Marcel Carrière ou, para os amigos, Carcel Marrière. Foi realizador e o grande engenheiro de som de uma geração de cineastas que muito celebrou a capacidade de registar espontaneamente a banda sonora da vida, em todos os seus belos acidentes e imperfeições. Para os cineastas “do directo”, o som não era uma questão de pormenor. Carrière esteve no centro desse contexto efervescente do cinema canadiano, nascido na província do Quebeque, do qual fizeram parte os colegas e amigos de uma vida Michel Brault, Pierre Perrault, Gilles Groulx, Claude Jutra, entre outros. Cineastas bem representados na programação que o Doclisboa levou até à Cinemateca Portuguesa para mostrar “Uma Outra América”. A minha conversa com Marcel Carrière procurou atravessar uma carreira longa ao serviço do cinema, tendo sempre como referência o espírito livre, provocador, descomprometido e “em sintonia com a vida” que embalou todo um prodigioso grupo de cineastas e de camaradas.
Falou dos seus verdes anos numa entrevista dada à revista Séquences em 1974 (a Léo Bonneville), quando lançou nas salas O.K. … Laliberté (1973). Disse algo acerca do seu amigo e colega, o realizador Michel Brault, que registei: “o cinema directo começou connosco”. Tinha consciência, então, de fazer parte de uma mudança histórica e estética não só do cinema canadiano como, mais genericamente, do cinema de todo o mundo?
Não, de maneira alguma. Nós nem apelidávamos o que fazíamos de “cinema directo” – isso fizeram os críticos e algumas pessoas posteriormente. Trabalhávamos em conjunto. Um dos primeiros filmes que fizemos foi em 1957. Chamava-se Les raquetteurs (1958). Tínhamos feito alguns filmes pequenos antes. Mas este é considerado o primeiro filme do chamado “cinema directo”. Mas nós não tínhamos ainda o equipamento. O filme foi rodado com o intuito de fazermos apenas um pequeno clip. Antes de sairmos de Montreal, Michel Brault conseguiu arranjar mais película. Então, fomos rodar numa pequena cidade chamada Sherbrooke. Eu cheguei com um gravador alemão com motor de mola. O microfone estava dentro do gravador, puxava-se dali. No filme vê-se a minha mão a aparecer por baixo com o que parece ser um cone de gelado [risos]. Vê-se no filme o mayor da cidade que recebe os participantes, alguns deles americanos vindos do Massachusetts e Vermont. Era um grande acontecimento para a região. Michel filmou tudo em 35mm. Depois fizemos alguma sincronização, mas no início não estava sincronizado. Por exemplo, para Pour la suite du monde (1963), longa-metragem que filmámos em 1962, eu, Michel Brault e Pierre Perrault, mesmo aí não tínhamos o equipamento certo.
Só em 1964 é que saiu a primeira boa câmara francesa, Éclair. Foi fabuloso porque basicamente o que usávamos antes eram umas câmaras alemãs, que se prendiam às asas dos aviões para filmar os bombardeamentos. Mas elas eram ruidosas. Tínhamos ainda uma câmara modificada, que veio dos Estados Unidos e que havia sido fabricada para a televisão. Nessa câmara podíamos registar no negativo imagem e som. Servia para entrevistas. Ela foi alterada para que o cameraman a pudesse colocar sobre o ombro ou, por vezes, à cintura com a ajuda de um arnês. Tínhamos um sistema feito pelo nosso engenheiro, com um circuito eléctrico que usava um diapasão. Ao mesmo tempo, em Nova Iorque, D. A. Pennebaker – que era um engenheiro – criou um sistema, mas usando um relógio. Nós trabalhámos em colaboração com o pessoal de Nova Iorque. Algumas vezes com os irmãos Maysles, mas também com Richard Leacock, que foi o director de fotografia de Flaherty no filme Louisiana Story (1948).
O som directo constituiu uma mudança no cinema que era há muito reclamada. Pioneiros como Robert Flaherty, Dziga Vertov, Richard Leacock e mesmo Jean Rouch queixavam-se das limitações que sentiam por não poderem registar diálogo espontâneo e o som do que estavam a filmar. Quando decidiu enveredar pelo som estava ciente de que estava a fazer parte de uma mudança há muito desejada?
Não. Enquanto tirava o curso de electrónica e electricidade, li num jornal francês de Ottawa que o National Film Board, que então estava localizada aí, procurava um estudante de som. Eu não sabia nada sobre som. Mas tinha alguns conhecimentos sobre electrónica e electricidade. Candidatei-me e consegui o trabalho. Fui convocado pelo engenheiro principal de som para a rodagem de um filme. A experiência foi tão excitante que fiquei lá, no National Film Board, durante quarenta anos. Não voltei para a universidade. Quer dizer, voltei, mas para ensinar [risos].
