Em Outubro de 2016 nasceu um festival em Portugal que não quer ser “mais do mesmo”. Na realidade, Vítor Ribeiro, o pai deste projecto, principal dinamizador do Cineclube de Joane, preferiu evitar a palavra “festival”. O Close-up – Observatório de Cinema foi criado com o objectivo de mostrar cinema, envolvendo os filmes com as pessoas. Em Famalicão, onde estive durante o primeiro episódio deste Observatório para apresentar alguma sessões (terminou este fim-de-semana a primeira réplica desta mostra), Vítor Ribeiro conversou comigo sobre a sua abordagem à programação cinematográfica. Uma abordagem que promove um outro olhar e uma outra respiração em torno dos filmes. Através deles, organizam-se encontros com todo o tipo de pessoas ligadas, directa ou indirectamente, ao cinema: realizadores, programadores, professores, escritores… No Close-up – Abbas Kiarostami sentir-se-ia honrado – todos somos espectadores desse amor partilhado às imagens do cinema.
Como é que surgiu a ideia do Close-Up – Observatório de Cinema e como é que foi o desenvolvimento da ideia até à concretização?
Há já algum tempo que aqui em Famalicão se perspectiva essa possibilidade de fazer um festival de cinema. Houve uma coisa que se chamava festival de cinema, mas desapareceu. Há já algum tempo que éramos desafiados a fazer isso. O Cineclube de Joane é uma estrutura que está aqui desde 2002. O Close-up surgiu deste trabalho ininterrupto e da vontade política, porque estas coisas vivem de dinheiros públicos. Além dessa vontade do município, o Teatro Municipal mostrou interesse em acolher o Close-up. Isto é um âmbito muito alargado. A ideia do Carlos Natálio está muito bem pensada: Famalicão, cidade-cinema. Quisemos ter uma panóplia de oferta de cinema. Famalicão não tem exibição comercial, a Casa das Artes procura oferecer isso. Há pouco tempo tivemos o último do Clint Eastwood, agora vamos ter o último do Woody Allen e o Jack Reacher do Trom Cruise. Há uma tentativa de chegar ao público do cinema, mesmo que seja o cinema de grande público. É importante que as pessoas se continuem a ligar ao cinema, mesmo através desse cinema, por muito hollywoodesco que seja. Mesmo aí é possível escolher e programar.
O Close-up foi surgindo com naturalidade. Trabalhamos nesta ideia há cerca de um ano. Temos falado nestes dias sobre o que existe de festivais de cinema em Portugal. Gosto muito de cinema e costumo ir a festivais, mas irrita-me bastante a quantidade de festivais que existem sem qualquer tipo de identidade, principalmente o típico festival que só tem um concurso de curtas e em que se nota que quem está a organizar aquilo não tem minimamente uma ligação com o cinema. Faz uma selecção, arranja um júri… Hoje há festivais de cinema sem cinema. Nós partimos desta premissa de não querermos fazer isso. Depois, sempre gostei muito de programar em ciclos. No Cineclube de Joane tinha pouca possibilidade de fazer isso. Íamos programando ao longo de um semestre, seis filmes de um realizador. De vez em quando fazíamos três sessões na mesma semana. Junta-se ainda o facto de este ser um caso muito particular; de ser uma espécie de festival que está sediado no teatro o ano inteiro com uma programação a cada dois meses – é esse o nosso objectivo. Todas estas coisas foram-se encontrando. Até a própria designação. Nós nunca nos chamaríamos de festival. Gosto mais da ideia de mostra. Há várias mostras que ainda subsistem e que acho que são muito importantes (por exemplo, a Mostra de São Paulo), porque se libertam dessa ideia da competição que está demasiado presente, até nos festivais maiores. Mesmo quem noticia estes eventos parece que dá muito mais protagonismo à competição, quando, na realidade, há coisas muito mais interessantes.

