A melhor actriz americana de sempre? A discussão será eterna, mas o nome de Gena Rowlands será sempre um dos nomes a ser considerados para essa distinção. A actriz, que faleceu em Agosto passado com 94 anos, deixa para trás uma filmografia monumental, repleta de interpretações inesquecíveis. Será para sempre também recordada pela sua colaboração com John Cassavetes, em filmes como A Woman Under the Influence (Uma Mulher Sob Influência, 1974), Opening Night (Noite de Estreia, 1977) ou Gloria (Glória, 1980), mas também Faces (Rostos, 1968), Minnie and Moskowitz (Tempo de Amar, 1971) e Love Streams (Amantes, 1984). Mas a sua carreira não se resume a isso, ficando também para a história obras como Another Woman (Uma Outra Mulher, 1988), de Woody Allen, sobre o qual escreveu Daniela Rôla, The Neon Bible (A Bíblia de Néon, 1995), de Terence Davies, ou mais recentemente The Notebook (O Diário da Nossa Paixão, 2004) de Nick Cassavetes (seu filho), dois dos filmes escolhidos neste In Memoriam dedicado a Rowlands. Recordamos ainda as palavras de Bárbara Janicas, no seu texto sobre Opening Night:
No papel principal de Opening Night encontramos, naturalmente, a avassaladora Gena Rowlands que, no rescaldo da sua inesquecível prestação enquanto Mabel Longhetti, primeira-dama “sob influência” cassavetiana, se entrega, desta feita, de corpo e alma, à personagem de Myrtle Gordon, cabeça de cartaz da peça-dentro-do-filme, intitulada The Second Woman, cuja noite de estreia se prepara. (…) envelhecida sob a maquilhagem carregada e os chapéus extravagantes, torna-se palpável não só a passagem do tempo como a crise emocional e identitária de Gena Rowlands/Myrtle Gordon/Virginia, magistralmente materializada no jogo de espelhos do plano em que a atriz se desmaquilha, despindo a sua personagem fictícia e pondo a nu a mulher “real” – e, por isso mesmo, naturalmente imperfeita – que é. (…) E, no auge do seu canto de fénix, Myrtle Gordon/Gena Rowlands parece confessar-nos, nas palavras de Antonin Artaud: “Quando vivo não me sinto viver. Mas quando represento sinto-me existir”.

A propósito dela, fala-se do fim do star-system, mas a Nova Hollywood também foi, em grande medida, edificada pelos seus actores, estrelas com menos glamour mas mais pathos, grandes escultores de emoções cruas e demasiado humanas. Houve, então, Robert De Niro, Al Pacino, Jack Nicholson, Dustin Hoffman, Elliot Gould, etc.. E houve ainda Ellen Burstyn, Candice Bergen, Jill Clayburgh, Joanne Woodward e, claro, Gena Rowlands. Não há “etc.” depois de Rowlands. Paro neste nome porque sou parado por ele, pois, em certa medida, a Nova Hollywood atinge alturas nunca antes atingidas com ela, graças a ela, ao seu absoluto domínio sobre um caos interior borbulhante, qual vulcão humano pronto a rebentar. Se tivesse de abdicar de tudo para reduzir a um rosto, a um conjunto de gestos e a um quadro de emoções o que foi a Nova Hollywood ficava apenas com ela e sacrificava, nas suas chamas, o mundo à sua volta. Ela foi a grande musa flamejante de todo esse verdadeiro apocalipse sentimental nascido sobre os escombros do glorioso cinema clássico, nomeadamente do seu “sistema de estrelas”. Mabel Longhetti, uma mãe “avariada”, como um electrodoméstico disfuncional, esteve algum tempo “na oficina” e regressa agora a casa, com família e amigos, “todo o mundo” à espera com o intuito de celebrar o tão aguardado regresso. Todos querem ver como é que a mãe-electrodoméstica está hoje, depois do tratamento especial no hospital, à base de electrochoques. A festa, claro, será tão disfuncional quanto o tratamento administrado e nenhuma normalidade se salvará, se “reencenerá”, perante a força da personalidade broken, intrinsecamente “assim”, de Mabel. E é indesmentível que o marido, Nick Longhetti (o melhor papel de Peter Falk?), a ama furiosamente.