Portanto, foi tudo quase por puro acaso. Isso foi em 1954. Em 1956, o National Film Board mudou-se para Montreal, para um edifício novo, com tecnologia de última geração. Com laboratório, um bom departamento de som, estúdios… tudo! Éramos invejados por toda a gente! Estava tudo num único edifício. Eram tempos diferentes… No próximo ano eles [trabalhadores do National Film Board] vão sair, vão para um novo edifício em Montreal. Porque o National Film Board encolheu. Quando saí em 1994, havia mil pessoas. Hoje, há só 355, não há mais realizadores ou técnicos, só advogados e administradores. Todo o cenário mudou.
Falei de pioneiros, mas não falei de um, que é provavelmente o mais importante nesta história: John Grierson [crítico e realizador escocês que cunhou o termo “documentário”]. Que papel desempenhou ele nesta geração do cinema canadiano?
O National Film Board foi fundada em 1939 como uma agência de propaganda que produzia filmes para que as pessoas comprassem “victory bonds” [obrigações de apoio ao esforço de guerra durante a Segunda Guerra Mundial]. Grierson veio da Escócia, ele tinha trabalhado com equipas inglesas. Portanto, quando ele chegou ao Canadá, muitos dos técnicos provinham de Inglaterra. Só quando o National Film Board foi para Montreal é que franco-canadianos entraram nas produções. Antes havia poucos. Em Montreal é que começa a estrutura francesa. No National Film Board existe, hoje, uma produção inglesa e uma francesa. Os técnicos, franceses ou ingleses, trabalham para ambas. Esta mudança para Montreal foi o nascimento… não de uma nação [risos]. Mas de um novo tipo de cinema. Michel Brault surgiu, com o seu bom amigo, Claude Jutra. Eu comecei muito cedo com Brault, filmámos vários filmes em conjunto.
Esses foram os anos dourados do som. Como José Manuel Costa referiu antes da projecção de Le chat dans le sac (1964) na Cinemateca Portuguesa, o engenheiro de som era naqueles dias um pouco como um autor. Isto era algo que sentia na época e foi este o contexto certo para enveredar por uma especialização no som?
Sim, porque, no passado, as imagens eram consideradas mais importantes. Fazia-se o som depois, em estúdio. O som directo era, por sua vez, registado logo ali. Posso dar um pequeno exemplo. Quando visitámos a China, em 1973, realizámos dois filmes, um sobre pingue-pongue e outro sobre a China. No fim, o governo chinês viu este último filme e, na sequência disso, impôs cinco mudanças. Algumas eram… Havia um plano da rua em que aparecia um rapaz que mexia com o dedo nos dentes. Eles disseram: “o que é que pensa que a sua mãe fará quando vir o filme?” Bem, a probabilidade de ela ver o filme era de três biliões para uma. De qualquer modo, a última imposição era muito importante, porque estava relacionada com a banda sonora. Diziam que era um filme “demasiado ruidoso”. Nós discutimos. O meu argumento é que deveria estar “demasiado alto”, mas não “demasiado ruidoso”. O ruído era o conteúdo. Ora, tudo foi gravado em directo. Era ruidoso porque a China era ruidosa! Finalmente concordaram. Caso contrário, tínhamos de remisturar tudo.
Contudo, nos primeiros tempos eu fazia bem mais do que som. Nós fazíamos filmes num curto espaço de tempo, com uma equipa muito pequena. Por exemplo, em Le chat dans le sac, eu fui o fotógrafo de cena oficial, mas ajudei o electricista. Ia ainda buscar a actriz pela manhã, parava para lhe comprar as pastilhas elásticas. Gilles Groulx, o realizador, precisava dos jornais do dia e, portanto, eu tinha de os arranjar.
Fiz quatro ou cinco filmes com Groulx. Tínhamos mais ou menos a mesma idade. Sou praticamente o único sobrevivente [desta geração]. Michel Brault morreu há pouco tempo. Ele foi para um festival no norte de Toronto na companhia do filho. Foram de avião e, já em Toronto, durante uma viagem de carro, a certa altura, Michel disse que gostaria de parar para comer qualquer coisa. O filho parou num sítio para buscar alguma coisa para comer. Quando voltou, Michel estava morto. Foi um choque para todos.
