Deixei de me interessar pelo cinema de Jean-Luc Godard desde que este deixou de me emocionar.
O documentário JLG/JLG – autoportrait de décembre (1994) marca o final da relação várias vezes proveitosa com a obra do suíço. Tenho a certeza de que existem filmes nas décadas anteriores que uma vez revistos suscitariam de novo a minha admiração, mas neste século não tenho sequer vontade de recuperar o que ficou por ver. O visionamento do novo Le livre d’image (O Livro de Imagem, 2018) tinha circunstâncias particulares e anuí ao convite, procurando apresentar-me na sessão livre de preconceitos. Fui então livre de preconceitos ver Le livre d’image. O dispositivo é reconhecível e teve o apogeu no documentário para televisão, em oito partes, Histoire(s) du cinéma (1989-1999). Citações, fragmentos de músicas, vozes de outros, vozes do próprio, imagens deterioradas pelo efeito do vídeo, com grão e as cores saturadas, uma ladainha de fim de mundo provinda de um oráculo moribundo, o próprio realizador.
Um universo que se apresenta confuso, cheio de ruído, permanentemente fragmentado, onde a desmultiplicação de referências é constante, onde a beleza se apresenta violentada na sua forma original.
Godard no papel de um demiurgo pós-apocalíptico, a desfiar e a baralhar referências, a repudiar os caminhos do mundo e da arte profanada pelo comércio. Godard o criador de defeitos visuais no material que utiliza nos seus filmes/ documentários, como que em resposta aos defeitos morais que governam o nosso destino. Aqueles que leva(ra)m à guerra, ao apagamento da história, ao menosprezo pelas culturas mais antigas e mais ricas da humanidade. Não consigo tirar de Godard o molde de um colete de forças conceptual que enforme os seus filmes. Os mais rarefeitos, como Le livre d’image, de uma rarefacção extrema que chega a criar um efeito de densidade, de saturação, não permitem que com eles me relacione de um ponto de vista racional. Alguns efeitos poéticos da trituração operada pelo vídeo, aqui e ali um achado de montagem, e pouco mais. O fluxo “caótico” vai gerando uma indiferença da minha parte e a dada altura desisto, entro num pré-coma de que regresso esporadicamente porque afinal resisto e procuro uma porta de acesso.
Existe ainda o grande paradoxo de chamar livro a um objecto audiovisual que não permite (pelo menos na projecção em sala) que nos detenhamos num pormenor, ou que voltemos atrás para clarificar algum aspecto sonoro ou de imagem. Não sei se esta não será a verdadeira vontade de Jean-Luc Godard. De nos projectar para um universo que se apresenta confuso, cheio de ruído, permanentemente fragmentado, onde a desmultiplicação de referências é constante, onde a beleza se apresenta violentada na sua forma original, que impõe uma fruição sensorial e beata.
Le livre d’image é um filme onde se fica perdido ao entrar e em que chegamos a ansiar pelo fim, que representa a única saída efectiva.