Nunca se censurará. Se se censurasse, se censurasse as suas fantasias e o seu inconsciente, depreciar-se-ia como realizador. É como dizer a um surrealista para não sonhar. A forma como retrata as mulheres é muito mais complexa do que qualquer abordagem ideológica irá desvendar. (…) Não é esse o propósito da arte, dizer-nos como viver.
David Cronenberg
Videodrome (Experiência Alucinante, 1983) partiu de um projecto anterior – “Network of Blood” – e da experiência do ainda adolescente Cronenberg, das noitadas passadas em frente ao televisor, num período em que ainda não existia a televisão por cabo e o sinal se recebia através de uma antena, que se rodava para receber as emissões. Com o avançar da hora, diz o cineasta, e à medida que as “estações de sinal forte” fechavam a emissão, despontavam “sinais mais fracos que haviam sido anteriormente mascarados”. Estas emissões resultavam em imagens “muito estranhas e evocativas”, onde eram “projectados os nossos próprios significados”, pois a banda de som também não era devidamente recebida. Essas tentativas de sintonizar aqueles programas foram, então, o prenúncio de Videodrome e do seu protagonista Max, que se torna obcecado pelos conteúdos “extremos e violentos”, a que acede através de um bizarro sinal de televisão.

O processo de lidar com o comité de censura em The Brood (A Ninhada, 1979) foi também fulcral, pois resultou numa experiência que se revelou chocante e “de forma inesperada, algo de pessoal e íntimo”. Cronenberg enumera as sensações de “humilhação, degradação e violação da intimidade” durante esse período, que apenas pode explicar por uma analogia: “Mandamos o nosso bonito filho para a escola e ele volta no fim do dia com uma mão a menos. Apenas um coto enfaixado. Telefonamos para a escola e eles dizem que pensaram, tendo tudo em consideração, que a criança seria mais socialmente aceite sem aquela mão, pois era uma mão perversa. Seria melhor para todos que fosse removida. Era para o bem de todos”. A censura, da qual o realizador fora vítima, seria, então, em Videodrome um dos sintomas da narrativa, o eixo de uma pesquisa, de uma experiencia científica. Com Videodrome, o realizador pretendia colocar uma hipótese, aferir se um “homem exposto a imagens violentas começaria a alucinar”, e até onde isso o levaria. O filme assume-se uma proposta estética, que questionaria a sugestão de que a violência das imagens resulta na estimulação de acções violentas no espectador, como defendem os censores.

Max Renn (James Woods) é um dos proprietários de um canal de televisão, que difunde conteúdos de violência e soft porno. O “canal que você leva para a cama” é o mote da Civic TV, uma designação que aponta para aquelas emissões uma função de civismo e de pedagogia do público, que nos introduzem à ironia e à transgressão que o filme fornecerá em doses generosas. A primeira sequência em que o protagonista desponta é eficaz na sua caracterização. Max observa fotografias a preto e branco de mulheres asiáticas nuas, enquanto lambe os dedos e a câmara nos mostra as migalhas e os restos do pequeno almoço, numa evidente metáfora para a imundície e a lascívia do personagem e dos conteúdos que o canal projecta. A tecnologia será a porta para as novas imagens que Max procura, que encontram afinidades com as imagens extremas que são uma das características do cinema de Cronenberg. Uma antena parabólica e uma parafernália de dispositivos que um técnico afina, permite a recepção de alguns segundos de imagens no televisor, em que, por entre a falta de definição do conteúdo (similar ao grão do vídeo), duas figuras integralmente cobertas por fatos negros chicoteiam uma mulher colocada à frente de uma parede de barro, que parece viva, orgânica. A tecnologia é, então, a porta para esticar os corredores da moral. É preciso usar descodificadores, como se aquelas imagens estivessem ocultas e fosse preciso interpretá-las, retirá-las de um invólucro, a que se acede por um código a que só alguns têm acesso, como o domínio de uma linguagem peculiar.

