O texto seguinte foi produzido por Pedro Henrique e incide sobre a primeira sessão da Carta Branca de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, no Curtas Vila do Conde, que incluiu os seguintes filmes: The Electric House (1922) de Buster Keaton e Edward F. Cline, One A.M. (1916) de Charles Chaplin, L’École des Facteurs (1947) de Jacques Tati, Film (1966) de Alan Schneider e Samuel Beckett. Pedro Henrique foi um dos participantes do Workshop Crítica de Cinema realizado durante o Curtas Vila do Conde – Festival Internacional de Cinema. Este Workshop foi formado por um conjunto de masterclasses e debates com convidados internacionais e pela produção de textos críticos sobre os filmes exibidos durante o festival, que foram publicados, periodicamente, na página do Público, no blogue do Curtas Vila do Conde, na revista A Cuarta Parede e no site À Pala de Wlash.

“I know what is going on and cut it out!”. Esta é a conversa que Woody Allen, num show de stand-up dos anos sessenta, teve com os seus eletrodomésticos. Todos nós sabemos que a nossa torradeira conspira ativamente contra nós todas as manhãs, para nos proporcionar o pão mais queimado possível, mas comestível. Nesse momento, não há comédia, é só um início de mau dia. A relação animista que temos com os nossos pertences é cada vez mais presente, desde logo com o telemóvel que dorme connosco na mesa de cabeceira ou aquela esquina da cama que nos fere as canelas todas as manhãs. A tragédia de um homem é a Direção Artística de um outro – o ‘Art Director’.
Na conversa de Miguel Dias e Daniel Ribas com João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata (JRGM) incluída no catálogo do festival, JRGM refere: “Gosto como os objetos são utilizados nestas comédias, da questão da modernidade e como as pessoas se adaptam ou não ao moderno e à novidade.” Ora é precisamente isso que esta sessão nos propõe de formas diferentes nos filmes: o “embate” com esses objetos.
Noutro ponto da mesma entrevista, JRGM questiona-se “se as pessoas ainda se riem com estes filmes”. Respondo: riem-se e em barrigadas. O burlesco impresso nestes filmes e a inovação presente na primeira curta da sessão é hilariante. Este humor está, fundamentalmente, não na premissa, para a qual sabemos que vai correr mal, mas no engenho da personagem de Keaton. Este apetrechou uma habitação de uma parafernália modernista de equipamentos elétricos, os quais se vão revoltar contra ele. Desde as escadas rolantes, um comboio que transporta os pratos da cozinha para a sala de jantar, uma máquina de lavar loiça que faz tudo menos colocar os pratos na prateleira, até uma sala de jogos onde as bolas de bilhar são arrumadas eletricamente assim que são embolsadas, entre muitas outras. Ninguém gosta de explicar piadas, mas a razão pela qual é hilariante relaciona-se com a forma como sabemos que vai correr mal. Não o ‘como?’, mas a surpresa do ‘como?’, repetida de uma miríade de possibilidades.
No filme de Chaplin, este é um Sísifo moderno, no qual a força dos Deuses é substituída pela embriaguez e o rochedo é a sua vontade de chegar à sua cama. Para o fazer, vai deparar-se com uma panóplia interminável de objetos decorativos na casa (e, anteriormente, no táxi) que lhe vão dificultar ao máximo a tarefa. Nesse momento, imaginamos que cada um deles será alvo de, pelo menos, um gag, assim um grande número de gargalhadas são certas. Mais ainda, sabemos que este fundador da United Artists trabalhava no local. Isto é, sem argumento, com centenas de takes, ensaiando a cena, acrescentando e eliminando, no sentido teatral, até ao momento cristalino da perfeição. Imaginar esse processo naquele táxi, entrada de casa, sala e no quarto é de uma mente genialmente brilhante. JPR fala sobre “sobre o pensamento da totalidade da imagem”, sobre o campo e o fora do campo. Tenho dúvidas sobre a possível perceção da audiência no início do século XX, mas hoje com o conhecimento privilegiado que retemos de Chaplin, sabemos que cada um daqueles objetos será usado para o humor, estimulando a nossa curiosidade e aguçar a comédia.
No filme de Tati poderia parecer que já não estamos a abordar a “Art Direction”, mas apenas para o ouvido destreinado. Os sons que Tati coloca para atingir o burlesco, a par da sua postura física e dos objetos, fazem parte integrante dessa arte de escrever o espaço para que se associe ao argumento e complemente a visualidade do gag. Não estamos no espaço da casa, mas no espaço da vila e da ruralidade de um carteiro que tem de acompanhar a rapidez, literal, do progresso. Ao contrário de Chaplin, os gags de Tati não surgem sempre pelo erro, pela desgraça, pelo ato falhado. Surgem, pelo contrário, na sorte inusitada, na forma ignorante como as ações se sucedem sem a sua intervenção. É um argumento que não procura a tragédia, mas corre, como Tati atrás da sua bicicleta, para as ações que confluem e para as linhas narrativas que se fundem para que o objetivo seja logrado. Essa fortuna do acaso faz-nos esboçar a gargalhada.
Finalmente, o filme de Schneider e Beckett lida com o espaço não de uma forma cómica, mas como parte da fobia da personagem “O” em não querer ser filmado, o que significa ser percebido em contraponto àquele que quer perceber. A personagem “E”, o POV da câmara, segue um homem de costas, que nunca nos quer mostrar a cara nem nunca quer que nenhuma entidade vá de encontro a ele. Podem ser um gato e um cão, que oferecem resistência por serem seres vivos, um papagaio numa gaiola ou um peixinho de aquário. Pode ser um espelho, ou algo que se assemelhe a órbitas onde olhos poderiam estar. Tudo tem de ser obstruído. O idoso ator Buster Keaton, nesta altura longe do auge da primeira curta desta sessão e, na infeliz tradição de muitos atores da sua geração, esquecido e pouco apreciado, apenas se permite ver as fotos da sua juventude, para as rasgar. Elimina-as como quem se destrói a si próprio em diferentes etapas da sua vida. Há uma obsessão pela verificação do punho, verificando o ritmo cardíaco, até que se deixe de sentir e aí poder ser contemplado o rosto.
Na citada conversa no catálogo, fala-se ainda de cinema de atrações, o qual não era mais que uma primazia da sensação sobre a narrativa, para o espetador que ainda tinha dificuldade em seguir um enredo, ou que simplesmente era analfabeto e não entendia os intertítulos. Estes filmes são, na sua essência, estímulos, e um bombardeamento de sensações visuais, cinéticas, sonoras que devem muito ao ‘Art Director’. Este consegue essa proeza através da composição de todo um quadro que possa ser lido, não pelas palavras, mas pela experiência da familiaridade que possuímos com esses objetos ou com a estranheza da tecnologia e da novidade. Esse trabalho continua a ser mais importante que nunca, nos dias de hoje, à medida que a imagem vai ganhando relevância e qualidade e que o nosso olhar se vai treinando na atenção aos detalhes e à sua relação com a câmara.
Pedro Henrique