Por isso é que nos surgiu esta ideia de Observatório. Vamos tentar pôr as pessoas a ver cinema. A observar cinema, com calma. Como dizia a personagem do filme que fizemos para o Kiarostami [referência a Cinco para Kiarostami, obra produzida pelo Observatório que homenageia o realizador iraniano e que abriu a mostra], “eu quero estar aqui sossegadinho a ver o filme e a falar sobre ele”. Isto tem uma perspectiva até um bocado quixotesca às vezes – sabemos das dificuldades por que passam as salas de cinema. Mas nós quisemos montar esta ideia de observatório, um sítio privilegiado onde se possa ver cinema.
Essa dimensão está muito bem inscrita no nome, nessa homenagem ao cinema e ao olhar do Kiarostami. Propões que se olhe mais perto e atentamente para as coisas do cinema. Não só para os filmes, mas para as ideias do cinema. Pelo que percebi do que disseste, o Close-up parte muito de uma ideia quase na negativa: “não há isto e, portanto, nós fazemos desta maneira”. Pedia-te para aprofundares um pouco este diagnóstico que fazes sobre o espaço dos festivais, esse que te levou a fazer uma coisa, se não contrária, pelo menos diferente.
Ainda há poucos dias – não vou referir os nomes dos festivais – falava sobre isso: existe uma verdadeira ditadura de imposição de números. Portanto, os festivais fazem as maiores peripécias, com festas, happenings, outro tipo de coisas, para garantirem números. Nós depois vamos ver as sessões que realmente interessam e estão desertas. E depois há várias dimensões. Há a dimensão do festivalinho de pequena cidade onde não há tão-pouco um olhar. Mas depois há festivais que sabemos quem está a programar e que tem alguma coisa a dizer, mas depois vê-se forçado a pôr muito mais lenha nessas outras coisas do que nas coisas que efectivamente gosta e sobre as quais desenvolve trabalho há muito tempo. Entrámos numa espiral, mas muitas vezes é fácil estar de fora e criticar. Nós aqui estamos muito libertos dessas ditaduras. Isto de começar um projecto tem essa coisa: a dificuldade de se implementar algo, mas também, ao mesmo tempo, há esta possibilidade de contrariar lógicas.
Quanto ao nome Close-up, provavelmente o filme que mostrei mais vezes foi o Close Up do Kiarostami. Eu tenho uma ligação com esse filme incrível. Grande parte das coisas que eu gosto mais como espectador e que programo são filmes que eu acho que podem ser filhos e afilhados desse filme. Os filmes que não consigo engavetar são os que eu mais gosto de programar e promover. O Close-up é também uma espécie de assinatura. No dia em que decidirmos avançar para uma competição, os filmes terão essa assinatura, no sentido de uma sofisticação da linguagem. Daí neste ciclo que estamos a montar dedicado ao Holocausto termos programado o Saul fia (O Filho de Saul, 2015). É um filme perfeito: consegue tratar de temas pelos quais as pessoas se interessam e, ao mesmo tempo, o filme é ousado nessa questão da linguagem.

Olhava para a própria organização dos filmes, dentro do espaço deste primeiro episódio do Close-up: há o “Noite e Nevoeiro”, ciclo dedicado ao tema do Holocausto; há o “Fantasia Lusitana”, com filmes de produção nacional; há este casamento feliz entre o Isao Takahata e o Yasujiro Ozu; uma retrospectiva do realizador brasileiro Gabriel Mascaro; um ciclo sobre “Infância e Juventude”. Como é que foi feita e pensada esta organização? Qual o ponto de partida: foram os filmes, foram as pessoas que podias trazer cá, foram os teus interesses ou uma combinação disto tudo?