A participação de Max numa entrevista na televisão apresentará duas personagens influentes: Nicki Brand (Debbie Harry) e a figura do cientista, Dr. Brian O’Blivion (Jack Creley), encerrado nos ecrãs televisivos. O programa servirá, também o propósito do cineasta, de começar a colocar na boca dos seus personagens as tensões entre o que as imagens propõem e o comportamento dos indivíduos. Max é acossado pela entrevistadora e pelo seu ímpeto censório, que lhe pergunta se o tipo de programas que o canal dele emite não promove um clima social de violência e sexo desviante. O provocador proprietário do Civic TV, responde que o que propõe aos espectadores é um escape inofensivo para as suas fantasias e frustrações e, por isso, entende as suas emissões como um conteúdo que promove uma acção social positiva. A forma como James Woods olha, gesticula, interage e usa os movimentos do corpo é a exteriorização quase exibicionista de um personagem que pretende desafiar os comportamentos, insinuando a ambição de derrubar convenções e constrangimentos morais.

No programa também se anuncia a fusão da realidade com as imagens televisivas. Max voltado para o lado troca umas palavras com Nicki, que interpreta uma vedeta da rádio: a imagem de Cronenberg enquadra Max no estúdio para depois deslizar numa panorâmica que encontra a imagem de Nicki dentro de um televisor, na porta de entrada para o encontro das imagens reais com as imagens dos ecrãs, que a exposição de Max ao sinal do Videodrome acelerará. À critica ao excesso de estímulos (das imagens) que Nicki define como uma malaise do presente, Max inquiria-a quanto ao uso daquele vestido vermelho: sabe o que Freud diria desse vestido? O Professor Brian O’Blivion é apresentado como um profeta da comunicação e profere a primeira das suas declarações, que funcionarão como pressupostos estéticos e ideológicos sobre a difusão das imagens: “O ecrã da televisão tornou-se na retina da visão mental. É por isso que me recuso a aparecer na televisão, excepto através do televisor. O’Blivion não é o meu nome de baptismo. É o meu nome televisivo. E em breve todos teremos nomes especiais, criados para ecoar no tubo catódico”. O cientista apregoa, então, um devaneio que o futuro cumpriu, de criaturas digitais, de duplos dos indivíduos, de novas entidades destinadas a ecoar os nossos desejos, que os jogos e as redes sociais procuram materializar.

Nicki será a parceira eleita por Max na descoberta do Videodrome, da arena das imagens, que se dispõem isentas de narrativa, em apenas um cenário: uma sucessão de registos de comportamentos violentos, imagens de tortura, assassínios e mutilações. A presença de Debbie Harry, vocalista dos Blondie e figura cimeira do media landscape dos anos 70, a dar corpo a uma vedeta de um programa de rádio intitulado Resgate Emocional, intensifica o questionamento dos vários media e dos seus arquétipos. Na exposição ao Videodrome, o comportamento de Nicki sugere um envolvimento superior ao de Max: ela está mais predisposta e mais preparada para lidar com aquelas imagens. Cronenberg sistematiza esta distância entre os personagens ao não os incluir no mesmo quadro enquanto olham o televisor. Antes, na apresentação do Videodrome, enquanto colocava a cassete VHS, Max informara a parceira do conteúdo: imagens de assassínios, violência e tortura; não é exactamente sexo. Nicki com o corpo voltado para a frente, numa demonstração inequívoca de interesse, responde: quem disse? No ecrã do Videodrome, uma mulher é espancada. Nicki pergunta se não é possível dar mais nitidez à imagem. Max responde que é uma imagem pirata, que está codificada, numa das metáforas de Cronenberg, no elogio à capacidade das imagens conterem algo para lá da superfície, que permitem a interpretação do espectador.
Esta sequência assinala também a ambiguidade de Cronenberg, facilitada pelo uso abundante de metáforas e pela caracterização dos personagens, ao evitar ser conclusivo no estabelecimento de uma relação directa, integral e inequívoca, entre os comportamentos dos personagens e as imagens a que são expostos, sugerindo inversões nas relações causa e efeito. O ecrã do Videodrome surge na projecção do par, como sexo expandido: o casal é enquadrado num ângulo e numa escala de disposição dos corpos no quarto em tudo idêntica à utilizada por Cronenberg na cena do casal James-Catherine em Crash (1996), depois da sequência da lavagem automática do Lincoln, com tonalidades também aproximadas da música de Howard Shore. As acções de Nicki e o espanto de Max confirmam que o proprietário do canal de televisão ainda tem comportas neurológicas que é necessário descerrar. Inicialmente um pequeno corte no ombro de Debbie Harry encontra marcas anteriores; na cena seguinte, o rosto e os gemidos de Nicki voltam a combinar a dor com o prazer quando ela se queima no peito com um cigarro, numa das imagens mais discutidas do cinema de Cronenberg e que antagonizaram, a exemplo de filmes anteriores, franjas de certos públicos e da crítica. A obsessão de Cronenberg, como atesta Chris Rodley, “na oposição de masculino e feminino, macho e fêmea”, em que muitas vezes o conceito de fêmea “pode escorregar imperceptivelmente para ‘o outro’ [em Naked Lunch (O Festim Nu, 1991) em ‘não-humano’] confirma a “determinação e o desejo” do cineasta de “ser livre de constrangimentos políticos e considerações na imaginação” das suas vorazes criações femininas.

