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Uptight, parte II: a revolta

De Vítor Ribeiro · Em 28 de Dezembro, 2022

If you black and gotta work for a livin’
Now, this is what they will say to you
They says, “if you’re white, be all right”
“If you was brown, stick around”
“But as you black, oh brother, get back, get back, get back

Canção Black, Brown and White, escrita por Big Bill Broonzy

O primeiro plano de Uptight (1968), que perceberemos pouco depois tratar-se do registo de um cortejo fúnebre, indica a data do assassinato de Martin Luther King em Memphis: 4 de Abril de 1968. O plano seguinte, enquanto informa que o mártir foi sepultado em Atlanta (Geórgia, sul dos EUA), enquadra um homem com uma câmara de filmar ou fotografar, fazendo desde logo uma associação da história de violência e de racismo com a captação e a difusão de imagens, tomando a câmara como uma extensão do homem, um meio como uma arma para perpetrar os seus crimes.

Uptight (1968) de Jules Dassin. O cortejo fúnebre

Uptight, realizado por Jules Dassin, transportou a intriga de The Informer (O Denunciante, 1935), da Dublin dos anos 20 para os dias quentes que se seguiram ao assassinato do reverendo, no subúrbio de Cleveland, a meio de caminho entre a cosmopolita New York e Chicago, a cidade do vício. Dassin que nasceu no Connecticut e se mudou com os pais na infância para o Harlem em New York, tornou-se um dos grandes cineastas do noir, das nuances corruptas e violentas da cidade, com pelo menos três títulos incontornáveis: Brute Force (Brutalidade, 1947), The Naked City (Nos Bastidores de Nova Iorque, 1949) e Night and the City (Foragidos da Noite, 1950). O realizador, depois de uma temporada na Europa, inscreveu-se no Partido Comunista Americano durante a Grande Depressão. O seu nome começou a aparecer nas pesquisas do Comité das Actividades Anti-Americanas desde 1947, pelo que, à beira de integrar a lista negra, acabou por rodar Night and the City em Londres, com a bênção de Darryl F. Zanuck. O cineasta acabou, então, por exilar-se na Europa com uma produção titubeante, mas onde apresenta, por exemplo, o óptimo policial Rififi, vencedor da Palma de Ouro de Cannes em 1955. Está, então, carregado de simbolismo e de intencionalidade este regresso de Jules Dassin à América, para realizar um filme dentro da tensão e da carga politica de um tempo, que tem um protagonista denunciante na órbita de uma revolta.

A primeira sequência de Uptight, estabelecida quatro dias após a morte de King, utiliza as imagens documentais do cortejo fúnebre pautadas por uma voz negra do jazz que repete um lamento, o requiem por um homem que morreu por ela, que morreu por todos eles.  As pessoas não cabem na rua, amontoam-se e dependuram-se nos edifícios, com inúmeras câmaras que salpicam a multidão para registar o acontecimento. A montagem é compassada de um modo que nos lembra a transparência hollywoodiana e divide os quadros, precisos no tempo e no espaço, entre a carroça que transporta o caixão e close-ups de rostos escolhidos na multidão, maioritariamente de afroamericanos. O plano abre e a torrente daquela comunidade alaga as ruas do subúrbio até à cidade.

O cortejo através do medium televisivo

O jogo das imagens adensa-se na transferência do filme para Cleveland, mediada pela televisão. Ouvimos o discurso de King que continuou a atravessar os tempos – “I still have a dream” – como a base das imagens do cortejo fúnebre. Já não são apenas imagens de conteúdo documental: a mediação televisiva perverteu-as em outra coisa, numa espécie de ópera, em que o discurso de King participa de um esboço de um guião ficcional destinado a produzir uma comoção no espectador, a partir de um trauma colectivo. Uptight providencia uma notável utilização do campo-contracampo, entre enquadramentos da televisão que emite o funeral e os rostos da população afroamericana que assiste à emissão nos bares da cidade. Este dispositivo intensifica o trauma e a emoção expressa por aquele acontecimento, traduzida em olhares que antecipam a revolta; e na rua há megafones que lançam o discurso do mártir. O filme tem evidentes paralelos com Medium Cool (1969), de Haskell Wexler, no enunciar de uma narrativa sustentada em acontecimentos e imagens reais, mas também na demonstração do medium televisivo como um braço do humano, uma extensão dos seus traumas e das suas histórias. Depois de mais de sete minutos, o filme mostrar-nos-á a primeira personagem, pois até aqui podemos considerar que eram indivíduos a partilhar o movimento da História: um afroamericano (Tank, o protagonista) olha a televisão, que está rodeada de um pedaço de pão e de um frasco de medicamentos. Talvez possamos definir este momento como o de transição para uma ficção “pura”, sem o suporte das imagens documentais, mas com esses eventos ainda a rebarbarem a mente dos personagens e do espectador.

