Revolution is not a one time event.
Audre Lorde, Sister Outsider
Lizzie Borden não faz cinema há 30 anos, mas os seus filmes nunca estiveram tão vivos como agora. E pouco isto está relacionado com o facto de continuarem, ou aliás, de serem ainda mais relevantes nos tempos em que vivemos – chega a ser um cliché ter que o escrever. São filmes prescientes, sim, mas sobre o futuro que continua a ser o mesmo há muito (demasiado) tempo. O tratamento sempre acolhedor da Criterion Collection, que colocou nos últimos anos o seu trabalho na boca de uma outra geração que não a conhecia parece ter impulsionado, directa ou indirectamente, a curadoria do filme no Batalha Centro de Cinema, exibindo-o agora também a Cinemateca aquando das suas sessões tão amadas de verão na Esplanada, no âmbito dos 50 anos do 25 de Abril. Nada podia ser mais certeiro. Não só são as obras de Borden objectos que visam mudar o mundo num outro mais atento, e por isso mais radical e igualitário, mas também porque, e Born in Flames (1983) em especial, são obras que redirecionam a própria noção do que o cinema pode ser, preconizados por uma resistência pós-punk muito Godardiana.
Já tão correcto tinha estado Jonathan Rosenbaum sobre Regrouping (1976), o primeiro filme de Borden, quando este se estreou no festival de Edimburgo, chamando-o de um “trabalho-em-progresso” permanente que nunca é resolvido ou concluído”. Assim continuou a trilogia feminista Nova-Iorquina de Borden. Do rascunho de um documentário experimental a preto-e-branco sobre as possibilidades da acção colectiva dentro da segunda onda do movimento feminista que é Regrouping, para uma versão mais empanturrada em Born in Flames, que parte da call to arms documental da mulher negra para alcançar o feminismo interseccional pós-linguagem, a acabar com Working Girls (1986) que especifica a experiência revolucionária de agitação pop num lugar real e extralinguístico, observando a vida das mulheres de forma honesta e sem adornos (inspirado por muitas daquelas mulheres que se podem ver em Born in Flames) -, temos perante nós um corpo fílmico ancorado na política do tempo (é tanto cápsula do tempo como profecia) sobre um mundo ferido por uma crise global que se mantém quatro décadas depois e agora, à beira do abismo, procede a marcha entrelaçado numa incerteza crónica. Dessa violência, renasce a sedução da urgência e do dinamismo tão feroz que vem a definir Born in Flames, filme que combina a suspensão húmida de uma onda de calor numa Nova Iorque ainda deteriorada de Vivienne Dick e Susan Seidelman (No Wave), e o toque gélido a aço do cinema de Samuel Fuller [em Shock Corridor (O Corredor do Silêncio, 1963), por exemplo].
Born in Flames, filme que combina a suspensão húmida de uma onda de calor numa Nova Iorque ainda deteriorada de Vivienne Dick e Susan Seidelman (No Wave), e o toque gélido a aço do cinema de Samuel Fuller. Não é ficção científica. É uma realidade fantasiada, e assim texturizada, criada num lugar no tempo sobre um momento que até agora não se extinguiu.
“Terroristas ou revolucionárias?”, lê-se numa capa de jornal em Born in Flames. Não é uma pergunta. Borden sabe que só há uma maneira de avançar com o mundo e é levando-o às costas. “Temos direito à violência. Todas as pessoas oprimidas têm direito à violência.”, ouve-se também. Não há muito cinema que ergue o feminismo terrorista que se quer e se precisa. E essa será sempre a melhor forma de descrever Born in Flames, cujo nome parte do single de 1980 de Red Krayola, escrito por Mayo Thompson. É cinema-megafone que evolui, com muita surpresa, para cocktail Molotov, guiado pelo poder inegável da grua de construção que é The All-Around Reduced Personality: Outtakes (1978) de Helke Sander, com o qual faz um par distópico e franco. “Confirma de vez que o feminismo é partir através da união.”, escrevia eu aqui sobre o filme em 2022. Também Borden quer partir. Onde se é verdadeiro, parte-se. E enquanto que com Sander ainda havia ternura no pedido através de um Eu mais especificado e conversas sobre que edifícios derrubar, os tais danos de quinhentos ratos de que Born in Flames nos fala, com Borden há a possibilidade da pluralidade, um único leão – para lá de etnia, classe e orientação sexual – e uma recriação do mundo que o filme habita numa América do Norte dez anos depois de uma guerra que se fez revolução social-democrata. Não é o filme que é projectado, é ele que se auto-projecta e é nele que reside a sabedoria e o conhecimento do que aí vem. E que mundo este! A revolução feita a partir dos meios de comunicação são o ponto de partida das rádios pirata que se defrontam (Isabel, uma mulher caucasiana na Radio Ragazza vs. Honey, uma mulher negra no comando da Phoenix Radio) enquanto no centro de tudo, procura-se resposta para o assassinato da fundadora negra do Women’s Army, Adelaide Norris. Há um exército que se move pela cidade de bicicleta a travar o assédio sistémico contra as mulheres e mulheres que denunciam a identidade de homens abusadores, colando cartazes com a sua identificação nas ruas da cidade (não muito diferente de pedirem recompensa pelos seus corpos vivos, como seria no velho oeste do Western Americano).
