Foi a melhor prenda de Natal. Três filmes de Isao Takahata programados pela RTP2 para os dias 24, 25 e 26 de Dezembro (repetidos depois no início deste mês). Significativamente, as três animações Ghibli não tiveram estreia comercial nas salas portuguesas, o que fez desta exibição uma oportunidade redobradamente importante. O encontro não podia, portanto, ser mais feliz, até porque se propiciou num ano marcado por uma das mais belas e comoventes animações da história do cinema recente: Kaguyahime no monogatari (O Conto da Princesa Kaguya, 2013). No top do ano, decidi dar-lhe o terceiro lugar – lamento que isso não tenha sido suficiente para este filme chegar ao top geral do À pala de Walsh. De qualquer modo, parece-me que Takahata é um dos exemplos que ficam do ano transacto de cinema. Por ele se oferece um regresso à natureza artesanal da animação – a valorização do traço acima de tudo. Mais duas coincidências felizes: a série de animação Marco celebrou por estes dias o seu quadragésimo aniversário e outra série marcante de muitas infâncias, Heidi, é louvada com um filme com gente de carne e osso estreado nas nossas salas. Pois bem, estas duas séries foram co-dirigidas por Takahata. O cineasta da nossa infância pode bem ser um dos melhores cineastas da infância, ponto.
Como outro grande mestre do cinema nipónico, Yasujiro Ozu, no cinema de Takahata a origem do drama está na célula familiar. Uso aliás o termo “origem” no sentido que lhe dá Giorgio Agamben em «O que é o contemporâneo?»: “[A] origem não está situada apenas num passado cronológico: ela é contemporânea ao devir histórico e não cessa de operar neste, como o embrião continua a agir nos tecidos do organismo maduro e a criança na vida psíquica do adulto”. Aproveito esta ideia de Agamben para falar na criança que continua a guiar a protagonista de Omohide poro poro (Memórias de Ontem, 1991), durante a pequena “fuga” que faz para o campo, a paisagem dos seus sonhos de infância. O filme entrecruza passado com presente até ao ponto em que um e outro se tornam “contemporâneos”. No começo é como se a Taeko pequena puxasse a mão da Taeko grande para lhe sussurrar pequenas histórias sobre os sabores, os aromas, as ansiedades, inseguranças, sonhos e fantasias daqueles tenros anos de vida.
A força de verdade destes desenhos faz-me cair na tentação de dizer que aqui tudo parece obedecer a um trabalho cenográfico preciso e eivado de uma magnífica riqueza dramática
Escreveu Serge Daney, num dos seus apontamentos publicados em L’exercice a été profitable: “o cinema, é infância”. Em sintonia com esta ideia, Louis Skorecki, o compagnon de route de Daney em muitas viagens pelo mundo e pelo espírito, dizia em entrevista: “(…) para mim fundamentalmente o cinema é apenas uma coisa de miúdo que sonha”. Em Memórias de Ontem há tudo isto, desde logo, a criança que co-constitui a jovem adulta e o cinema que uma faz – ia escrever “com”, mas não, na realidade é – “na” outra. Não há nada de psicanalítico aqui. Takahata não procura “traumas”, ele pega numa infância igual às outras, quase absolutamente “não-extraordinária”. A vez em que aparece o período, a primeira paixoneta ou mesmo o primeiro ananás que entrou lá em casa e que tão acidamente desiludiu os palatos… Estes podiam ser os títulos de algumas destas memórias que se projectam na vida interior da Taeko grande, que, agora como ontem, não cessa de buscar um sentido para a sua existência. É muito belo o desenlace, em que esse gesto que referi atrás – de “dar as mãos” – se torna tão metafórico quanto literal. Este filme adulto sobre a infância flui serenamente sem procurar efeitos no espectador senão o despertar daquilo que todo o bom espectador é: a tal “criança que sonha” sugerida por Skorecki de mãos dadas com Daney.
