O que pode um realizador pedir a uma actor como Nicholas Cage que, nos últimos anos, tem desaparecido nas suas dezenas de personagens, uma espécie de actor-fluxo que resiste ao formato e à gravitas da “boa prestação”, um corpo-encarnação plástico de um multiverso avant la lettre que faz grudar, como possibilidades de cinema, o exploitation ao trágico, o familiar ao bizarro? A resposta é, aparentemente, tudo.
O norueguês Kristoffer Borgli apenas pretende que o protagonista do seu filme, um professor de biologia evolutiva, seja um chato, um secundário sem sal no desenrolar de um quotidiano para todos excitante menos para si. Mas como fazer de Nicholas Cage um homem aborrecido? Só Nicholas Cage tem essa resposta: uma careca e nariz protuberante, uma forma de falar ligeiramente aguda e anasalada e um pensamento especulativo, hesitante e por vezes ingénuo. O segundo pedido de Borgli a Cage para este seu Dream Scenario (O Homem dos Teus Sonhos, 2023), era bem mais fácil. Pedir a um homem que é já um mito da cultura cinéfila popular ocidental que não aparecesse “apenas” nos sonhos e imaginários dos espectadores dos seus filmes, mas que passasse também a fazê-lo no enredo do seu filme.
O resultado desta união criativa entre Borgli e Cage não deixa de ter um interesse simbólico. O filme anterior do realizador, Syk pike (Farta de Mim Mesma, 2022), comédia negra e ácida ao jeito nórdico, já se interessava pela questão da atenção, do reconhecimento e da fama. Neste filme, uma jovem começa a tomar secretamente medicamentos ilegais que destruíam o seu corpo apenas para ganhar a competição pela atenção que as pessoas começavam a dar ao trabalho artístico do seu namorado. Uma alegoria de uma cultura narcisista da fama artificial e efémera das redes sociais. Na passagem aos Estados-Unidos, naquela que é a terceira longa de Borgli, mas o primeiro filme do lado de lá do Atlântico, a premissa suaviza-se um pouco. Um professor, ansioso por um maior reconhecimento científico do seu trabalho, encontra subitamente a fama ao começar a surgir nos sonhos de toda a gente.
O problema principal de Dream Scenario é que quer a abordagem ao sonho molhado do capitalismo (a conquista e product placement dos sonhos como espaço de rentabilização) quer, sobretudo, a lógica da política de cancelamento, surgem como chaves de abertura do enigma da fantasia surreal relativamente cedo no filme.
A simbologia da união de realizador e actor que mencionava prende-se com o facto de Kristoffer Borgli, nessa passagem à América, também ele desejar encontrar uma voz mais centralizada, um espaço num imaginário mainstream. E de essa procura se fazer com a colaboração de alguém como Cage que, qual pára-raios, chama a atenção sobre os projectos com os quais se envolve ao ponto de podermos levantar a questão que o próprio filme evoca: quem é o verdadeiro protagonista (o culpado) dos sonhos em que surge o nosso tímido professor? Ou postas as coisas ao inverso, Dream Scenario é um sonho de Cage (A24/Ari Aster como co-produtor) em que Borgli empresta o seu scenario?; ou, inversamente, é o actor americano o veículo nerd de uma versão mais digerível dessas patologias do protagonismo que o realizador quer considerar?
Dada essa afinidade temática é interessante pensar Syk pike e Dream Scenario lado-a-lado. O primeiro é uma comédia de terror que funciona bem como filme de enredo. Ou seja, a premissa esgota-se apenas perto do fim e só aí é que nasce para o espectador a vitalidade do comentário alegórico. Em suma, parece um filme mais radical na sua capacidade de provocar desconforto. Já Dream Scenario surge acolchoado por uma série de outras referências: desde logo, a própria encarnação da neurose criativa do argumentista Charlie Kaufman que Nicholas Cage interpretou há mais de vinte anos em Adaptation (Inadaptado, 2002), de Spike Jonze; mas também a vaga surrealidade intelectual de Woody Allen [em particular Oedipus Wrecks segmento de New York Stories (1989), The Purple Rose of Cairo (1985) ou Hollywood Ending (2002)]; ou ainda, porque não dizê-lo, a tentação nolaniana de arranjo e branding onírico [Inception (A Origem, 2010)].
O problema principal de Dream Scenario é que quer a abordagem ao sonho molhado do capitalismo (a conquista e product placement dos sonhos como espaço de rentabilização) quer, sobretudo, a lógica da política de cancelamento (quando a testemunha passiva reclama nos sonhos dos outros o seu sonho de um protagonismo mais activo), surgem como chaves de abertura do enigma da fantasia surreal relativamente cedo no filme. E depois para onde ir, além de tirar as conclusões do já exposto? Talvez por isso me parece que enquanto Syk pike corta mais a fundo no olho do cão andaluz, Dream Scenario é mais o desejo de extrair com as metafóricas navalhas de Freddy Krueger o entretenimento de uma boa e cómoda sessão colectiva de psicanálise dos nossos desejos oníricos de reconhecimento.
★★☆☆☆