Fui a Vila do Conde com uma missão: dar uma aula no âmbito do excelente workshop de crítica de cinema, organizado por Daniel Ribas e Paulo Cunha com o fito de formar futuros exegetas da imagem em movimento, tendo a rica programação deste Curtas como laboratório crítico. Participei ainda, em nome do À pala de Walsh, num debate sobre a relação entre crítica, festivais e o formato da curta-metragem. Uma conversa que contou com as participações de Neil Young (crítico na Sight & Sound), Michael Patison (crítico em várias publicações, tais como Sight & Sound e Film Comment), Jorge Mourinha (crítico do Público) e na moderação Victor Paz (crítico da Cuarta Parede). Esta era a minha missão primeira. Mas um cinéfilo não pode passar ao lado de um faustoso banquete de cinema; de alguma da melhor produção nacional e internacional do cinema em termos de curta-metragem – há mesmo um cinema de curta-metragem ou, muito simplesmente, há “o cinema”? Na minha opinião, muito simplesmente, há cinema, curto, longo, gordo, magro, alto e baixo. Foi à procura dele que dei longos – e, nalguns casos, muito prazerosos – mergulhos na programação do festival, numa edição em que o cinema português me parece ter superado a concorrência.
Proponho, então, ao longo deste breve texto passar os olhos por alguns dos filmes que mais me assaltaram o espírito: a uns tantos rendi-me incondicionalmente, outros causaram espanto ou puseram-me a pensar e ainda outros provocaram-me uma qualquer forma de resistência. Sobre esta resistência, quero desde já alertar que a violência da minha opinião apenas procura traduzir o desejo de ser fiel no modo de dizer àquilo que ataco nos filmes em questão, que são apenas mais dois sintomas de um estado geral de coisas que afecta o recente cinema de autor europeu ou europeizado.
Rendição absoluta. Lá vai ela, desenhando uma geometria perfeita, de um ponto para outro. Depois fixa-se lá à frente. Há uma força que a puxa para ali. E não estou a falar apenas de Newton. Ela vai para ali e ela parte dali como que determinada pela História ou – vamos dizer e ser saloios – pela “alma de uma nação”. E lá vai ela. Bate algumas vezes no solo. E entra. Golo de Éder. Uma estátua a ele – ao Homem e àquela Bola. Lloris é bom guarda-redes, mas não podia fazer nada quanto a isto: estava escrito nas estrelas que Portugal ia ser campeão europeu. E ficou escrito no meu diário deste Curtas Vila do Conde – quem diria que ia ser naquela simpática cidade nortenha, de bom peixe e boa gente, que ia assistir a este momento – que não podia haver maior obra-prima a chegar-me aos olhos e ao espírito. Obrigado, Éder. Desculpa, Éder. Amo-te, Éder. Viva o cinema, Éder.
Espanto. Há uma nuvem tóxica que se mistura com os corpos de soldados enviados para o campo de batalha como “carne para canhão”. Tudo é fluído, um rio incessante, um magma tenebroso e, dele, eleva-se uma fábrica sinistra que vai produzindo os corpos dos soldados mascarados para a batalha pela Morte. E o filme intoxica-nos tanto quanto nos inquieta. A animação nunca foi tão pouco animadora. A perturbação é um bailado de formas condenado à partida. Antes de o ser já o era. O soldado está morto? O soldado é Morte. Vê, mexe-se, olha de frente o Horror mais inominável, um Horror sem corpo, porquanto ou é gás ou é lama. Chatear-me-ia Morrer Tão Joveeeeem… (2016) de Filipe Abranches é um filme e é uma experiência.
Mais uma nota de espanto: Ascensão (2016) de Pedro Peralta. Estamos algures nesse território onde o cinema toca o sublime. Algures entre António Reis e Tarkovsky, este é um filme de longos e absorventes quadros, em que se põem em cena gestos de revelação: um corpo saído de um poço, um vivo saído de um morto, um vivo-morto que anda, depois de afagado por esta mulher que lembra a Virgem. Há neblina entre a vegetação, corpos quase imóveis e gestos perto de invisíveis que reacendem a vida. É um milagre situado no estado mais sublime da matéria. A paciência ritual deste filme é o seu grande mérito, até porque a experiência ascética só dura 18 minutos quando parece sugerir em nós uma espantosa eternidade além-vida.
