Se, na verdade, tamanha parte da criação é crítica, não será grande
parte do que chamamos «obras da crítica» antes obras de «criação»?
T.S. Elliot em Ensaios de Doutrina Crítica
Sérgio Dias Branco é um dos mais respeitados investigadores do cinema no panorama nacional. O seu blogue pessoal dá conta de um estimulante trajecto, decorrido quase sempre “entre imagens”, as do cinema, mas também, em seu redor, das séries de televisão e dos videoclipes. Os filmes são pretextos para a inscrição de um pensamento singular, que cruza estética, política e religião. O cinema é entendido como um campo aberto, em permanente auto-questionamento. Mais pontos de interrogação e menos pontos finais. Afinal, o que é o cinema?
Cristão comunista, crítico admirador de André Bazin e Stanley Cavell, programador e professor universitário neste momento radicado em Coimbra, Sérgio Dias Branco escreveu um livro que reúne uma variedade de textos representativa de uma fase da sua vida. Por Dentro das Imagens: Obras de Cinema, Ideias do Cinema, obra editada recentemente pela Documenta, é o pretexto ideal para uma conversa. O cenário encontrado também foi inspirador: a livraria Linha de Sombra, na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema. Será aí que acontecerá a apresentação do livro, no próximo dia 30, às 19h00, que terá como mestre de cerimónias o walshiano Tiago Baptista.
Olho para o teu percurso académico e encontro um olhar particularmente sensível à natureza impura da Sétima Arte. A tua tese de doutoramento versa sobre a estética das séries de televisão e a tua tese de mestrado sobre “Diversidade nos Vídeos Musicais”. Já para não falar que és licenciado em Arquitectura. No teu livro há um texto sobre a fotografia de Cindy Sherman que aparece posta em relação com o seu filme Office Killer (1997) e privilegias no teu texto sobre Antonioni a sua faceta de pintor. Perguntava-te se faz sentido dizer que, paradoxalmente ou não, é na sua impureza que o cinema mais se aproxima de uma ideia de essência.
Tenho alguma dificuldade, logo à partida, com essa ideia de essência. E eu desenvolvi isso nalguns textos que não estão neste livro. São coisas mais recentes e mais académicas. Mas Bazin tem um texto sobre isso. Essa ideia de impureza interessa-me muito. Interessam-me estas zonas de fronteira, em que nós temos de pensar, pensar de novo. Sim, concordo com o modo como traças o meu percurso. Para mim, as coisas estão todas relacionadas e eu tenho a noção de que o interesse principal é o cinema, mas todas essas formas artísticas permitem-nos pensar os seus limites, sem com isto me obrigarem a mim próprio a pensar na suposta essência do cinema. Continuo-me a interessar mais no título do livro de Bazin: O que é o cinema? O ponto de interrogação no fim. Não porque eu ache que essa pergunta não tem resposta, mas porque acho que essa pergunta tem muitas respostas.
Os cruzamentos são vários no teu trabalho enquanto investigador e professor. Uma das tuas paixões é a política. A tua reflexão política mistura-se com a actividade crítica, nomeadamente nas tuas colaborações enquanto crítico de cinema para o Jornal Avante!. Perguntava-te: o que é que a militância política pode oferecer à análise fílmica? É outra fronteira que gostas de explorar?
Também é. Por vezes estamos até a falar de uma espécie de tabu… Parece-me que há o receio de quando se fala da relação entre cinema e política se cair numa certa instrumentalização da arte e da cultura. A colaboração com o Avante!, que é mensal, surgiu por causa de um texto que me pediram, que não era necessariamente sobre cinema. Era um texto sobre Spotlight (O Caso Spotlight, 2015). Percebe-se aí que tenho interesse no filme, vários aspectos de encenação e ritmo, mas a questão ali era a da religião e foi por isso que me pediram para escrever o texto. Mas este acaba por ter essas duas facetas. Já falei com pessoas que o leram da perspectiva do cinema e outras pessoas que leram por causa da questão da religião. Desde aí a colaboração manteve-se e é muito livre. Eu é que escolho os filmes sobre os quais falo. Sendo o Avante! o jornal que é tento ter uma perspectiva politizada.
É uma perspectiva libertadora para ti?
É uma perspectiva dentro da qual eu me obrigo a mim mesmo a pensar o filme politicamente, que é uma coisa que eu não faço em relação a todos os filmes. Não sei se leste o texto que escrevi sobre o filme de Michael Moore. Há uma questão que se coloca muitas vezes quando se põe em relação cinema e política: “se o cineasta eventualmente expressar um ponto de vista próximo do meu, então o filme tem valor”. Eu tenho muitos problemas com os filmes de Michael Moore, mesmo que possa ter algumas afinidades políticas.