O Marcel tinha também esta habilidade de não se deixar deslumbrar pela nova tecnologia. Não se limitava a registar o som – isso seria demasiado fácil. Pelo contrário, desafiava o som. Escreveu para um catálogo canadiano (Comment faire ou ne pas faire un film canadien) algo que me pareceu interessante. É a sua definição de claquete: “Ferramenta (de origem espanhola) essencial para o ‘cinema do papá’. Pode servir para sincronizar som com imagem.” Se o diálogo num filme de estúdio desse “cinema do papá” era sincronizado, o Marcel parecia gostar de brincar com o som, criando falhas entre o que era mostrado ao olho e o que era dado a ouvir à orelha. Interessava-lhe esta abordagem estética do som?
Sim, mas a nossa filosofia era muito simples. Para mim, para Michel [Brault] e outros, como Wolf Koenig. Trabalhei com Koenig e Roman Kroitor. Fizemos um filme sobre Stravinsky e outro sobre Paul Anka, que era um cantor popular então. Sabíamos o básico sobre a técnica e, depois, esquecíamos tudo. Um mau técnico é, para mim, alguém que só fala da técnica. Aprendemos a coisa, depois esquecemo-nos da coisa para fazer um trabalho mais criativo. É isso que transmito aos alunos na universidade. Portanto, o problema com o som é que, muitas vezes, não tínhamos a ferramenta, mas havia um microfone americano comprimido chamado shotgun. Pedi a um mecânico para fabricar uma pega. Para agarrar no microfone de baixo para cima. Stravinsky falava francês, era a sua segunda língua. Eu era o único da equipa que falava francês. No primeiro dia de rodagem, ele não parava de dizer piadas sobre o microfone, comparando-o com o meu… [risos] E sempre que ele dizia essas piadas, perguntavam-me: “o que é que ele disse?” E eu dizia: “esqueçam!” [risos].
Depois, havia outro microfone que encontrei numa revista técnica, feito por uma relojoeira americana. Comprei um, ele vinha numa pequena caixa quadrangular e abri. O interior era como um caixão. E lá estava sentado o microfone. Improvisei um pau de bambu para o segurar. Nunca usei o microfone por cima, mas por baixo. Preciso de dizer uma coisa: no cinema directo, nunca não há ensaios e só há um take. Nós estávamos na cozinha e as pessoas tinham voltado do mar, estavam a beber álcool. Eu estava muito próximo do fogão. O meu sistema para fazer “claquete” consistia num pequeno caderno onde eu numerava os takes. Mostrava-o para a câmara. O Michel mostrava o fogão e eu batia com o microfone contra ele e obtinha o “clap”.
A propósito deste contexto de improvisação, lembro-me de Gilles Groulx, no documentário Trop c’est assez (1995). Ele diz, a certa altura, que um artista é alguém que está disposto a aceitar os acidentes, os belos acidentes.
Vi esse filme. Inclusivamente ajudei o realizador [Richard Brouillette] a fazê-lo. Gilles Groulx não é aí a pessoa que conheci. No fim, ele estava muito, muito doente. É só 10% do que ele foi. Fiz quatro ou cinco filmes com ele e sim, tinha de improvisar a toda a hora. A improvisação era a norma. Mesmo nos filmes de ficção, como Le chat dans le sac, a cena nunca era ensaiada. Quando Gilles se sentia pronto, dizia “caméra”. E os actores podiam andar por ali. Tínhamos de estar preparados para tudo! [risos]
Não lhe vou perguntar o que é um filme documental – parece-me uma questão gasta. Mas gostava que comentasse uma maravilhosa distinção entre filmar filmes de ficção e documentais. É da autoria do crítico e realizador francês Luc Moullet. Diz ele que a diferença reside no seguinte: depois de rodar filmes de ficção o realizador está mais magro, ao passo que depois de filmar documentários o realizador está invariavelmente mais gordo.
[Risos] A minha definição é diferente. Num filme de ficção estás sempre a comer a agulha do teu relógio. Porque há uma agenda e tens de fazer imensos takes. Mesmo num ambiente mais livre. Em documentário, no National Film Board, gozávamos de uma certa liberdade. Podíamos rodar o filme durante um ano. Alguns desses filmes foram escritos em duas páginas. Tínhamos a confiança do produtor. Íamos ao Programme Committee, explicávamos o que estávamos a fazer e eles tinham a nossa palavra em conta. Por vezes, não era um sucesso. Até podia ser um desastre, por vezes. Mas arriscava-se para lá disso.