Cronenberg usa a cena em que Debbie Harry se queima com o cigarro para a comparar com uma tipologia de imagem usada na publicidade: uma mulher em fato de banho sentada em cima de um automóvel. O que os códigos dizem é que essa é uma significação do sucesso: “é o que a mulher pode aspirar”. Para ele, a conotação dessa imagem, o seu eco, é muito mais “insidioso” do que a imagem de Debbie Harry, e a sua representação, em Videodrome. Se uma rapariga de 12 anos vir o seu filme, “talvez fique perturbada”, pois está numa fase em pode sentir “atração e repulsa” pela própria sexualidade, mas a cena não induz “nenhuma mensagem evidente” que fará aquela rapariga assimilar aquela acção e replicá-la no “seu comportamento quando for uma mulher madura”. O cineasta quando escreve um guião, “acredita que deve ter toda a liberdade para criar um personagem que não é suposto representar todos os personagens”, por isso, quando inclui uma personagem feminina no seu filme, ela “não representa todas as mulheres”. Presumir que ao “mostrar Debbie Harry como um personagem que queima os seus seios com cigarros” significa que o realizador “está a sugerir que todas as mulheres querem queimar os seios com cigarros” é “infantil” e, por isso, impor limites e directrizes a todos os personagens e às suas acções é “obsceno, um inferno kafkiano”.
Uma das interpretações mais repisadas dos seus filmes, é que “ele tem um receio inconsciente das mulheres”. Atendendo a que ele é um homem norte-americano, o cineasta não tem para isso uma posição definitiva, na difícil aferição do que é “consciente ou inconsciente”, embora concorde que isso possa ser “discutido” e “talvez desacreditado”. No entanto, não encontra nessa análise qualquer interesse. Sendo masculino, “as suas fantasias e o seu inconsciente são naturalmente masculinos”. Apesar de supor que permite uma “expressão da sua parte feminina”, ele é “basicamente um heterossexual masculino”. Portanto, se ele “se soltar das fronteiras sociais” e aspirar a um retrato de uma sexualidade “insana” e em “grande medida amoral”, enveredando por exemplo “por cenas de tortura e bondage”, ele retratará “uma mulher ao invés de um homem”. Cronenberg sente uma grande afinidade com Burroughs e uma profunda admiração pela sua Literatura e por isso adaptou Naked Lunch. Mas assume que não consegue estar completamente alinhado com Burroughs, porque a homossexualidade do escritor impele que a “escrita das suas mais densas fantasias envolvam a sodomia de jovens rapazes”. Cronenberg relaciona-se fortemente com isso, mas se “fantasiasse algo similar” colocaria um “parasita a sair de um dreno e a atacar uma mulher, não um homem”. Releva apenas a sua orientação sexual e vê-lo como um acto político é errado, pois não encontra “nenhuma razão para atribuir o mesmo espaço a todas as fantasias, quer sejam dele ou não”. Por isso, denuncia a politização destas escolhas como uma forma de censura, “em que os significados” das imagens são “retorcidos”, atribuindo-lhes erroneamente “julgamentos de valor”.


Nicki pretende demonstrar que está preparada para ingressar no Videodrome e Max procura contê-la, mas a argumentação dos dois coloca o programa de televisão numa zona que remete para o limbo do território da Freeland de Burroughs em Naked Lunch. Durante o sexo, a mente alucinada de Max deambula pela sala de tortura do Videodrome, que a imagem de Cronenberg devolve vazia e disponível para preencher com os desejos dele. No final da sequência, Nicki começa a baixar o soutien e entrega o cigarro a Max. É apenas sugerido que Max replicará o gesto da companheira: Cronenberg demonstra que apenas utiliza imagens extremas quando necessário. Max reencontrará Nicki em imagens do Videodrome, em raccords entre violência (e morte) e o desejo sexual: a princípio, uma boca que ocupa todo o ecrã; depois, o televisor a mudar de forma, como um tecido orgânico que se dilata, onde Max enfia a cabeça, enquanto acaricia a imagem, para depois penetrar o ecrã e a boca como um falo que se expande numa vulva.