Num texto de Serge Daney, «Fonction critique», da sua fase mais politizada, é feita uma distinção interessante entre o que o filme diz e o que se diz no filme do ponto de vista político. Pode haver de facto esse espelhamento com a posição do espectador naquilo que se diz no filme, mas o que o filme diz pode atraiçoar esse espelhamento.
Exactamente. Eu acho que às vezes há essa contradição. Contradição no sentido negativo, porque a contradição pode ser fecunda. No caso de Michael Moore, acho que esse contradição é, por vezes, gritante. Mas, como digo, escolho filmes para pensar sob esse ponto de vista. Não sei até que ponto este livro e estes textos já espelham isto, mas é algo que tem acontecido ao longo do meu percurso: uma maior consciencialização política e, ao mesmo tempo, uma necessidade de intervenção. Essa necessidade pode passar por uma crítica política do cinema. Há grandes críticos que fizeram isso, como James Agee e outros. Eu tento fazer isso de uma maneira rigorosa. Tento nos textos que escrevo ser muito concreto no que estou a dizer, dando exemplos. Portanto, tento ser muito analítico. A minha questão nunca é propriamente encontrar o ponto de vista político do filme e dizer se concordo ou não com ele.
Falavas do Spotlight e isso leva-me à tua relação com a religião.
Que é anterior à política. Que motivou a política. Esse interesse pela teologia, pela ligação entre a religião e o cinema, está no trabalho académico que desenvolvo. Assumo aquilo que sou: antes de ser outra coisa qualquer, sou um cristão. O que é ser cristão? O que é ser cristão no mundo e perante um filme? Isso são questões que me vão levar a escrever mais. Mas talvez tenha também a ver com uma certa forma de olhar a arte. Isso é o que ainda estou a trabalhar. Falava há pouco da instrumentalização da arte e da cultura, às vezes aquilo que se opõe muito é olhar para a arte como instrumento ou então como um ornamento, alguma coisa que se basta a si própria e que não tem ligações com nada. Sempre tive muita dificuldade de olhar para a arte desta forma, porque a arte não está acima da realidade e do mundo, não aparece num vácuo, mas num tecido social e histórico. Interessa-me pensar isso, como os marxistas dizem – ou, enfim, os marxistas que me interessam… -, como sendo uma autonomia relativa. Há de facto essa autonomia: o espaço próprio da arte, do cinema, as suas formas.
Posso dar um exemplo que acho que te vai fazer sorrir. Há um filme recente que eu sei que admiras muito, The Conjuring 2 (The Conjuring 2 – A Evocação, 2016). Também gosto muito, mas não consigo deixar de olhar para o filme sem ver a dimensão política. Além de todas as coisas que dizes e que são verdade, nomeadamente as ideias de encenação, também é um filme sobre uma classe operária aterrorizada. Acho que isso é explícito no filme. O contexto é sublinhado com aquela primeira montagem de entrada em Londres, com a música dos The Clash e o aparecimento da Thatcher na televisão. Interessa-me cruzar estas duas dimensões. Se escrevesse sobre o filme, ao mesmo tempo que tentaria sublinhar os aspectos que tu sublinhas e muito bem, falaria dessa dimensão.
Nos anos 60 e 70, produziam-se textos furiosos numa revista como a Positif a denunciar o anti-esquerdismo ou o reaccionarismo camuflado de André Bazin, inclusivamente ataques ao seu mais ou menos velado catolicismo. Hoje já não se produzem textos assim. As lutas são outras. Na realidade, a crítica tornou-se progressivamente menos polemista e cada vez mais amorfa e conformista. Há muita opinião, mas pouco debate. Concordas?
Concordo com isso. Há um texto no meu livro, «O Silêncio dos Olhares», que fala sobre isso. Quando o escrevi era um texto violento contra esse estado de coisas. Não há muito debate, porque, no fundo, não há muita crítica de cinema, no verdadeiro sentido da palavra. Vivemos num contexto em que os espectadores de cinema são considerados consumidores culturais. O consumidor cultural espera ser guiado. E esse seria o papel dos críticos. As próprias distribuidoras tratam, de alguma forma, os críticos dessa maneira. O que o crítico tem a fazer é indicar ao consumidor se deve ou não ver o filme, eventualmente facilitando-lhe a vida dando estrelinhas. Sempre rejeitei essa perspectiva. Quando escrevia na Premiere, tinha de dar estrelinhas. O último texto que escrevi para a revista, sobre Melancholia (Melancolia, 2011), já apareceu sem estrelas. Até surgiu numa página que dizia “O crítico sem estrelas”. Sempre tive dificuldade com isto.