Eu arquivo e vou acumulando coisas. Os filmes vão estreando. Eu até tenho uma lista em documento Excel com toda as estreias que me interessam. Sobre o Holocausto, tinha vários destes filmes acumulados e queria arranjar uma maneira de os conjugar. No caso do Ozu, tinha exibido alguns da fase a preto-e-branco e tinha estes, a cores, soltos. O Takahata descobri. O Mascaro foi uma oportunidade. Houve coisas muito diferentes nisto tudo. Mas essencialmente é isto: primeiro começa-se com os filmes e depois chega-se às pessoas que convidamos para comentar. Mas só nos interessam as pessoas que estão ligadas a esses filmes. Podem não ser pessoas do cinema. Ainda ontem o Professor Manuel Sarmento – que não é um cinéfilo – estava a comentar contigo [o Ohayô (Bom Dia, 1959), de Yasujiro Ozu]. Mas ele usa o cinema para as questões da infância. Interessa-nos essa abordagem.
É muito importante também essa relação com o tempo. Falas da questão dos festivais terem uma lógica muito quantitativa. Aqui há uma outra respiração, nesse ponto de vista. O Gabriel Mascaro é um bom exemplo. Um autor que é aqui homenageado, mas vocês mostram agora um conjunto de filmes seus e depois, daqui a uns meses, voltam a ele. Esta respiração parece diferente. Costumo comparar alguns festivais de grande dimensão a aeroportos. É um trânsito infernal onde nada se fixa.
Há essa coisa de querer enfiar tudo nuns dias e depois aquilo desaparece.
Temos o exemplo recente da retrospectiva Godard no Estoril & Lisbon Film Festival: centenas de filmes em poucos dias.
Não consigo entender isso. Estes “brevementes” que aparecem no programa do Close-up tinham um duplo objectivo. Desde logo, servem para se perceber a intencionalidade da programação. Por exemplo, não conseguimos meter o Shoah (1985) agora, mas queremos que as pessoas percebam que nós vamos exibir o filme, senão este ciclo não fazia sentido. Ao mesmo tempo, tinha outro objectivo: abrir a oportunidade de surgirem outros filmes, que nós vamos acoplar a estes e que até podemos eventualmente substituir. Outra coisa que frisas bastante e com que eu concordo: não deixar desaparecer os filmes, se eles são realmente importantes. Um filme como o da Margarida Leitão, Gipsofila (2015). Estes filmes têm de ser mostrados. Não podem ser filmes para ser vistos em sessões das duas da manhã na televisão. Eles são demasiado importantes para isso. Nós – quem é do meio, quem propõe coisas aos outros – temos essa obrigação. Uma das inseguranças do programador é saber se os filmes chegam à pessoas certas. Mas grande parte das vezes os filmes encontram o seu público. O Gipsofila acabou por encontrar ali o seu público. A sessão se fosse nocturna podia ter mais gente. Mas eu acho que já fizemos qualquer coisa pelo filme, para que ele continue a viver.

Posso estar enganado, mas acho que se há coisa que pessoas envolvidas em festivais grandes podem invejar no Close-up é essa serenidade com que trata o cinema e o dá a ver ao público. Que regularidade é que pretendes para conseguires encontrar um público?
Aqui vai ser a ginástica de montar um puzzle. A ideia é que haja uma programação de dois em dois meses, fazer umas três ou quatro réplicas por ano. Vamos continuar a trabalhar estas secções, que dão muita liberdade. Por exemplo, uma secção como a “Fantasia Lusitana” surgiu porque realmente nós temos um cinema muito particular. Como é que um país tão pequeno, com tão pouca produção, tão pouco dinheiro para fazer filmes, inventa coisas como o Rio Corgo (2015) ou o Gipsofila? Queremos dar ênfase a esse milagre, a essa fantasia que nós conseguimos produzir.
Quanto aos festivais grandes, eles fazem-nos um favor: estão lá coisas disponíveis e nós pegamos nelas. Muitas vezes quando vou aos festivais de Lisboa estou lá três ou quatro dias, porque não consigo estar mais, mas o catálogo vem comigo. Depois eu vou escavar naquilo. Vou procurar outras ligações.