As alucinações e a investigação das origens do Videodrome encaminham Max para O’Blivion e para a sua Missão do Raio Catódico, uma comunidade na clandestinidade, que Bianca (Sonja Smits), filha do cientista, dirá que é constituída por indigentes que padecem de uma doença causada por falta de acesso ao tubo de raios catódicos: voltar a ver televisão irá devolvê-los à mesa de montagem do mundo. É um armazém de dimensões generosas, com cabines compartimentadas por pedaços toscos de madeira, para alojar no seu interior um ecrã de televisão e um espectador. No entanto, esta Missão é de estatuto de difícil definição para o espectador, que desconfia da entrega de refeições aos utilizadores, como se fosse uma variante da “sopa dos pobres”, um engodo para fazer deles cobaias (“agarrados aos ecrãs”) para as experiências de O’Blivion. Esta visita também permite intuir que o Videodrome é um conteúdo político, uma filosofia com difusão por aquele sinal.


As mensagens de O’Blivion, ditames estéticos que fazem avançar a narrativa, chegam a Max através de cassetes VHS que se expandem como se fossem matéria orgânica, uma matéria de sensações que produz suspiros e gemidos, a exteriorizar nas imagens os enigmas da psique: “A luta pela mente norte-americana será travada na arena do vídeo, no Videodrome. O ecrã de televisão torna-se na retina da visão mental. Por isso, o ecrã faz parte da estrutura física do cérebro. Portanto, tudo o que aparece no ecrã de televisão emerge como uma experiência em bruto para quem a vê. E assim, a televisão é a realidade e a realidade é inferior à televisão”.
O’Blivion assumirá a figura do cientista alienado e confessional ao revelar a Max que a sua realidade se encontra em mutação acelerada para a alucinação e que terá em breve de aprender a viver num estranho novo mundo, a exemplo do que Nola, a protagonista transformada em mulher-cadela de The Brood, revelou ao marido. Numa tradução das habituais metamorfoses inscritas na obra de Cronenberg, o cientista fala-lhe em visões que num processo de fusão criaram carne incontrolável, um tumor, um cancro criativo: Videodrome. Este pulsante pedacinho de carne, como o designou o cientista, não se trata de um tumor descontrolado, mas antes um novo órgão, um novo segmento do cérebro, capaz de induzir a alucinação e alterar a realidade humana. E conclui: Afinal, nada de real existe fora da percepção da realidade, ou não?


Chris Rodley afirma que Cronenberg tentou algo novo em Videodrome que replicaria em Naked Lunch: “um filme que desliza, de forma não anunciada, para as alucinações do protagonista”. Videodrome alinha, então, na percepção do protagonista, na perda de “qualquer sentido de realidade” e de “aptidão para controlar a sua situação”, “num implacável ponto de vista na primeira pessoa, do qual nunca se regressa”. Cronenberg confirma que pretendeu trabalhar o cruzamento da percepção e de um ponto de vista externo: “A nossa percepção pessoal da realidade é a única que aceitamos. Mesmo estando a enlouquecer, é ainda a nossa realidade. Mas a mesma coisa, vista de uma perspectiva exterior, é uma pessoa a agir de forma insana”. O cineasta diz que há algo “oculto” em Max, a sua “melancolia”, pois ele vive ainda um estado de “confiança” e jovialidade. No entanto, o personagem é forçado a lidar com “algo estranho”, uma transformação para a qual a sua eloquência não é resolução, pelo que precisa de se reenquadrar. Passa, então, por um processo em que tem de se “retorcer em alucinações” para lidar com aquilo e “manipular uma nova realidade”, na “procura de um novo equilíbrio”. Cronenberg exemplifica com pessoas sujeitas a encarceramento e a torturas físicas ou psicológicas que, devido a um talento inacto do humano, “estão constantemente a procurar reequilibrar-se”.