Quando as estrelas apareceram nos Cahiers du cinéma, aquilo que sobressaía das tabelas era a polémica. O que se expressava graficamente era a diferença de pontos de vista. Coisa que hoje não acontece: o que se pretende, nomeadamente com sites como Metacritic ou RottenTomatoes, é o consenso. Nesse sentido, não pode haver debate. Ele nem é fomentado, tendo em conta este sistema. Isto tem prejudicado aquilo que é verdadeiramente o papel da crítica. Do meu ponto de vista, a crítica é apreciação do valor de uma obra de arte, neste caso, de um filme. Essa apreciação não é necessariamente uma apreciação que tenha uma dimensão quantitativa. É uma apreciação sobretudo qualitativa. Penso que vocês fazem muito bem isso, no À pala de Walsh. Eu leccionava uma disciplina em Coimbra de crítica de cinema, que entretanto foi fundida com outra, e um dos exemplos que dava era o vosso site, pela simples razão de que aquilo que vocês fazem é crítica de cinema, o que é difícil de encontrar em Portugal.
Não se terá perdido apenas a dimensão polemista. Os críticos diziam frases que se tornavam pequenos mandamentos do pensamento fílmico, tal como “o travelling é uma questão de moral”. Encontro nos teus textos uma certa visão nostálgica em relação a estes tempos gloriosos da cinefilia em que, e cito-te, “Escutar e dialogar com os autores era debater ideias de cinema”. Escreves depois: “é vital tornar o cinema uma coisa pensável“. Foi também por isso que lançaste este livro: para restaurar o valor das ideias na escrita sobre cinema?
Esse texto pertence à segunda parte do livro, precisamente sobre “Ideias do Cinema”. É um pouco diferente do que estávamos a falar. O que faz falta à crítica é uma certa atenção à escrita. Foi algo que eu aprendi com algumas pessoas ao longo do meu percurso, nomeadamente em Inglaterra, com Andrew Klevan, que agora é professor em Oxford – na altura foi meu professor de mestrado -, e com algumas pessoas que estão agora no grupo de análise fílmica em Oxford, que têm uma preocupação muito grande com a escrita: “qual a palavra que usamos? Será que esta palavra é adequada?” Aqui joga-se muito a importância da crítica.
Como dizia Roland Barthes, “é preciso desejar a linguagem”.
É isso. Essa questão das ideias e de tornar o cinema uma coisa pensável vem no seguimento disso, porque os grandes críticos de cinema são tendencialmente teóricos do cinema. Isso é muito evidente em Bazin. Ele começa um texto crítico sobre Les vacances de Moniseur Hulot (As Férias do Sr. Hulot, 1953) e, às tantas, está a falar sobre o tempo ou a duração no cinema. Os grandes críticos de cinema – e Bazin é certamente um deles, na minha perspectiva – são escritores que aproveitam a oportunidade de terem que escrever sobre determinado filme para reflectirem sobre o cinema. Aliás, esse texto que citaste também é sobre isso, sobre aquilo que é o ofício do crítico e toda essa geração dos Cahiers que passou para a realização. Não me parece que seja muito produtiva esta separação, que muitas vezes encontramos em Portugal, entre os críticos e os realizadores que é feita como se estivessem em campos distintos.
Há ainda os realizadores que transmitem a ideia de que o pensamento crítico é função exclusiva da crítica, não sendo, portanto, função da criação. Isto era algo que T.S. Elliot já rebatia [vide «A Função da Crítica», in Ensaios da Doutrina Crítica].
Se calhar a ideia mais comum é precisamente a de que os críticos são críticos porque não conseguem ser criadores. É um lugar-comum, que não corresponde à verdade. A mim perguntam-me muitas vezes se não quero fazer filmes. E até me podia apetecer, podia ter esse desejo de fazer cinema, mas não tenho. Parece-me que aquilo que eu tenho de fazer, e tem a ver com as minhas capacidades, o que gosto de fazer e aquilo que faz falta, é um respeito pelo trabalho dos artistas. Isso só se consegue escrevendo com atenção sobre os filmes, esperando com isso que também os cineastas dêem atenção aos críticos. Esse texto fala desse tempo, em que havia uma relação muito produtiva. Era muito fácil um realizador como Jean Renoir dizer “li o crítico tal que me ensinou a ver o meu filme”. Quantos cineastas portugueses diriam uma coisa dessas?