A solidez de Peralta faz-se na invocação da dimensão sublime da atmosfera fílmica – dentro daquilo que se poderia denominar de forma devocional do cinema. Mas há um exemplar magnífico de “filme narrativo” nesta edição do Curtas Vila do Conde. Simão Cayatte, que havia realizado uma das melhores curtas-metragens do ano passado, Miami (2015) – sobre a qual escrevi aqui -, traz um drama de época que desperta, como poucos filmes da história do cinema português, os fantasmas do Estado Novo. Menina (2016) não fala numa “ascensão”, mas, bem pelo contrário, numa “descensão”, degrau a degrau, à “vida dupla” de uma sociedade que se alimenta de muito insidiosas aparências. Não vou estragar o que a história do filme vai habilmente desvelando da vida de uma típica “fada do lar” do Estado Novo. Digo apenas que este é um filme implacavelmente – e impecavelmente – construído.
Das ideias. Um filme, como sabemos, também é discurso. Dis-curso significa “ir para todo o lado”, ao mesmo tempo. No caso de Zootrópia (2016) encontramos um discurso que gira sobre si mesmo, transformando o brinquedo pré-cinematográfico – o zootropo – num conceito de metacinema. Não é só a câmara que gira: a história que se desenrola naquele apartamento acompanha-a no movimento circular e, portanto, “zootropica-se”. O realizador Tiago Rosa-Rosso não se fica por aqui, até porque a fala das personagens também discursa: aos círculos, para todo o lado, para a frente, para trás, para os lados… É um jogo de linguagem que tem no universo semântico de cada palavra o seu carrossel performático. “A chuva lava. A lava queima”. Apetece citar o João César Monteiro: “e assim sucessivamente”. Filme engenhoso e desafiante que vai beber a alguma da boa tradição do cinema estrutural avant-garde, de Takashi Ito ou Michael Snow – servia bem de “interlúdio” a uma sessão com Spacy (1981) e La région centrale (1971).
De uma ideia interessante também nasceu Penúmbria (2016), viagem a uma localidade que enfrenta a ameaça da sua total desertificação. Se não há pessoas, sobram as estruturas em betão e ferro. O dispositivo é simples – texto sobre imagem – mas há um tema – e um temor – maior, e complexo, que atravessa toda esta distopia portuguesa: o despovoamento do país. O filme poético é, afinal, um filme politicamente contundente.
Mais ideias? Elas existem, mas para implodir o cinema que pode haver nos filmes, em duas curtas que apanhei na Competição Internacional. Oh What a Wonderful Feeling (2016) é uma espécie de viagem lynchiana ao lado escuro – e absurdo – da vida. É um filme que inventa a sua própria linguagem à medida que avança e mergulha na sua escuridão. Estamos numa estação de serviço, identificamos um grupo de mulheres e homens que a elas recorrem para satisfazer os prazeres da carne. O ambiente é de pesadelo. Já disse que lembra Lynch, mas, mais ainda, fez-me recordar um filme de terror algo esquecido que se passava numa estrada perdida na floresta que não levava as personagens para lugar algum, isto é, “parava-as” na temporalidade pervertida do Inferno. Esse filme chama-se Dead End (Dead End – Terror Sem Fim, 2003), um título que também caberia a esta sui generis curta canadiana.
Mais dentro do modelo de uma paródia what the fuck está My Last Film (2015), filme de Zia Anger que procura dinamitar a quarta parede fílmica, colocando o espectador na posição de testemunha de uma série de assaltos aos lugares comuns do cinema norte-americano. O filme vira-se sobre si mesmo em tom sardónico, afirmando-se como uma espécie de proposta anarquista, quase punk, de anti-cinema. Não é muito mais sofisticado que um longo gag à la Scary Movie (Scary Movie – Um Susto de Filme, 2000), mas também é essa falta de pretensão de ser algo muito mais sério do que realmente é que acaba por nos ficar na retina.
