João Rosas é conhecido pela trilogia de curtas-metragens que realizou em torno de Francisco Melo. O realizador filmou o jovem ator em Entrecampos (2013), com 11 anos, em Maria do Mar (2015), com 14, e por fim em Catavento (2020), com 19. Embora esta “trilogia do crescimento” proponha uma reflexão sobre a passagem do tempo e sobre a construção da personalidade, ela é – em igual medida – um autorretrato urbano que revela a ambivalente relação do realizador com a cidade de Lisboa. Essa relação tornou-se, entretanto, no centro de A Morte de uma Cidade (2022), a sua primeira longa-metragem documental.

Entrecampos passava-se no bairro de Carnide (onde o realizador cresceu – e, já agora, onde eu também cresci e ainda hoje vivo) e o homónimo bairro de Entrecampos (para onde Rosas se mudou quando regressou de Londres). Maria do Mar, sendo o filme da rebeldia da adolescência, é o filme da negação da cidade, é o filme das férias de Verão entre o campo e a praia. Já Catavento é um filme de circulação, entre a Graça (o bairro para onde Rosas se muda depois de Entrecampos) e o Estoril – é o filme da liberdade de movimento da maioridade. Se a “trilogia do crescimento” se estende por oito anos, entre 2012 e 2020, a história da sua produção (os seus ecos e recuos) remonta a 2008 e prolonga-se até 2022. Citando o realizador, a partir da ‘folha’ que escreveu aquando da primeira passagem de Entrecampos na Cinemateca, em 2012, “Corria o ano de 2008 quando fui obrigado a fazer um filme. (…) Um prazo é um prazo, sobretudo em Inglaterra, onde na altura eu era aluno da London Film School. (…) Deram-me três mil e tal euros para a mão e um ano para o entregar. Pus-me a escrever uma ideia nascida de uma história que um amigo me contara um dia. (…) O que mais me interessava na sua história e o que ainda hoje me fascina em tantos dos meus filmes preferidos: o espaço urbano e o universo infantil. O amigo que me contou a história chamava-se Edgar [Medina] e à ideia chamei-lhe Entrecampos. Tentei arranjar mais dinheiro para tornar a ideia numa curta-metragem, e perante o falhanço de tais demandas tive de mudar de plano, pois o orçamento da escola não me chegava para fazer o filme que eu tinha na cabeça.”
Dessa frustração nasceu um outro filme, um documentário ensaístico de produção artesanal intitulado Birth of a City (2009) onde o realizador faz um retrato, em formato de diário, do processo de gentrificação da cidade de Londres. Esse despertar das preocupações sobre arquitetura e urbanismo tornar-se-ia no subtexto da “trilogia do crescimento” e culminaria no filme-espelho A Morte de uma Cidade, novo regresso à prática documental de cariz diarístico que funciona, simultaneamente, como reverso da trilogia e complemento de Birth of a City (a começar pelo título).
Numa entrevista de 2012, aquando da passagem de Entrecampos pelo festival Curtas Vila do Conde, o realizador explicou ao crítico Jorge Mourinha, “Não tinha jeito para desenhar, senão gostava de ter ido para arquitetura ou urbanismo; sempre me interessou a questão de como as cidades se constroem e evoluem. Para mim é natural querer fixar e criar a memória dos sítios onde vivo. Porque vou gostar de os ver daqui a 30 anos, mas não numa nostalgia do género ‘antes é que era bom’. É normal que as cidades mudem. (…) [Porém], com a crise [financeira de 2008], com a nossa ausência de espaço público, as pessoas foram expulsas da cidade. Entrecampos é um bairro que não é um bairro, ao fim de semana e à noite está tudo vazio, não há um café, um sítio para comprar tabaco. A mudança é saudável, mas faz falta vida de bairro.” Eis, em poucas linhas, a semente do que viria a ser a reflexão de A Morte de uma Cidade, um filme que começa precisamente por recuperar as primeiras imagens que o realizador filma de Lisboa quando se muda para o bairro da Graça, em 2012.