O’Blivion ambicionava que a difusão do Videodrome concretizaria a primeira fase da evolução do Homem como animal tecnológico. Mas os seus sócios capturaram o programa e liquidaram o cientista. Bianca confessa que o profeta da comunicação passou a viver nos milhares de cassetes VHS que gravou e que, assim, terá superado a morte, numa possível resolução do cisma cartesiano, na prossecução de uma vida mental após o colapso do corpo. Enquanto escuta O’Blivion, a carne de Max transforma-se e no seu ventre abre-se pela primeira vez uma fenda, uma espécie de vagina profunda onde ele há-de enterrar uma arma de fogo, em mais uma metáfora que associa o sexo à violência. É uma das imagens extremas de Cronenberg na fusão do metal com orgânico, que teve um preliminar: Max a acariciar o ventre com a arma, como uma preparação para a penetração da carne. Uma “vagina imaginária”, como a designou Chris Rodley, para se “ligar aos pénis de Nicki e Bianca”, como sucedera em Rabid (Coma Profundo, 1977), na seringa que despontava no sovaco de Marilyn Chambers para permitir a invasão dos hospedeiros.
A organização que tomou posse do Videodrome é apresentada na segunda metade do filme. A Spectacular Optical tem como slogan “manter o mundo debaixo de olho”, o que aponta para uma espécie de big brother global, que produz óculos baratos para os países do terceiro mundo e sistemas de orientação de mísseis para a NATO. É uma corporação com evidentes afinidades com a de Scanners (1981), que ambicionava usar humanos com poderes telepáticos como uma arma de guerra. Liderada por Barry Convex (Leslie Carlson), a empresa diz pretender fazer do Videodrome uma fábrica de alucinações gigante, uma emissão que abre os receptores do cérebro e da coluna vertebral e permite a absorção do sinal; mas, ao espectador será revelado como um instrumento exposto na grande metáfora do filme: a censura. Max ascende de cobaia do Videodrome a ferramenta programada para a sua sombria expansão: o seu abdómen será invadido pela cassete VHS introduzida por Convex. A corporação, que mais uma vez trai o progresso cientifico, pretende tomar o canal 83 de Max e usá-lo para difundir o sinal do Videodrome. Para Convex, as emissões do Civic TV, a violência e o porno, são exemplares: estão a fazer os espectadores apodrecer pelo interior. O objectivo, então, da corporação é usar o Videodrome como arma de purificação dos espectadores da América, numa clara representação do puritanismo e dos censores.


Cronenberg usa o exemplo do massacre concretizado pelo bando de Charles Manson, que “encontrou uma mensagem” numa letra dos Beatles que “lhe dizia o que ele deveria fazer e porque deveria matar”. Os seres humanos, incluindo as crianças, desenvolvem de forma inacta o reconhecimento da distância entre realidade e fantasia, por isso “suprimir tudo que pensamos enquadrar um potencial perigo”, não iria “prevenir um verdadeiro psicótico de encontrar algo que iria acionar a sua própria psicose”. Para o cineasta, “os censores tendem a fazer o que os psicóticos fazem: confundir realidade com ilusão”. Os censores, para além de não perceberem como funcionamos, de revelarem “medo e desconfiança da natureza humana”, também não entendem o “processo criativo”: a “função social da arte” e a sua “expressão”. Pressente que o futuro trará sociedades menos livres, mais subordinadas aos movimentos censórios. Por isso, o cineasta tem sido muito activo na resistência às “tentativas de incrementar a censura no Canadá. Exemplifica com o depoimento da escritora Margaret Atwood que o “perturbou”: a Literatura não deve ser censurada, ao contrário do Cinema. Cronenberg pensa que isso se deve à acessibilidade e à potência dos filmes: o que é “impotente pode ter liberdade”, enquanto que o que é “poderoso deve ser controlado e mutilado”.
A narrativa de Videodrome, na exposição do protagonista “a imagens violentas através de uma cassete de vídeo e de sinais de transmissão de televisão”, e o efeito dessas emissões “no seu sentido da realidade”, não poderia ter sido mais “profético”, como assinalou Chris Rodley. Três anos depois da estreia do filme, foi introduzido na Grã-Bretanha o Video Recording Bill. Essas primeiras versões de home-video introduziram a noção de “video nasty”, com a disponibilidade, entre os vários géneros e de várias nacionalidades, de conteúdos violentos, onde se incluíam os “infames” The Driller Killer (1979), SS Experiment Love Camp (O Campo Nazi do Amor, 1976) ou I Spit on Your Grave (Mulher Violada, 1978). O formato VHS auferiu de um súbito estatuto de popularidade, com cerca de 30% das residências da Grã-Bretanha a possuírem leitor e gravador de vídeo (nos EUA, a percentagem estava próximo de 20%). Foi uma forma de libertação “em massa” de uma grande diversidade de títulos (não apenas recentes), onde o género de terror conquistou um estatuto de particular predilecção, também responsável pela introdução da censura e da classificação de videogramas de utilização domiciliária na Grã-Bretanha. A justificação foi de que “as crianças poderiam estar a ver”.