Mais tarde tornei-me director do Programme Committee. As pessoas submetiam os seus projectos. Mesmo Gilles Groulx no fim da sua vida. Nessa altura, ele não escrevia nada. Pedi para irem ter com ele – que então vivia no interior – e registarem num gravador o seu projecto. Ou ele podia telefonar-nos e nós ouviríamos. Era tudo mais flexível, em certo sentido. Hoje, tudo tem de ser escrito. E mesmo se há “um gato que aparece”, tens de escrever que “o gato vai aparecer” [risos].
Era fácil para si distinguir documentário de ficção, nomeadamente quando submetia um projecto?
Depende do tipo de ficção. A minha primeira ficção foi uma ficção histórica. St-Denis dans le temps… (1970). Não tinha um argumento. Tinha cinco ou seis páginas sobre o contexto histórico.
Porventura, citando o fotógrafo norte-americano Walker Evans, não existe cinema documental, mas cinema de estilo documental. Assisto a Le chat dans le sac, mas também a À tout prendre (1963), Entre la mer et l’eau douce (1967) ou mesmo Les ordres (1974), e sinto que, apesar de serem filmes de ficção, denotam uma disponibilidade para o risco e para o acidental que tem que ver com os primeiros documentários do cinema directo.
Sim, mas, antes desses documentários, fizemos muitos filmes de treinos para a Força Aérea. Fomos para a base e pilotámos aviões. Pilotei um avião, com um oficial [risos].
Em À tout prendre, a primeira rodagem foi feita à noite numa ponte para comboios e peões. Tudo sem autorização e com equipamento emprestado, porque o Claude não tinha dinheiro. Eu e Gilles Groulx éramos actores nesta sequência. Fazíamos de bandidos. Tínhamos de correr na via férrea, em frente ao comboio, e saltar por cima da barreira para atacar o Claude e, depois, fugir. Ora, a sequência foi filmada e estava bem. Mas o rolo do filme caiu na água. Foi o fim! Claude foi então saber a que horas vinha novo comboio. Quando soube, voltámos para a ponte, fomos outra vez para a via férrea e atacámos Claude. Nesta altura, Claude estava em contacto com Jean Rouch e preparava-se para ir para Níger, a convite do Presidente. Quanto atacámos Claude, a sua carteira, que continha o passaporte, saltou e afundou-se no rio [risos].
À tout prendre foi escolhido para o Montreal Film Festival. A primeira cópia do filme em 16mm saiu na manhã em que este era mostrado no festival. Claude estava no laboratório de revelação e telefonou-me de lá quase a chorar: “isto é um desastre. A banda sonora não presta! Não temos tempo para produzir uma nova cópia!” Eu respondi: “vamos ver o que consigo fazer”. Fui ter com um técnico de som meu conhecido e concordámos que podíamos instalar uma mesa de mistura no projector. Levámos este equipamento até à sala e durante a tarde instalámos esta coisa. Estava sentado contra a parede na cabine de projecção. À medida que o filme estava a ser projectado eu estava a remisturar o som [risos].
Como um disco-jóquei.
Sim, ao vivo. Cinema directo no grande ecrã. Nunca mais fiz isto. Mas o filme ganhou o prémio principal!
Uma pergunta filosófica para terminar. Disse à Séquences algo que me pareceu tocante: “Dou muita importância às relações humanas (…) e a minha vida é tão importante quanto o filme”. Um estilo fílmico como o do cinema directo rejeita regras formais muito estritas, mas eu acredito que vocês partilhavam uma mesma postura moral. Queriam registar a vida, mas também estar em sintonia com essa vida, respeitando as pessoas e os lugares que retrataram. Em que medida estes valores humanistas foram e são importantes?
Bem, agora estou reformado, mas ainda ajudo jovens cineastas a começarem os seus primeiros filmes. Mas sim. Por exemplo, em relação a Pour la suite du monde, regressámos lá [à Île aux Coudres] várias vezes. Sobretudo para funerais. Algumas das pessoas no filme morreram e nós estivemos sempre lá. Fomos tão acarinhados pelas pessoas que, quando se celebrou o quinquagésimo aniversário do filme, as pessoas mais novas da ilha convidaram-nos para passarmos um fim-de-semana. Michel Brault esteve lá, o editor Werner Nold e o produtor Ferdinand Dansereau também apareceram. Elas chegaram mesmo a encenar uma peça que escreveram especialmente para a ocasião. Interpretaram-na para nós. Foi um fim-de-semana fabuloso! Isto serve para mostrar a relação que se manteve mesmo passado tanto tempo.
Os meus agradecimentos a Cíntia Gil, José Manuel Costa, Joana Linda, João Ricardo Oliveira e à restante equipa do Doclisboa que tornou esta entrevista possível.