Ou seja, mais do que uma trilogia, os três filmes que acompanham o crescimento de Francisco Melo estão “entalados” por uma dupla comunicante – Birth of a City / Morte de uma cidade – transformando-se os cinco filmes num todo multifacetado (uma obra… em obras, uma obra em construção, inacabada) sobre a cidade e a passagem do tempo. Há, no prefácio e posfácio documentais, uma qualidade dialética que é da ordem do conceptual. Não só porque os dois filmes são explicitamente reflexivos – recorrem de forma sistemática à narração; uma narração que mais do que comentar as imagens, as interroga e coloca em relação com outras imagens (ausentes) – mas porque neles se opera um trabalho de questionamento do próprio gesto de observação (e das suas limitações). Posto doutro modo, A Morte de uma Cidade constitui-se como o perfeito negativo da trilogia na medida em que decalca os mesmos temas e preocupações sobre a cidade de Lisboa, mas fá-lo segundo um ponto de vista diametralmente oposto (ponto de vista formal, ponto de vista político e social).

Filmado pelo próprio João Rosas (com a câmara que comprou com a desculpa de documentar o crescimento – ! – do filho recém-nascido), A Morte trata-se de um documentário observacional onde o realizador acompanha a demolição e reconstrução de um prédio na Rua da Rosa (no Bairro Alto – a partir de 2016, Rosas muda-se para o Chiado), onde a câmara e o próprio vão tentando estabelecer relações de intimidade com os vários trabalhadores da construção civil que por ali vão passando ao longo dos meses – intimidade essa dificultada pela precariedade dos contratos de trabalho temporário que transformam a obra num carrossel de figuras anónimas. Se é possível afirmar que o gosto pelo retrato prossegue (e mais que isso, o desejo de acompanhar e a curiosidade de conhecer), os filmes e as personagens não podiam ser mais distantes. Onde na trilogia tudo é elegância e naturalismo (a câmara de Rosas desliza em travellings delicados ou deixa-se estar, em plano aberto, observando a coreografia do quotidiano), em A Morte impera a câmara à mão, os olhares para a objetiva e as conversas com o realizador, fora de campo. Mais que isso, onde a trilogia retrata uma geração aburguesada de lisboetas de classe média atormentados pelo seu próprio tédio, A Morte entrega-se aos outros, àqueles que “fazem Lisboa”, mas que não “vivem Lisboa”: os emigrantes, os sem-papéis, os não-brancos, os precários, os explorados, os exaustos…
Claro que esta oposição é algo simplista. Há vários aspectos que ligam a trilogia ao seu entorno documental além das temáticas da arquitetura e urbanismo. O primeiro prende-se com a performatividade. Muito embora pertençam a classes sociais diferentes (diametralmente opostas, poder-se-ia dizer) e os seus dilemas sejam muito diferentes (a personagem de Francisco Melo não sabe o que há de fazer da vida – daí o “catavento” – e deixa-se levar pelos seus desejos despreocupados; já os dilemas dos pedreiros e ajudantes têm que ver com as condições básicas de vida e de bem-estar), é possível afirmar que Rosas procura tanto nas personagens da ficção como nas personagens do documentário a força de uma presença. Daí resulta o primeiro aspecto de ligação: uma atenção muito particular ao movimento dos corpos, às suas coreografias não encenadas, aos gestos do trabalho e do descanso. Em Morte, o comentário off do realizador denuncia – em parte – o seu trabalho como investigador académico no projeto Works – o trabalho no ecrã (ISCTE), onde Rosas (juntamente com Luísa Veloso, Frédèric Vidal entre outros) organizou um levantamento analítico dos modos como o trabalho foi sendo representado no cinema português ao longo das décadas.
O segundo aspeto manifesta-se na entrega ao romantismo. Se é certo que um dos trabalhadores das obras afirma “sou um romântico, mas nem toda a gente se dá ao luxo de ser romântico neste mundo”, é também certo que o olhar de Rosas procura nas suas personagens a centelha desse sentimento de revelação dos outros em nós. Acompanhando o crescimento de Francisco Melo ao longo de dez anos ou acompanhando a vida dos pedreiros que conheceu na Rua da Rosa ao longo de um ano, o cinema de Rosas faz-se do caminhar juntos, do seguir lado-a-lado – “Fazer cinema sempre foi para mim uma forma de me relacionar com as pessoas e com os lugares que me intrigam e fascinam”.
★★★☆☆