Uma das palavras mais usadas para descrever o filme de Julia Ducournau, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, é “chocante”. Outra será “desconfortável”, ou ainda “estranho”. Mas a faceta potencialmente mais impressionante do filme é o inesperado da viagem, é a forma como somos conduzidos (pun intended). Pegando no filme, analisando os seus traços mais largos, há pouco de genuinamente chocante. É a mão, o olhar, a câmara de Ducournau que torna a aventura estranha, selvagem, turbulenta.
É difícil falar sobre Titane (2021) sem esventrar a sua trama, não só porque é isso que o filme pede, como não há nada a dizer se não o fizermos. A sinopse não é sequer um ponto de partida e tudo são metáforas, são ideias, são fetiches espojados no grande ecrã.
Agathe Rousselle é Alexia. Em criança, depois de um acidente de carro, tem uma placa de titânio inserida no crânio. Mas isso é só o início da sua romantização, e sexualização, de veículos. O acidente, em si, revela ou precipita algo que o filme vai continuar a explorar e que não tem nada a ver com automotores, mas que talvez esteja ligado a coisas indestrutíveis: a ligação entre pais e filhos.
Limpando a construção metafórica, onírica ou mais complexa do filme, o seu âmago é tanto a fluidez quanto a solidão. Alexia, depois do cold open do filme, é-nos apresentada num movimento de câmara fluído, numa cena que termina em movimentos dançantes giroscópicos sobre um carro que nos fazem questionar se ainda é ela no ecrã — no que parece ser um misto de discoteca com exposição de carros, o dance floor está repleto de showgirls. Ela continua a caminhar na corda bamba da fluidez enquanto simula atracção ora junto a um homem que a interpela, ora junto a uma colega com quem tem um meet cute que envolve um duche e uma madeixa de cabelo presa num piercing. É o prelúdio para outro tipo de fluidez, a moral, dado que estas interacções resultam numa série de mortes que colocam Alexia no firmamento dos serial killers cinematográficos com tendências freudianas.
Mas o primeiro momento de choque está no intervalo destes dois encontros, em que Alexia reencontra, num momento onírico e estranhamente romântico, o carro com o qual dançou inicialmente — se a placa de titânio na sua cabeça não for a melhor expressão do clássico “I’ve got you under my skin” enquanto ligação entre sujeito e objecto fetiche, então não sei qual será — e a ligação entre os dois culmina num encontro sexual [o que achará Julia Ducournau do The Counsellor (O Conselheiro, 2013) de Ridley Scott?]. O filme retira o “onírico” ao encontro quando Alexia constata, no dia seguinte, que está grávida — o óleo do motor substitui o sangue humano e voltamos a não estar no reino da verosimilhança.
Duas pessoas com instintos violentos que encontram, uma na outra, a possibilidade de algo transcendente. E essa transcendência talvez seja o Amor.
Chegando a este ponto, temos uma serial killer com um fetiche por carros que tem de se esconder das autoridades e está totalmente, e propositadamente, sozinha no mundo. A solução que encontra não é menos demente do que o que precede este momento, mas é uma viragem para algo genuinamente surpreendente.
Continuando sob o signo da fluidez, Alexia torna-se Adrien, um rapaz que desapareceu quando tinha sete anos, já há dez anos. Alexia transforma a sua aparência, cortando o cabelo, usando ligaduras para diminuir a visibilidade dos seios e da barriga que vai crescendo, e partindo o nariz. Agora Adrien é apresentado ao pai deste, Vincent (Vincent Lindon), um homem que parece tão desesperado por encontrar um filho, mesmo que não seja o seu, que recusa um teste de ADN e recebe Adrien de braços abertos.
A subcorrente de violência não larga o filme, mas transforma-se. Vincent parece, a cada passo, mais cego na sua necessidade de que Adrien seja mesmo o seu filho. Alexia continua a sua dolorosa performance (enquanto Adrien) já não necessariamente para salvar a sua pele (devastada pela gravidez que a consome), mas porque não quer abandonar este homem. São duas pessoas com instintos violentos que encontram, uma na outra, a possibilidade de algo transcendente. E essa transcendência talvez seja o Amor.
É aqui que as roupagens (“cronenbergianas” e não só) do filme revelam uma exploração sobre a pureza do amor para além de qualquer consideração de género ou relação familiar, e a beleza desse esboço de Ducournau, que peca quando se torna demasiado óbvia ou demasiado sentimental, é o que faz com que Titane seja sobre muito mais do que a soma dos seus “choques” ou a visceralidade do seu body horror — sublinhada pelo trabalho de som, que carrega muito mais horror do que o que vemos espalhado no ecrã.
De uma forma não muito afastada da sensação de “os dois contra o mundo” digna de Bonnie e Clyde, Vincent e Alexia/Adrien encontram algo claramente ausente antes de entrarem na vida um do outro: carinho, compreensão, aceitação total.
Titane é uma aventura, uma viagem alucinante que quer perturbar, incomodar. Mas só até certo ponto. Se é uma bola de demolição, tem um marshmallow no centro. E se nos fica o desvario das curvas da rota, fica também a sensação da descartabilidade de certas partes do enredo, úteis como meio-para-atingir-um-destino mas esquecidas na sua inconsequência.
Mais do que os elementos fetiche da violência, do sexo e do metal, é a audácia de Ducournau, a qualidade alienígena de Rousselle, a masculinidade lesionada de Lindon, e o porto seguro que estes encontram um no outro, que dão a qualidade exuberante ao filme. É um filme que não pede desculpa, ou “com licença”, e que não se importa de embater contra as sensibilidades ou expectativas da audiência. E sua loucura não é só desassossego, há sentido de humor nas amolgadelas.
Independentemente de uma placa na cabeça ou da carroçaria de um carro, são os laços que (n)os unem que são de titânio.