Dassin contamina o filme através do catálogo do noir de Hollywood, dos anos 40 e 50, e instala o protagonista em ambiente de subúrbio nocturno, um gueto que acumula lixo, sombras e tonalidades enegrecidas.

Uptight reitera um dos eixos de The Informer – o vício como espelho do humano -, mas fá-lo com cambiantes estéticas. Tank é um homem só e desapossado, que aos olhos dos demais fora um grande homem, desprezado agora, então, pela sua comunidade, com fama de bêbado. Dassin contamina o filme através do catálogo do noir de Hollywood, dos anos 40 e 50, e instala o protagonista em ambiente de subúrbio nocturno, um gueto que acumula lixo, sombras e tonalidades enegrecidas. Aliás, o episódio que lança o plot – um roubo de armas – instala desde logo esse tom do noir, através de um homicídio que deixa um vestígio, que serve de ignição para a pulsão que atrai os personagens para a destruição, para os perigos da cidade. Uma comunidade que na fronteira da revolta abandona o esforço de compreensão e de empatia. Ambiente pouco católico, sem espaço para reabilitações, pouco consentâneo, como exploraremos abaixo, com a herança do mártir reverendo.

Tank não refreia o apetite pelo vício e passeia-se em plano sequência por montras onde as raparigas de bares Go Go Girls se insinuam.  Pouco depois, auxiliado pela autenticidade dos lugares, atravessará com várias passadas firmes, e com um sorriso no rosto, uma poça de água suja, à procura de chegar ao fundo do lodo, a assumir com deleite a imersão na imundície. Estas sequências também sinalizam para o espectador uma desistência: Tank abdicara do conflito, para consumar a denúncia. A câmara segue incerta os passos do protagonista, a anunciar um comportamento amoral. O antidoto do personagem para atenuar a culpa surgirá, antes e depois do delito, através da tentativa metafórica de se lavar (como Lady Macbeth) e também o veremos várias vezes sob a chuva purificadora.

Os tons, o lixo e o vicio da cidade, como no cinema noir

Outra tentativa do protagonista, também tomada de empréstimo de The Informer, é a de conquistar a virtude através do dinheiro. Pouco depois da morte provocada pela sua delação, Tank tenta arrastar todos para o vício, ao pagar a despesa do bar com o dinheiro sujo. Pouco depois, dirigir-se-á ao velório do amigo, e deixará uma quantia generosa para apoio da família, o que o denuncia junto da comunidade e reitera as acções corruptas do personagem desamparado. A sequência do velório, para lá dos elementos coaptados do filme de John Ford, é intensificada pela escolha da actriz do personagem da mãe do morto: Juanita Moore, que em Imitation of Life (Imitação da Vida, 1959), uma das obras máximas do melodrama e de Douglas Sirk, fora a mãe de uma rapariga revoltada pela sua condição de afroamericana, numa rara presença do racismo numa obra do mainstream da Hollywood clássica.

A máquina também é um símbolo da opressão sobre os negros. Nas ruas, há manifestações e discursos espontâneos, que insistem que os negros nada possuem: nem trabalho, nem equipamento, nem direitos, nem dinheiro. Numa curiosa sequência, Tank começa por vociferar contra uma imponente siderurgia que lhe levou os melhores vinte anos, para depois confrontar e vencer um cowboy mecânico numa feira; o protagonista devolverá, então, essas histórias de violência, na casa de espelhos: da sua figura deformada e do seu plano de revolta formar-se-ão pesadelos para um grupo de caucasianos de classe média.