Vou continuar a ser como o “Velho do Restelo” em relação ao estado da crítica. Leio no teu livro: “há olhares que têm memória e os olhares atentos que vêem tem-na necessariamente”. Esta frase é rica e provoca-me algumas questões. Uma delas prende-se com esta necessidade de não esquecer que o cinema já não é uma arte inocente, que se possa dissociar de uma história, de um conjunto de tradições e anti-tradições. Como é que a memória pode servir a nossa relação com o presente?
Nós partimos todos com a mesma memória para os filmes. Mas aquilo que nós não conhecemos também pode ser decisivo. No fundo, estou a dizer nessa citação que é preciso uma certa humildade perante um filme, perante a rede que um filme lança. Também já me aconteceu ser confrontado com um filme e ter necessidade de saber mais e esse saber mais pode passar por alguma coisa exterior ao filme. Falávamos de religião. Quando estreou The Tree of Life (A Árvore da Vida, 2011), lembro-me de que quando saí da projecção para a imprensa estava a discutir isto: se calhar as pessoas nunca leram o Livro de Job, mas eu acho que um crítico que nunca tenha lido deveria dar uma vista de olhos para falar sobre esse filme. Por isso, falo dessa memória que não temos, mas que temos necessidade de adquirir.
Outra questão em relação à memória prende-se com algo que, devo dizer, acho extraordinariamente desafiante no teu livro: um pensamento sobre um passado que ainda não é bem passado, por ainda estarmos tão próximos dele. Falo dos anos 90. O teu livro parece programaticamente procurar uma perspectiva singular sobre uma certa estética milennial – e és muito cirúrgico no diagnóstico que fazes desses anos na análise a filmes tais como Panic Room (Sala de Pânico, 2002), Strange Days (Estranhos Prazeres, 1995) e, acima de tudo, New Rose Hotel (1998). Foi pensado assim?
Não foi pensado assim, porque isso é fruto da altura em que os textos foram escritos. Vale a pena explicar porque é que o livro sai como sai, com os textos que tem. É uma colectânea de textos que eu escrevi antes de concluir o mestrado em Estudos Fílmicos. Há um texto, que é o último, «Evocação do Medo», que eu escrevi quando estava já a fazer o mestrado, mas que não é propriamente um trabalho académico. Este livro arruma uma parte daquilo que foi a minha relação com o cinema através da escrita em determinado período da minha vida. Mas concordo com um certo interesse meu em escrever sobre esses filmes. O New Rose Hotel passámos num ciclo na Faculdade de Arquitectura com dez filmes. O filme de Ferrara era sobre “o hiperreal”. Eu atribuí a mim mesmo esse filme, que ainda hoje acho fascinante.
Queria voltar ao tema do pensamento e da reflexão na sociedade contemporânea. Nietzsche falava da potência de dizer “não”: da potência de aprender a “não reagir de imediato a um impulso, a fazer uso dos instintos que travam ou inibem as reacções”. Num livre recente, Sociedade do Cansaço, o filósofo germano-sul-coreano Byung-Chul Han fala da necessidade de uma nova pedagogia da visão que instaure uma vida contemplativa no seio desta sociedade, hiperactiva e excessivamente positivada (comandada por likes), em que vivemos. Qual é, para ti, o valor do “não” contemplativo no pensamento do cinema?
Identifico-me com essa ideia no sentido em que acho que há um problema no cinema que é: por alguma razão, que tem a ver com o modo como o cinema ainda é olhado, continua a considerar-se que os filmes são vistos uma vez e nós temos necessariamente alguma coisa a dizer sobre eles. Quem escreve sobre literatura ou pintura passa muito tempo com as obras. Há pouco falava de Andrew Klevan. Ele fala muito sobre isso. Ele passa meses com um filme sobre o qual vai escrever. Vê várias vezes. Por vezes isto falta muito no cinema, nós adiarmos a escrita, que corresponde, no fundo, a esse “não”: “não, não vou escrever já, não estou em condições”. Sentia muito isso quando estava a trabalhar na Premiere, em que tínhamos de escrever sobre os filmes que iam estrear. Havia essa pressão para escrever. Em muitos casos gostava de ver outra vez e ter mais tempo.
É aí que entra a academia, espaço que permite verticalizar mais o pensamento, dizer “não”?