Esta ligação aos afectos e às memórias estava presente e estará presente na obra de Takahata. O seu filme mais celebrado – simultaneamente o mais duro e inesquecível – afirmava uma realidade histórica traumática – a bomba atómica – sobre a relação entre um irmão e uma irmã pequenos. Falo, claro, de Hotaru no haka (O Túmulo dos Pirilampos, 1988). Memórias de Ontem respira outros ares, mais leves e pacificados, mas encontro nele o mesmo amor às personagens e o mesmo olhar adulto – isto é, que não infantiliza – sobre a infância. Hôhokekyo tonari no Yamada-kun (A Família Yamada, 1999) mantém o registo, mas eleva a arte do gesto e do desenho, revelando, em todo o seu esplendor, o que fará também o encantamento de O Conto da Princesa Kaguya: a dimensão artesanal do cinema animado.
Ao jeito de uma sucessão de quadros familiares pintados com uma pequena colecção de lápis de cor, a história de uma, outrossim, “não-extraordinária” família japonesa vai-se desenrolando à nossa frente. Pequenas peripécias, algumas delas reduzidas a rituais de todos os dias que não contam nada sem ser o facto de não contarem nada, vão-se sucedendo sem que haja uma ligação causal entre si. A minha preferida mostra como pai e mãe de família estão prontos a perderem a dignidade na disputa pelo que passa na única televisão da casa. Ela quer ver “a novela”, mas ele recusa mudar o canal que transmite o jogo de baseball. Ela furta-lhe o comando e dispara na direcção do televisor, mas o canal não muda porque o pai de família bloqueia a ordem do comando com o jornal do dia. A partir daqui Takahata põe as suas personagens a exercitarem, até ao delírio, este duelo matrimonial em torno de preferências televisivas. Um duelo que, na realidade, devém bailado ridículo – um deleite para este telespectador.
É impressionante como a vida de uma família desenhada ganha relevo de quadro em quadro, até se fazer esquecer o facto de esta não existir para lá do traço de Takahata. A força de verdade destes desenhos faz-me cair na tentação de dizer que aqui tudo parece obedecer a um trabalho cenográfico preciso e, pese embora o lado “sumido” do traço, eivado de uma magnífica riqueza dramática (o décor, aquela gente e a sua linguagem corporal). Cada quadro é, portanto, uma cena no sentido mais clássico do termo – de novo, lembro-me de Ozu. Quando no fim a família Yamada se despede com um “Que Sera, Sera” cantado em coro, é inevitável sentirmo-nos nostálgicos. Dificilmente esqueceremos a experiência de termos habitado aquela casa e de termos sido recebidos como “parte da família” – querem evento mais “natalício” do que este? A família Yamada, na realidade, só existe no papel, mas também existe, tanto e tanto, na nossa imaginação. O grande cinema de animação tem, por vezes, este efeito: é particularmente hospitaleiro com os nossos sentimentos mais autênticos. A magia também passa por, pelo traço delirante, descobrirmos recantos de nós mesmos.
Heisei tanuki gassen ponpoko (PomPoko: A Grande Batalha dos Guaxinins, 1994) é uma versão modernizada das histórias lendárias protagonizadas pelos tanuki, cães-guaxinim alegres e matreiros que são capazes de se metamorfosear em quase tudo. No filme de Takahata, os tanuki usam os seus poderes para demoverem os humanos de terraplanarem a floresta onde vivem. Aqui a animação de Takahata dá lugar a um gesto já mais habilmente explorado por Hayao Miyazaki, que traduz o gosto por uma espécie de “parada de monstros” onde não há limites para a criatividade. Os desenhos não têm “a identidade” dos seus outros filmes, jogando-se aqui no terreno seguro da animação mais infantil ou mesmo infantilizada, leia-se, eis uma boa porta de entrada em Takahata para a criançada.
Este ciclo da RTP2 mostra como o grande cinema de animação casa muito bem com a missão do canal: mostrar coisas ao espectador que ele não sabe que quer ver. Neste caso, Takahata oferece uma imprevisível combinação de fantasia e realidade, loucura sem freios e doce normalidade, que é rara mesmo no cinema supostamente adulto, com gente de carne e osso lá dentro. É o pequeno grande milagre do desenho como gesto.