Eu não ia ver Twisters (Tornados, 2024) de Lee Isaac Chung. O filme original foi algo que vi sem nunca rever, restando-me uma imagem vaga do Bill Paxton e da Helen Hunt e uma vaquinha a ser engolida pelos ventos indomáveis do tornado. Era o que os americanos gostam de chamar “dumb fun”, um pedaço de schlock divertido com efeitos especiais digitais, numa altura em que eram tão impressionantes como toscos. Twister (1996) de Jan de Bont tinha, contudo, um elenco de luxo, onde Paxton e Hunt se juntavam a um rol de actores como Philip Seymour Hoffman, Alan Ruck, Cary Elwes, Jeremy Davies e Todd Field — o que elevava o diálogo (puro nonsense científico), a energia e o pedigree do filme.
Como dizia, eu não ia ver Twisters até que apanhei um pequeno segmento que me convenceu a dedicar um sábado à noite ao filme, porque Sean Fennessey e Amanda Dobbins, do excelente podcast The Big Picture, diziam que o filme era “the movie of the summer”. Continuavam dizendo que era “an absolute delight, (…) that was straight up exactly what I wanted from a summer movie. They nailed it”.
Resta-me discordar.
Twisters é apenas mais um filme na tendência recente de reavivar êxitos de bilheteira nostálgicos para o público contemporâneo, desta feita com um realizador, Lee Isaac Chung, que regressa ao coração dos Estados Unidos mas não nos volta a dar um Minari (2020). Traz-nos um filme que, pelo contrário, está em guerra com as suas raízes schlock. Twisters pega no incidente do filme original — uma mulher com um trauma relacionado com um tornado que matou alguém que lhe era querido e agora dedica a sua vida a “caçar” o fenómeno metereológico que a marcou — e torna o filme-sequela [a ligação é o uso da máquina de análise de tornados, Dorothy, uma invenção a piscar o olho ao The Wizard of Oz (O Feiticeiro de Oz, 1939)] num filme sobre traumas.
A pièce de résistance é quando o próprio ecrã se sublima vento fora, ficando os espectadores-vítimas e os espectadores-audiência que somos nós com a mesma visão do terror da natureza. O cinema pode ser o local que nos salva, pode ser uma janela para a nossa própria destruição.
Em Twisters, o peso está todo sobre os ombros de Glen Powell e Daisy Edgar-Jones. Edgar-Jones é protagonista, Kate, uma rapariga com uma ligação quase espiritual com a natureza, e com os tornados em particular, que pretende livrar o Oklahoma da destruição causada por este fenómeno, testando uma tese que implica a libertação de barris com substâncias que deverão efectivamente dissipar um tornado. O objectivo é salvar vidas e conseguir uma bolsa de investigação. O resultado é um início de filme que a vê a perder dois amigos e o namorado, numa sequência assustadora, em que o efeitos especiais e o design de som fazem um trabalho exemplar. Contudo, e como já disse, é um filme sobre traumas e Kate não se torna a personagem destemida de Helen Hunt porque, aqui, a culpa de ter sido responsável assola-a. Afasta-se do terreno e do sonho de “domar um tornado” e foge do coração dos Estados Unidos para a elite costeira de Nova Iorque. Mas tal como Michael Corleone, nunca se está verdadeiramente de fora.
Apesar de usar os seus dotes de savant agora por detrás de segurança de um monitor de computador, um antigo amigo e colega Javi (Anthony Ramos) traz-lhe uma oferta que ela não pode recusar: estudar tornados com tecnologia de ponta, directamente vinda do bolso do complexo industrial militar, e ajudar a prevenir tragédias que destruam comunidades inteiras através dos dados recebidos por essa mesma tecnologia. A dificuldade é encontrar o tornado certo e a cereja-no-topo-do-bolo é que a tecnologia militar precisa de ser colocada em formato triangular, transmitindo toda uma camada de urgência extra ao já devastador poder do tornado.