Sim, permite. Os textos que tenho escrito agora têm essa dimensão; são sobre filmes que consigo ver mais que uma vez. Consigo ter com eles uma relação que não é imediata. Não sendo uma relação imediata, isto não quer dizer que não exista uma certa intuição da parte do espectador e do crítico. Muitas vezes, quando revisito o filme o que acontece é uma confirmação ou densificação do que estava a pensar inicialmente ou de uma certa reacção que tive. Nem sempre é claro para nós o olhar que um determinado filme constrói. Voltamos à questão do “travelling como questão de moral”. A discussão lançada pelo Rivette e pelo Serge Daney é muito importante. O cinema constrói um olhar e nós temos de questionar esse olhar. Para mim não basta que alguém diga: “não, o filme mostra isto, porque isto existe, a violência doméstica existe, outros tipos de violência existem”. Para mim, não é suficiente, tenho de perceber qual o olhar que o filme constrói com isso, o que nem sempre é fácil de entender.
Na entrevista do Carlos Natálio a Alain Bergala, a certa altura o teórico e pedagogo francês expõe desta maneira a sua teoria “De Pokémon a Dreyer”: “Cada vez que se começa a falar de pedagogia há sempre alguém que diz que é preciso começar pelo que as crianças gostam. Não é verdade. Pelo menos pela minha experiência, se começarmos por aí, aí ficamos. É sempre melhor surpreender, chocar, mostrar coisas difíceis. É isso que leva a uma inscrição”. Num mundo conformado com os nossos gostos, será a faculdade um espaço de resistência fundamental, resistente da fobia de pensar e formador de novas e mais exigentes leituras e olhares?
Eu penso que o que é essencial é o professor pensar sobre a sua condição. A nossa conversa vai nesse sentido: o crítico que pensa sobre o que faz. O professor deve fazer isso, particularmente na altura em que nós vivemos. Aquilo que nós descrevemos sobre o trabalho do crítico e se faz com o trabalho do crítico não é muito diferente daquilo que os professores enfrentam, nomeadamente uma certa ideia que triunfou – não diria que completamente, porque há bolsas de resistência – de que as instituições do ensino superior são concorrentes e que aquilo que temos de fazer é atrair os alunos e dar-lhes uma formação para entrarem no mercado de trabalho. Não me parece que seja esse o papel da universidade. Eu transmito alguns conhecimentos técnicos que os estudantes não têm. Em Coimbra temos estudantes que não são da área dos Estudos Artísticos, são estudantes de História da Arte, História, Antropologia ou Jornalismo.
O mais importante aqui é o que em pedagogia se chama pedagogia crítica, a ideia de que aquilo que nós trazemos para uma sala de aula tem uma relação directa com o mundo e dá ferramentas aos estudantes para terem uma intervenção no mundo. Em relação ao cinema, isso é muito importante. Se calhar voltamos ao início quando disse que a pergunta “O que é o cinema?” tem várias respostas. Interessa-me pouco dizer aos alunos como é que se faz ou deve fazer cinema. É evidente que nós podemos falar sobre várias práticas ou modos de fazer, muitos deles instituídos, repetidos, mas isso não quer dizer que o cinema tenha de ser feito sempre da mesma maneira. A arte – mais uma vez voltamos ao princípio – é aquela dimensão em que os seres humanos têm a capacidade de expandir a sua própria humanidade. Nesse sentido, como marxista, não posso deixar de ligar a arte a uma certa dimensão de emancipação. Costumo dizer que se há alguma coisa que eu posso abrir no encontro com o cinema é a possibilidade de os estudantes encontrarem alguma coisa que lhes interesse. Já me aconteceu isso com vários estudantes que, por exemplo, nunca tinham visto um filme expressionista e foi isso que lhes interessou. Outros podem estar interessados no realismo poético, noutra forma de fazer cinema; podem interessar-se por determinado autor. Eu continuo a acreditar que a universidade é esse espaço onde as pessoas encontram a sua própria liberdade, ao invés de ser um espaço de formatação.
Mas essa citação de Bergala ressoa em mim. Por exemplo, na disciplina de Introdução aos Estudos Fílmicos, logo na primeira aula, depois de mostrar vários exemplos, fecho com um filme pintado de Brakhage. E a questão é: será que isto é cinema? Isto é a primeira aula. Faço isso no sentido que Bergala diz: obriga-os a pensar se aquilo que eles chamam cinema é a única forma de fazer cinema. Alguns deles têm sensibilidade artística, por exemplo, já viram um quadro cubista – temos que aproveitar o conhecimento que têm, lá está, a memória que têm. Eu pergunto-lhes: “porque é que em relação a um filme se calhar vocês têm a tendência de discutir, por exemplo, a interpretação de um actor num filme como sendo mais ou menos natural?” Há um tipo de limites que nós impomos ao cinema e não impomos a outras artes. Interrogar tudo isto é um trabalho contínuo.