Uma história de abusos devolvida na casa de espelhos como um pesadelo

Uptight está permanentemente a comunicar com Medium Cool, como exemplares notáveis da catarse feita em cima das convulsões sociais na nação americana, resultado de forças contrárias no progresso da conquista de liberdades individuais, designadamente da comunidade afroamericana. Na esquadra, polícias comentam as paisagens devolvidas pela televisão, que apontam para 150 000 pessoas no cortejo fúnebre de Luther King. Um dos polícias diz que nunca pensou que “o tipo fosse tão importante”. Um afroamericano, espécie de informador, que participa da conversa, responde: “isso é porque ele nunca acharia que um nigger fosse importante”. O polícia reponde que nunca usaria essa expressão, reiterando a importância das convenções e da linguagem a lidar com os ecos da História, designadamente da América saída da Guerra da Secessão, e da abolição da escravatura. Tal como em Medium Cool também se pensa em dinheiro como forma de chegar às armas, quando se ergue uma barragem insuperável entre a organização armada da comunidade afroamericana (uma equivalência com o IRA de The Informer) e algumas personalidades influentes e moderadas que continuam a acreditar no diálogo como caminho para o progresso.

Uptight, perante a desconfiança nas instituições, tende a valorizar menos a crença, quando comparado com a importância da lei, como o dispositivo de eleição da comunidade na aspiração à igualdade entre os homens.

O legado de King afrouxa junto da sua comunidade: é tempo de revolta, a violência substituirá o diálogo. Uma jovem afroamericana, irmã do denunciado, rebate o “free at last” do reverendo, como um refrão que ficou gasto, fora do tom, fora de tempo. “De que serve chorar, caminhar e rezar? Para ganhar o coração, o amor dos brancos? Também havia amor no homem que lhe disparou sobre a cabeça? Finalmente livres? Livres para continuar a suplicar”. A jovem mulher remata referindo-se a King não como um lutador, mas como um pedinte. A maioria da comunidade decidirá marchar com violência, abdicaram de confiar no tempo. Não receiam a morte na revolta, naquela nação “quando se nasce negro, nasce-se morto”, diz um deles. O tempo sem violência, dizem eles, cessou a 4 de Abril de 1968, em Memphis. Estas datas surgem como neons em outdoors publicitários, a definir um trilho de eventos numa paisagem partilhada pelos mártires da História – King e os irmãos Kennedy, e os mártires de Hollywood – Marilyn e James Dean.   

O julgamento

Um plano de forma elíptica que faz a câmara rodar num turbilhão lento desde o balcão do edifício até encontrar no solo a mãe do denunciado, regista não apenas a morte do alvo da traição; este vórtice simboliza, também, o fim do mundo, o definhamento da civilização. O protagonista é detido e depois colocado no centro de um anfiteatro improvisado que servirá de tribuna para o julgamento. Em M (Matou, 1931) de Fritz Lang, numa alegoria à ascensão do nazismo na Alemanha, um grupo representativo do submundo do crime, perante a ineficácia da lei, tomava as rédeas do juízo, capturava e decidia a sorte do Vampiro de Dusseldorf, um assassínio em série de crianças interpretado por Peter Lorre. Numa notória afinidade com M, também aqui, um conjunto de indivíduos define uma situação de excepção, para invocar qualidades justiceiras, a caminho da barbárie.  

Ao contrário do julgamento de The Informer em que o traidor apenas recebia a compaixão da irmã do morto, aqui um personagem (Kyle), um afroamericano moderado e maturado, questiona aquele procedimento, como se fosse um mensageiro da herança de Luther King. Perante a condenação à morte, Kyle pergunta se eles são um júri, se alguém lhes conferiu o direito de produzirem um veredicto daquele âmbito. O líder da tribuna responde com o direito de castigar os inimigos, conferido pela revolução em curso. Com Kyle a insistir que para se produzir um castigo, para se tirar a vida alguém, é preciso evocar uma autoridade, respeitar a lei, alguém pergunta: “qual lei, a dos brancos?”  São dois povos apartados, pelos traumas vividos no presente e pela latência de uma História de humilhação e linchamento com que as leis de uma nação pactuaram. Se o pacifismo lhes pareceu uma via, se aceitaram participar nos grandes conflitos do século XX para serem aceites como cidadãos de pleno direito, já não lhes é possível a crença numa revolução que não use da violência, de forma a suster o abuso e a indignidade imposta pela parte privilegiada da nação. Tal como o protagonista de Ford, Tank poderá contar com a misericórdia das mulheres e a bíblia estará num compartimento onde a prostituta e companheira do protagonista lhe atenuará a culpa, mas Uptight, perante a desconfiança nas instituições, tende a valorizar menos a crença, quando comparado com a importância da lei, como o dispositivo de eleição da comunidade na aspiração à igualdade entre os homens.  

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Vítor Ribeiro

"Não gosto da vida verdadeira e por isso me dedico à ficção. Se a literatura não existisse, eu mesmo a inventaria." Enrique Vila-Matas

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