E como Kate não pode realmente passar o filme a esconder-se atrás de um ecrã, encontra-se com Javi no terreno, ou seja, Oklahoma em plena época de tornados, o que no filme quer dizer que eles ocorrem literalmente todos os dias. Claro que o espectador pode estar mais ou menos familiarizado com a época de tornados no interior dos Estados Unidos ou pela indústria de “caça” e apreciação que se gera em torno deles, mas quando o filme nos mostra o quarto tornado seguido na quantidade de dias que podíamos contar numa mão, a ideia de realidade começa a ser esticada de formas absurdas. Existiria Oklahoma sequer, se a frequência e intensidade fossem as mostradas?
Acusar-me-iam de amargura, mas eu realmente fui no espírito de ver um filme de verão que me fizesse sair galvanizada da sala. O que redime o filme é o seu uso de Glen Powell. O actor de Everybody Wants Some!! (Todos Querem o Mesmo, 2016) de Richard Linklater, Top Gun: Maverick (2022) de Joseph Kosinski (autor da história deste Twisters), e Hit Man (Assassino Profissional, 2023) de Richard Linklater é uma estrela de cinema, com uma voltagem como já não é costume ver-se nos dias de hoje, e a bomba de carisma que o filme precisa para contrapor o torpor pesados dos traumas de Kate. Os dois apresentam-se como opostos-que-talvez-não sejam-tão-opostos e é suposto a química de rivalidade gerar faíscas que não são suficientes para acender um filme bastante formulaico, onde os tipos com tecnologia militar estão inevitavelmente a trabalhar com um magnata de uma imobiliária. O contraponto de Glen Powell é a sua equipa de “domadores de tornados” para o YouTube, que usam ciência e tecnologia tosca para libertar foguetes no interior de tornados e aumentar os seus visionamentos, ao mesmo tempo que se revelam benfeitores que usam os lucros do seu merchandise para ajudar as comunidades que são atingidas pelos tornados. “We’re not so different you and I” — é o que o vilão de um filme de super-heróis diria, mas é também o que o duo romântico deste filme acaba por se aperceber. Powell e Edgar-Jones acabam por nunca consumar a faísca num filme que, apesar de toda a sua nostalgia, é incapaz de terminar com um beijo à boa maneira hollywoodiana. As razões vão desde “respeitar Kate como cientista” a “as novas gerações gostam menos de beijos” e é assim que percebemos que o filme não tem nada a dizer para além de confirmar o magnetismo de Glen Powell.
O filme tem no seu clímax uma cena que envolve um tornado gigante que tanto engole as chamas de uma central eléctrica, como se dirige a uma pequena cidade onde os produtores do mercado do dia são obrigados a dirigir-se para abrigos por Powell e Edgar-Jones, mesmo quando as tendas voam em seu redor. Ninguém acuse estes americanos de não estarem devidamente devotos ao capitalismo. Mas divago. O que gostava realmente de apontar é duas coisas interessantes que Lee Isaac Chung compõe neste final. Uma delas é deixar o verdadeiro momento heróico para a personagem de Edgar-Jones, que pega no carro para testar novamente os seus barris e salvar o dia. E fá-lo sozinha, redimindo-se totalmente mas também sinalizando o filme a sua competência e independência. Powell fica-se a ajudar os civis apanhados pelo tornado, que não é tarefa fácil. E onde se poderá grupar toda uma pequena cidade do interior americano em poucos minutos? Numa sala de cinema local, que acaba por ser metafórica e literalmente a sua salvação. A imagem conjurada não é subtil mas é comovente. A pièce de résistance é quando o próprio ecrã se sublima vento fora, ficando os espectadores-vítimas e os espectadores-audiência que somos nós com a mesma visão do terror da natureza. O cinema pode ser o local que nos salva, pode ser uma janela para a nossa própria destruição. E se Twisters terminasse com um beijo, talvez fosse o filme do verão.
★★★☆☆