De universais, têm muito. De decifráveis, muito têm. Psicologicamente e sociologicamente, é impressionante a forma como ouvimos, lemos e escrevemos sobre emoções e sentimentos e, de imediato, associamo-los a ideias e significados formulados com base nas nossas vivências e experiências, assim sedimentados na nossa paisagem mental e emocional ao longo do tempo. Desde muito cedo, no processo de crescimento, enquanto crianças – ausentes da plena capacidade de consciência e de discernimento –, uma “esponja” cola-se ao nosso corpo e absorve e assimila o que nos rodeia. Mais tarde, aprendemos que os ensinamentos podem ser perpetuados ou, pelo contrário, reversíveis e desconstruídos. Mas nessa passagem, nesse entretanto, os danos ocorreram e muros foram erguidos – assim como o vidro do copo que se cola depois de partido e os fragmentos da folha de papel que se unem depois de rasgados. Partimos assim para Dalva (O Amor Segundo Dalva, 2022), a primeira longa-metragem de Emmanuelle Nicot, estreada mundialmente no Festival de Cannes – onde arrecadou o Prémio FIPRESCI e o Prémio Revelação na secção Semana da Crítica – e que chega agora às salas portuguesas.
“Eu não sou uma menina. Sou uma mulher”: de batom nos lábios, rímel nos olhos, coque no cabelo, brincos de pérolas nas orelhas e vestuário de jovem-adulta, Dalva, de 12 anos, apresenta-se ao “mundo” desta forma. Na abertura dos créditos, ouvimo-la a ecoar o nome “Jacques” e Jacques a chamar por Dalva, enquanto procuram libertar-se dos braços dos agentes da polícia que, naquela noite, por força da denúncia apresentada pelos vizinhos, entram em casa onde o pai e a filha vivem. A finalidade? Deter Jacques e levar Dalva para um centro de acolhimento de menores. Revoltada, sem entender o aparato, a iminência do perigo e a necessidade de ser protegida, a pequena jovem recusa as acusações de rapto parental e incesto dirigidas ao pai. Um diálogo entre Dalva e a psicóloga evidencia o problema:
“- Quem disse que um pai e uma filha não se podem amar?
– Um pai e uma filha podem partilhar mútuo afeto, mas não podem partilhar a sexualidade.
– E se o pai o fizer para a proteger?
– Proteger de quem?
– Dos outros. Daqueles que não sabem como o fazer.
– Fazer o quê?
– O amor.
– Dalva, existe alguma diferença para ti entre amar e fazer amor?
– Não. Quando uma mulher ama, ela deve saber como fazer amor.”
A partir da relação paternal disruptiva e disfuncional, a câmara de Nicot concentra-se na intenção notável de captar a vítima como detentora de uma profunda ingenuidade, que vislumbra e vive o amor de uma forma ignorantemente abusiva, assim como o pai lhe havia mostrado. O medo, a desconfiança e a insegurança, que poderiam encontrar em Dalva uma fiel companheira, nunca se instalaram no seu corpo e cabeça porque esta nunca conheceu outra realidade se não aquela – lembremo-nos, pois, que o isolamento, a inexistência de relacionamentos familiares e sociais e a ausência de sinais de alerta exteriores contribuiram para a normalização da relação por parte de Dalva. Intenção notável, como dizia, por tendencialmente nos debatermos com casos de vítimas que se encontram inseridas em ciclos de violência que parecem não ter fim, ora porque o perpetrador cria condições para não ser abandonado, ora porque o perpetrado, por variadas razões, não consegue abandonar. No entanto, nesses contextos, contrariamente a Dalva, existe a perceção da fragilidade e do crime hediondo, assim como a capacidade de procurar resistir.
Sentimos o pulsar da respiração de Dalva e seguimos o movimento da sua mão que, em busca de oferecer e receber conforto, repousa na da mãe. Assim como o vidro do copo que se cola depois de partido e os fragmentos da folha de papel que se unem depois de rasgados, os pedaços do coração de Dalva serão duramente e ternamente reparados.