Mabel é de uma beleza e de uma singularidade que vai muito além da normalidade prescrita pela etiqueta e bons costumes, ninguém lhe pode ficar indiferente, daí o vazio provocado pelo silêncio da casa sem ela e os seus “disparates”, com o pai e os três filhos pequenos entregues à rotina mais banal. Nick quer que Mabel “seja ela mesma” e, ao mesmo tempo, que seja uma mulher e mãe normal, “como as outras” – a disfunção parece estar nele, em certa medida. Mas ninguém se precipita em julgamentos, nem mesmo, claro está, a câmara de Cassavetes, nem tão-pouco o espectador que nela se deixará aprisionar, situação atrás de situação, levados que somos, no seu fluxo, pela lava de emoções que borbulham a cada instante a partir e em torno desta incomparável actriz. Gena Rowlands é o vulcão em cena, prestes a rebentar, e é magnificente. “Os Kraffts são atraídos pela magnificência e mistério da terra interior a fluir para a superfície” – a frase vem do documentário The Fire Within: A Requiem for Katia and Maurice Kraft (2022) de Werner Herzog. Os Kraffts foram vulcanologistas que acabaram consumidos pelo seu fascínio por erupções, tendo ambos sucumbido em 1991, levados desta vida pelas chamas do Monte Unzen, em Nagasaki. Os familiares e amigos também se aproximaram demasiado perto de Mabel nessa tarde chuvosa em que o vulcão voltou a despertar mais ou menos naquele exacto instante, em que Mabel conta uma anedota, depois narra os suplícios de que foi alvo no hospital e, enfim, sem razão aparente, pede ao seu pai para se levantar. E, a partir dali, ela “estala” enquanto solta uma frase que ninguém queria ouvir ou que, secretamente, todos queriam ouvir. Suspeito que só nós e a câmara de Cassavetes, de facto, a ouvimos dizer: “Não consigo mais”.
Luís Mendonça

Em um texto seminal sobre Flammes (Chamas, 1978) de Adolfo Arrieta, Jean Narboni nos lembra que o ator trabalha com as mesmas matérias, energias e humores da prostituta: pertencem a ambos a lágrima, o suor, a respiração alterada, ocasionalmente o sangue e o sémen [recordemos a obra-prima da pornografia melancólica, Équation à un inconnu (Equação para um desconhecido 1980), do decorador francês Frances Savel]. Se isto pode ser dito sobre um grande filme do classicismo apascentado pelas aparas da discreta arte francesa de urdir bildungsromans, imagine então no caso de Cassavetes, cineasta do psicossomatismo, do ator como agente e co-partícipe esmerado da mise en scène dos corpos e cenários em combustão! Em Opening Night Myrtle Gordon está envelhecendo, mas em cena aberta e histérica; este still roubado ao filme focaliza os traços somáticos da star decaída, intumescida de álcool, rugas e blush manchado, que a admirável Gena Rowlands encarna sem pudores ou terrores de nenhuma meia-idade, porque é uma senhora atriz- uma artista a serviço da persona, em todas as suas dimensões-, e portanto pode ser confundida com uma puta velha, mesmo e sobretudo quando star. Merleau Ponty também nos recordava que não temos (equação continente x conteúdo) mas “somos” um corpo, e imaginem as consequências, entre delituosas e deleitosas, que esta intuição fenomenológica não deve trazer para a arte do ator! Gena, servindo-se com desenvoltura monstruosa de seu eidos belíssimo e decaído, manipula os espectadores ao bel-prazer de suas táticas de sedução fantasmática; neste ensaio para a peça Another woman, Mirtle grita com voz gutural que “No, it’s impossible”, e após um tapa de seu partner de cena, gargalha convulsivamente. Não há mais aqui a máscara logofílica da linguagem para mediar/modular os confrontos extáticos: há apenas gritos, sussurros e lágrimas que maculam de pulsão a face adorada da star, estremecimentos de sintomas.
Gena Rowlands, autora dos gestos mais belamente convulsos (é preciso estabelecer um link genealógico com a psicótica doadora de amor Mabel, em Uma Mulher Sob Influência, para dar conta do in extremis melopatético de Myrtle) de atriz da segunda metade do cinema moderno, nos representa os três potenciais abismos na raiz da persona em uma única encenação psico-somática: a de ser um Outro sem perder seu Mesmo, a alienação do alcoolismo e o fantasma arraigado da juventude perdida (encarnada na jovem que lhe aparece a qualquer contracampo espelhado de um filme sobre a imago do ator na iminência da exaustão). Tudo são cintilações de vertigem e entumescências de espasmo pático porque as três experiências abandonaram a Cena potencial da atriz- e portanto, o auto-controle da mise em scène – e se atualizaram em seu corpo machucado: Myrtle se encontra à totalitária mercê do fantasma, e ameaça sucumbir sob o gládio de sua intransitiva paixão. É a via crucis, a Gólgota possível a Cassavetes que é filmada aqui, porque o Logos da verônica de Cristo, pervertida enfim, é agora uma imagem eivada de dardos maléficos: a menina que lhe aparece não representa mais o consolo da fã idealizadora da persona de star, pois a moça é urdida com o sangue e as vísceras das mais cruéis performances de Myrtle: se o fantasma do ator é mais sublime que o do puto, o meio aquoso somático em que este se encarna é o mesmo, e é a crise psicótica o desencadeador desta identificação pouco lisonjeira. Para o arremate: Hölderlin, no Hino de Patmos, nos diz que onde habita a danação também reside a salvação; é no extático terceiro dia de uma noite devotada ao álcool e à auto-destruição que Myrtle renasce, é no ultrapassamento são de todos os seus limites que esta pode retomar-se fénix, e ser recebida pelo abraço amical do teatro reconciliado.
José Luiz Soares Jr.