Cronenberg também dissertou em volta da censura no VHS, enquanto movimento opressor da liberdade dos cidadãos no seu ambiente mais intimo: a residência. Na opinião do cineasta, o VHS tornou-se a “liberdade da imagem”, atendendo a que os leitores de vídeo permitiam “liberdade para gravar, alterar, montar, congelar o plano e voltar a ver” as imagens inúmeras vezes. Por isso, não o surpreendeu que os censores olhassem para o “vídeo como a maior ameaça tecnológica alguma vez desenvolvida” e voltassem o “foco para o que estava a acontecer em casa”, que se trata do lugar “onde nunca deveria haver lugar para a censura”. Considera que há uma “vaga de medo” inerente ao “controlo das imagens” e exemplifica na possibilidade de “ler Naked Lunch às nossas crianças durante o pequeno-almoço”, que representa “uma completa reversão no que podemos pensar que é adequado”. Se como parte de um sistema de partilha de liberdades e garantias, atribuímos ao individuo como “ser humano responsável”, o “direito de votar”, de “se alistar no exército”, onde poderá matar, então essa pessoa está também “habilitada a educar uma criança” e por consequência a conduzi-la na relação com as imagens. Se, por outro lado, transferirmos demasiado peso para as estruturas socias, tenderemos a adoptar uma “via paternalista”, a julgar os cidadãos como um “grupo de idiotas” ou de “perigosos hooligans”, que necessitam de ser “controlados, estruturados e aprisionados”. Na sequência disso, despontam os censores, que começam “a banir, a censurar, a restringir”.
O cineasta distingue claramente a legitimidade da classificação atribuída aos filmes quando comparada com a censura. Trata-se, enfim, “de uma sugestão ao invés da lei”. Julga que é “incompreensível” alguém dizer-lhe se ele pode ou não ver um filme ou uma parte dele, que afronta a “total liberdade de expressão” da qual ele não abdica. Exemplifica com a “imagem de um homem a chicotear uma mulher”. A censura torna-se “polícia das imagens” ao impor a exclusão de uma imagem, dispensando o “contexto da imagem”, pois essa sequência poderia ser mostrada “de forma a que o público compreendesse” que se tratava de “um jogo entre dois amantes, que estavam juntos há 40 anos e tinham 20 filhos”. Trata-se da “crença” pueril de que “uma imagem pode matar”, em que a “mera sugestão de masoquismo” num filme irá “acionar massas de psicóticos a fazer coisas que eles nunca fariam se não tivessem sido expostos a essas imagens”.
As alucinações de Max no terceiro acto de Videodrome deixam de ter um contra-campo realista e veremos a fusão da tecnologia na mutação do humano, na acoplagem da mão com a arma revestida de um líquido viscoso que o protagonista recolhera do seu abdómen, naquela cicatriz aberta. Também os ecrãs se tornam orgânicos e testemunhas da víscera. Mas será a penetração de Bianca, com uma cassete VHS que reprogramará Max, que iniciará o processo de transformação e fará do protagonista a génese da palavra vídeo feita carne, no começo da destruição do Videodrome. Esta alteração vai incluir as acções de Max na comunidade rebelde, no espírito do legado de O’Blivion, e vai entregá-lo à solidão, uma das características dos protagonistas de Cronenberg. Max será, então, um herói particular, o defensor das imagens extremas, o adversário de quem etiqueta os receptores dessas imagens como meras mentes sórdidas que é necessário suprimir, higienizar. Devolvido à importância do orgânico, refugiado num velho barco, num estaleiro abandonado, um lugar obsoleto e despido de tecnologia, Max seguirá a instrução das imagens benignas e compreenderá que a morte, o colapso do corpo, não é o fim: é preciso matar a carne antiga, investir numa transformação total, para o despontar da nova carne.
