínio surge no filme de Stephen Sommers como simples contexto, é já parte intrínseca de tudo o resto. Não há, pois, sublinhados, simplesmente já não sabemos quem é de carne e quem é holográfico, nem o sabem os próprios personagens… é tudo fogo de vista como o próprio filme, lampejos de realidade. É isso que falta a Transcendence, perceber que mais que uma questão teórica, a desmaterialização/maquinização é uma realidade; tratá-la como tópico de uma ficção científica cheia de efeitos especiais é reportá-la a um período imaginário e por isso distanciá-la do agora.
Não deixa, no entanto, de ser interessante encontrar um objecto desta dimensão financeira que se interesse verdadeiramente pelos temas que aborda (coisa rara!) e, mais que isso, que seja um filme de ficção científica com efeitos à medida que escolhe seguir a forma de um (melo)drama romântico sobre a impossibilidade do toque nas paixões digitais.