O humor também é flagrante no mais recente filme de Gabriel Abrantes. Gozação e estética. Estética da gozação. Em A Brief History of Princess X (2016), o narrador – o próprio Abrantes – conta como a famosa escultura da autoria de Constantin Brancusi que procurava representar a imagem de Marie Bonaparte foi objecto de incompreensão no seu tempo, devido à inusitada semelhança com um falo. O narrador não contém o riso enquanto desenrola a trama desta história. A arte é séria e é silly. Não podia haver imagem mais representativa de todo o gestus do cinema de Abrantes: por um lado, a afirmação crítica, séria, elevada, até pomposa, de uma qualquer expressão artística mais ou menos reconhecida, mais ou menos canónica; por outro lado, a contra-afirmação da sua presença vã, impotente, até ridícula num museu, que nos é dada através dos olhos de uma criança que – como que surpreendendo um “rei que vai nu” – vêem um falo onde o artista quis fazer ver a representação de um corpo feminino.
Resistência. A quê propriamente? Não à qualidade, dramatúrgica ou estética, dos filmes em questão. Mas resistência a esta figura do “filme de festival”. O que é ela tipicamente? Bem, simplificando, diria que é um drama urbano ou suburbano, com gente de classe média lá dentro, que se alimenta silenciosamente de uma qualquer tensão (sexual) sugerida, entenda-se, uma tensão que nunca deixará de ser isso: pura sugestão. Estes dramas obstipados e impotentes, muito “sensivelmente” iluminados e glorificando interpretações minimais, reduzidas a gestos e movimentos, normalmente não têm nem começo nem fim, desenrolando-se, portanto, numa espécie de tempo intermédio onde o drama se põe em modo de suspensão, “à espera de Godot”. O que é isto? Pode ser muita coisa, mas é, acima de tudo, aos meus olhos, Lucrecia Martel. Quanto a mim, ela é o “padrão-ouro” desta forma de linguagem que, hoje, apropriada e reapropriada, tanto se mete pelos filmes adentro. E como “martelam” todos estes “filmes de festival”!
Quem são os dois mais perfeitos exemplares deste cinema “martelado”? Aos meus olhos, são Setembro (2016) e Pedro (2016), dois muito bem feitos dramas obstipados que convertem os lugares comuns de uma modernidade pós-antonioniana numa fórmula de “pronto-a-vestir cinematográfico” que cai que nem uma luva num catálogo de festival. Nos dois filmes temos uma história insinuante sobre mãe e filho. Nos dois filmes há mais silêncio que palavra. Há uma tensão que nunca se resolve. Não há propriamente rupturas, mas simples ausência de comunicação. Sobram corpos e paisagens. E deambulações, muito bem enquadradas – tudo “muito bem”, como aquele aluno que é o melhor da turma a escrever ditados – que debitam Antonioni. Pedro é uma colagem tão grande a Alain Guiraudie e ao seu hit de festivais L’inconnu du lac (O Desconhecido do Lago, 2013) que passaria com distinção num concurso de imitações – já o anterior filme desta mesma dupla de realizadores, André Santos e Marco Leão, Má Raça (2013), era uma emulação chapada de La mujer sin cabeza (A Mulher sem Cabeça, 2008). Apetece pegar nestes filmes, sacudi-los, dar-lhes umas estaladas enquanto se pergunta por um olhar próprio, qualquer coisa que se agarre para lá do gesto de bem (re)fazer. Em matéria de “bom comportamento”, estes filmes levam o prémio máximo. Mas, hélas, o cinema nem sempre casa bem com bom comportamentos ou com bem comportados.
A Pedro e Setembro falta rasgo, um olhar que agite estas águas mornas, esta sensibilidade conformada, segura, limpa, hip. Estes sussurros todos, todos muito “bem”, gritam muita coisa, por exemplo, que a lassidão das suas personagens é só uma metáfora para a auto-complacência dos seus realizadores que, feitos de cristal e agarrados com unhas e dentes ao “trending autoral”, não foram feitos para abanões. O talento destes realizadores – que existe, não o nego! – merecia outra aplicação, outras – para usar um termo que lhes será caro – “aventuras”. Daquelas que nos revelam a singularidade de um olhar ou, dito de outra maneira, um olhar com corpo. Corpo próprio.