Que mundo imaginado! Que provocação imagética tão deliciosa! E ao contrário do que pensava, é semelhante mas não é o nosso universo em 2024. Um mundo parecido ao nosso seria um onde existe mais indiferença e conformismo do que subversão ou rebeldia, e onde as rebeliões, pequenas ou grandes, existem sem nunca se manifestarem de forma prática. Born in Flames é cinético e imagina um mundo ficcional numa Nova Iorque alternativa pré-gentrificação, filmada exactamente como é, onde o governo se congratula pelo seu progressismo, mas onde a desigualdade prevalece, e um grupo de mulheres se junta para liderar o mundo em que vive, desenvolvendo actos directos e violentos contra o governo (o filme dará por concluído com o maior de todos) que não está atento ao desequilíbrio social. Sob o signo do fim da desigualdade, violência de género, abuso sexual e policial, direitos laborais e reprodutivos, homo e transfobia e racismo, Born in Flames representa esteticamente aquilo que afirma ser. Não é ficção científica. É uma realidade fantasiada, e assim texturizada, criada num lugar no tempo sobre um momento que até agora não se extinguiu.
Não é o filme que é projectado, é ele que se auto-projecta e é nele que reside a sabedoria e o conhecimento do que aí vem. Ver Born in Flames a acontecer à nossa frente é ver alguém falar directamente connosco sobre nós, uma voz que se estaciona dentro da nossa cabeça, enquanto questiona no processo a pluralidade e a divisão do feminismo – as várias camadas, diferentes metas, e vincadas (vimos a descobrir) incoerências -, necessárias para localizar o seu lugar de pertença.
Criada a partir de uma colcha de retalhos documentais em 16mm de relatórios do FBI, transmissões televisivas, emissões de rádio, imagens de vigilância à qual se junta uma narrativa ficcional que observa e reporta as várias injustiças que atormentam uma sociedade após a sua revolução socialista, supostamente livre de opressão (então o que é o capitalismo?), o filme interrompe-se constantemente com vista a chegar a um lugar comum. O documentário é tão fantasiado quanto a revolução à esquerda que ali aconteceu. As mulheres continuam a ser silenciadas, particularmente as da classe trabalhadora e negras ou aquelas com trabalhos socialmente concebidos como masculinos (como é o caso da construção civil) e a tendência continua a ser culpar os que habitam as margens da sociedade por todos os seus infortúnios. As sobreposições entre imagens (uma mulher embala frango, uma mulher coloca um preservativo num pénis e logo a seguir outra mulher lava louça e tudo ao som da música chilly-picada que é Born in Flames) falam mais alto sobre estas inconsistências.
Politicamente divididas mas a sofrer de igual forma, as mulheres que vimos a conhecer em Born in Flames nos seus discursos improvisados e incendiários (palavras daquelas mulheres e não de Borden), são tão reais quanto a feitura do filme, envolto num sistema de produção de tal forma independente que é considerado ser de guerrilha. Cada sequência e plano era como que roubado da vida real para a câmara sem autorização e sem fazer parte de uma produção propriamente dita (Borden tinha uma câmara no seu carro e sempre que via alguma coisa que lhe interessava na rua ia filmar) com actrizes não-profissionais, uma delas uma advogada de direitos cívicos na vida real, Florynce Kennedy, que ajudava as mulheres a lutar pelo seu direito à escolha.
Isso poderia dizer-nos tudo o que precisamos sobre o filme. Mas ver Born in Flames a acontecer à nossa frente é ver alguém falar directamente connosco sobre nós, uma voz que se estaciona dentro da nossa cabeça, enquanto questiona no processo a pluralidade e a divisão do feminismo – as várias camadas, diferentes metas, e vincadas (vimos a descobrir) incoerências -, necessárias para localizar o seu lugar de pertença. Borden sabe que a conspiração contra o mundo em nada ajuda. Anos mais tarde, em 1989, a palavra ‘interseccionalidade’ seria cunhada por Kimberlé Crenshaw, tornando mais exacto o desenho que a realizadora Americana aqui faz, e em direcção à qual continua a haver tanto trabalho para fazer. Enquanto a trilogia coloca em cima da mesa as várias negociações e estratégias do que existe para ser feito e como poderá isso acontecer, apresenta-se cinematicamente a exploração do poder da sororidade que leva a cabo a verdadeira revolução. Porque estava à procura disso mesmo quando era mais jovem, Borden rejeita o mundo onde se encontrava (escrevia para a imprensa sobre arte moderna, onde o domínio era muito masculino e elitista) e cria a sua versão do que o cinema pode ser: o confronto e a política sem a explanação. Em última análise, ela cria o que o filme nem seja a sugerir. Born in Flames enquanto acto de violência, o derradeiro instrumento que ajuda a reavivar a luta sempre que esta desapareça por momentos dentro das pessoas, e pela linha de tempo fora.
Born in Flames será exibido hoje na esplanada da Cinemateca às 21h45.