Durante a estadia no centro de acolhimento, Dalva é acompanhada por assistentes sociais e amigos da sua faixa-etária (Jayden e Samia, respetivamente) que, enquanto fortes redes de apoio, ajudam-na a romper com os padrões aos quais se havia moldado, instruem-na sobre a definição de afeto, e ensinam-na a ser uma jovem de 12 anos – com todos os avanços e recuos, frustrações e conquistas inerentes aos processos de recuperação, reconstrução e reintegração, aqui retratados na porção certa pela cineasta francesa. Retratados na porção certa e com a sensibilidade apurada ao abordar uma temática controversa com uma dose de delicadeza: note-se a relevância contida nas cenas implícitas, propositadamente ocultadas ao olhar do espetador (como a omissão dos atos incestuosos); o ponto de equilíbrio alcançado entre a revelação da narrativa perturbadora sem entrar no território da artificialidade e excentricidade para acentuar o drama; sem esquecer, ainda, a leveza em contrabalançar a tragédia com a esperança e a partilha, provenientes das crianças que se encontram no centro de acolhimento e que também experienciaram traumas familiares.
Filmado no rácio 1:1.33, a compressão do enquadramento convida-nos para uma atmosfera intimista e uma sensação de isolamento e repressão. Os close-ups veem o seu foco e dimensão a serem maximizados, puxando o espetador para dentro do ecrã e guiando-o sempre a partir dos passos e do ponto de vista de Dalva, acompanhando a observação e a leitura do ambiente que a rodeia. Um desses momentos – contemplado numa das cenas mais marcantes do filme – diz respeito ao encontro na prisão entre a protagonista e o pai. Numa sala restringida à presença de figuras de autoridade, Dalva entra vestida com um casaco desportivo cor-de-rosa oversized que vestia no centro de acolhimento, e despe-o assim que o pai chega, revelando um elegante vestido azul, semelhantes aqueles que costumava usar em casa para o impressionar. Dalva confessa-lhe as mentiras que considera que lhe estão a ser contadas: a forma inapropriada como se veste para a sua idade e o facto do pai ser acusado de pedofilia, “mascarando-a” de mulher apenas para satisfazer os próprios desejos sexuais. “Eu digo-lhes que não fizeste nada, que nunca me forçaste a nada, mas ninguém me ouve”, diz Dalva. O olhar de humilhação e ressentimento de Jacques acompanha a confirmação de que tudo o que Dalva ouviu por parte das figuras de autoridade era verdade. O pai abandona a sala e a jovem fica imobilizada, no vazio e no silêncio, a absorver a transformação do entusiasmo e do alívio iniciais para a inquietação e o desgosto que a própria não desejaria, nem adivinharia, conhecer.
Se nas linhas acima enaltecia as cenas implícitas, propositadamente omitidas e invisíveis ao olhar do espetador, parece-me que o final do filme – sensivelmente os quinze minutos que lhe restam – caiu na brevidade e instantaneidade. Condensa momentos relevantes que poderiam ter tido um enfoque mais acentuado e cuidado, a saber: as ações que mostram o progresso mais significativo de Dalva, o seu reencontro pacífico com a mãe, Marina – com quem havia sido privada de conviver – e o julgamento do pai. De qualquer modo, não poderia deixar de enfatizar a última cena: em tribunal, Dalva e Marina, sentadas lado a lado, fitam Jacques à distância. Numa descarga emocional, sentimos o pulsar da respiração de Dalva e seguimos o movimento da sua mão que, em busca de oferecer e receber conforto, repousa na da mãe. Assim como o vidro do copo que se cola depois de partido e os fragmentos da folha de papel que se unem depois de rasgados, os pedaços do coração de Dalva serão duramente e ternamente reparados. A infância, essa, é irrecuperável e declarada como perdida.
★★★☆☆