Furiosa: A Mad Max Saga (Furiosa: Uma Saga Mad Max, George Miller, 2024) é um artefacto estranho. O ponto de partida é Mad Max: Fury Road (Mad Max: Estrada da Fúria, George Miller, 2015) e uma das personagens principais, Furiosa, protagonizada nesse filme por Charlize Theron. A “Imperator” Furiosa, condutora do enorme camião de guerra da Cidadela de Immortan Joe, lança-se nesse filme — que usufrui de um estatuto de culto e adoração merecido, sendo, de facto, um dos melhores filmes de ação do XXI — como pessoa que, contra a sociedade onde possui um alto cargo, se coloca na posição de facilitadora de uma fuga mais do que justa. Nesse filme, Furiosa era de poucas palavras, determinada e em busca de um paraíso para onde levar um grupo de mulheres fugidas da Cidadela, que se revela destruído, pelo clima ou pela mãe do homem.
O problema de Furiosa é que Fury Road é um filme excepcional. É um filme no Olimpo do “show don’t tell”, que nos apresenta um mundo completo e complexo, com os seus rituais, crenças, ideologias, e um conflito simples, mas extremamente eficaz. Furiosa é uma prequela, o que torna a tarefa deste filme ser bem-sucedido (especialmente por comparação) muito complicada. Nós sabemos qual é o futuro de Furiosa em Fury Road e Charlize Theron tem uma marca indelével na personagem, que não se traduz exactamente no que vemos neste filme. Assim, estamos sempre a jogar um jogo perigoso, em que George Miller tenta, de certa forma, preencher o cartão bingo do passado desta personagem.
Como perdeu Furiosa o braço? De onde vem a sua pintura facial, como se tornou na condutora do veículo de guerra mais importante da Cidadela? Há respostas para tudo isto que são menos interessantes do que o filme supõe que sejam.
O filme dá mais espaço e tempo para explorar não só a personagem titular, mas todo este mundo, sendo o retrato muito mais íntimo e detalhado, embora não necessariamente com o mesmo impacto emocional. Estruturado em torno de cinco capítulos — “The Pole of Inaccessibility”, “Lessons from the Wasteland”, “The Stowaway”, “Homeward”, and “Beyond Vengeance” — há algo de fábula na forma como esta história é contada — detendo menos da força imediata e matter-of-fact-ness de Fury Road — por um contador de histórias, o History Man, que tem como propósito maior narrar a História da Humanidade.
O primeiro é o meu capítulo favorito, uma descida do Éden perdido ao inferno da Wasteland que é o cenário da saga Mad Max e uma sequência maravilhosamente orquestrada na sua tensão em que vemos que, com apenas dez anos, Furiosa (Alyla Browne) no conforto do secreto Green Place (um lugar de “many mothers” e regido pelas Vuvalini — a nomenclatura a sublinhar uma dicotomia feminino/masculino presente em ambos os filmes) até que saqueadores (homens) em motas ferozes descobrem o lugar e preparam-se para revelar a sua localização e, pior, trazer a malevolência da Wasteland a este lugar sagrado, que se tornará na fonte de alento de Furiosa.
A Wasteland é pintada, como já em Fury Road, como uma vastidão desértica e masculina, marcada por uma brutalidade e violência incessante. Furiosa traz consigo um sonho de uma ligação com a Natureza verdejante e fértil, e é de certa forma a personagem que mais se cola a temas de esperança e renascimento.
Tentando contrariar o plano destes saqueadores, Furiosa é descoberta a sabotar as suas motas e é raptada. É a perseguição frenética da mãe de Furiosa pela filha e pelos invasores que se torna numa das sequências mais bonitas deste filme, onde viajamos pelo deserto, enquanto esta mãe tenta, ao mesmo tempo, recuperar a filha e manter a localização do Green Place no segredo a que se habituaram. É aqui, por obra deste destino impiedoso, que Furiosa chega às mãos de Dementus (Chris Hemsworth), que reuniu uma força nómada aterrorizante à sua volta, e ao adeus permanente ao Green Place. Na sua tentativa de semear sempre o caos por onde passa, Dementus tenta apoderar-se da Cidadela, a zona governada pelo aterrorizador Immortan Joe (Lachy Hulme) de Fury Road, e Furiosa é, agora, propriedade de Joe, que que a deseja para a sua coleção de mulheres jovens e, sobretudo, intocadas pela enfermidade que permeia a Wasteland. O seu grande projecto é conceber um filho perfeito, sem mácula. E as suas “esposas” são o veículo para esse sonho.
Aqui, Alyla Browne dá lugar a Anya Taylor-Joy, protagonizando uma Furiosa que, ao longo dos anos, foge do seu lugar cativo inicial como potencial “esposa” de Joe e se esconde nas hostes de war boys, tornando-se numa peça cada vez mais essencial na máquina de guerra veicular desta sociedade. Taylor-Joy dá uso ao poder dos seus olhos, que dizem todas as palavras que a personagem evita, silenciosa mas mortífera, demonstrando a sua agilidade e destreza numa cena de acção perfeitamente coreografada durante um ataque ao camião de guerra da Cidadela. Apesar de visualmente impressionante, esta sequência é ilustrativa de algo que sinto que permeia todo o filme, que é a impossibilidade de conseguir o mesmo sentimento de triunfo e perplexidade visual e emocional que Fury Road consegue tão bem. Este ataque tão bem coreografado é perfunctório, mais do que genuinamente excitante ou fora do reino do já visto.
O filme desenha-se, depois, com os contornos de, mais do que desejo de voltar ao Green Place, a sede de vingança que Furiosa possui e direcciona a Dementus como o factor que destruiu a sua vida. Miller tenta desenhar um comentário sobre a futilidade da vingança cega, a impossibilidade de recuperar o perdido e a necessidade de preservar a redenção possível, a que resta, a que está ao alcance de quem tem a força para a agarrar. Mas a história perde-se na necessidade de atar as pontas todas a Fury Road: como perdeu Furiosa o braço? De onde vem a sua pintura facial, como se tornou na condutora do veículo de guerra mais importante da Cidadela? Há respostas para tudo isto que são menos interessantes do que o filme supõe que sejam.
O seu grande pecado é a forma como termina, com uma ideia de redenção depois da vontade de vingança que é, na mais generosa das interpretações, telegrafada de forma abrupta e a utilização infeliz de imagens de Fury Road nos créditos do filme, como forma de fazer a ponte entre este exercício de estudo de personagem de Furiosa e o absoluto virtuosismo de Fury Road. Ainda assim, mesmo que empalidecido por comparação com Fury Road, pudessem os potenciais blockbusters ter a mestria visual e o cuidado na criação destes mundos (interiores e exteriores) que Miller incute a Furiosa.
★★★☆☆