Nas últimas semanas estive de volta da obra do Terence Davies e deu-se esta triste coincidência de regressar a The Neon Bible já após a morte de Gena Rowlands. De facto, o cinema tem esta estranha propriedade de dar vida às fixações espectrais dos mortos, de os reanimar no seu entremeado de fotogramas estáticos e – de súbito – estes parecem-nos tão próximos, tão vivos, tão presentes… A Gena Rowlands não foi uma “atriz de Terence Davies”, longe disso. A sua colaboração com o realizador foi pontual. No entanto, não foi por mero acaso que Davies resolveu escolhê-la para o papel de Mae Morgan, a tia excêntrica do jovem David. The Neon Bible marca a aproximação de Davies ao universo literário e ao imaginário norte-americano. Ele parte do romance homónimo de John Kennedy Toole e transforma-o numa continuação daquilo que vinham sendo as suas “ficções autobiográficas” – agora através de um efeito de projeção ficcional noutras “realidades”. Assim, Mae/Gena Rowlands surge, neste filme de Davies, como a primeira das grandes personagens femininas que dominarão a quase integralidade dos seus filmes posteriores: depois de Mae/Rowlands, aparecerão Gillian Anderson em The House of Mirth (A Casa da Felicidade, 2000), Rachel Weisz em The Deep Blue Sea (O Profundo Mar Azul, 2011) e Cynthia Nixon em A Quiet Passion (2016).
Mais do que uma mera figura iniciática do “feminino” no universo de um realizador tão particular como Terence Davies, o papel que Gena Rowlands assume em The Neon Bible carrega o peso da sua própria persona. Rowlands é Mae e é – inevitavelmente – ela mesma. Mais não seja porque, em 1995, Davies dá-lhe o papel de uma grande entertainer que já teve a sua época e agora sobrevive a partir das memórias da sua grandeza de juventude. Davies vê em Rowlands o fugacho do star system, vê nela a última manifestação de uma diva clássica, ela é, a seu olhos, o estertor final da Hollywood que o realizador gostava e que entretanto desaparecera (Davies deixou de ver filmes na década de 1960 – vivia obcecado com um certo imaginário do classicismo do sistema de estúdios dos anos 1950). Ela é simultaneamente a memória do fascínio juvenil pelo cinema e o sinal da sua decadência.
Daí que a abertura do filme, com a chegada inesperada da tia àquela pequena aldeia do interior rural norte-americano, se transforme rapidamente num momento de celebração do passado, de celebração do poder da transmissão oral das memórias. Davies encena esse primeiro momento através do dispositivo mais frequente do seu cinema de recoleções, a sempre-presente janela. E mais que isso, coloca David (que aqui é claramente um dos seus alter egos) dentro de casa, assistindo ao folhear do álbum de memórias da tia através da moldura da janela. Há, claramente, uma sinédoque do cinema no poder de enquadramento e fascínio que esta moldura da janela oferece. Algo que se consubstancia no encantador travelling rotativo que Davies oferece a Rowlands e que a transporta para os dias da sua fama como cantora em Nova Orleãs. Se Cinema = Janela = Memória na obra de Davies, com o apoio de Rowlands, essa equação resolve-se no rosto de uma mulher que lança o olhar para o negro carregado da noite onde se escondem todos os temores da velhice (e as fantasias da nostalgia).
Ricardo Vieira Lisboa

Quando Gena Rowlands morreu, a apressada indignação virtual por ser identificada, em comunicados de agências, como a atriz de The Notebook, pareceu querer esquecer dois a três aspetos coincidentemente biográficos que o filme assinado pelo seu filho, Nick Cassavetes, sublinha. Para além de uma intencional vontade de identificação para gerações, ou um público, que não saiba identificar, de imediato, a importância da atriz na construção de um modelo de interpretação, esses detalhes são relevantes para não excluir, por inteiro, o filme da sua filmografia.
Na adaptação do romance de Nicholas Sparks, Rowlands partilha a personagem Allie Hamilton com Rachel McAdams, e quase no final, quando o marido, Noah, interpretado por James Gardner, olha para fotografias do casal, são imagens de filmes de Rowlands com John Cassavetes, aqueles pelos quais deve ser oficialmente reconhecida, que surgem como memórias reais de uma personagem de ficção. Vemos Rowlands em Love Streams, Minnie and Moskowitz e Faces. As fotografias são as que nos habituamos a ver da intimidade do casal e da própria atriz, em testes para filmes, e imagens promocionais e outras que confundiam trabalho e vida pessoal, na casa que os dois transformaram em estúdio de cinema. É como se a biografia da personagem fosse a biografia das personagens que Rowlands interpretou, e esta só existisse no cinema, e num certo tipo de cinema, como aquele que continuamos a identificar como sendo o seu. Não é errado, mas desvia a atenção de uma narrativa secundária que, com este filme, se torna premonitória.
Gena Rowlands morreu na sequência do agravamento da doença de Alzeihmer, com a qual vivia há anos, e que já havia afetado a sua mãe, e em The Notebook, assim é com a sua personagem, que só se recorda de quem foi na escuta da sua própria história, pelo diário lido por James Gardner. E o filme é um gesto de amor do filho para a mãe, numa história de resistências e contrastes, que apela a um público muito vasto, e não envergonha qualquer filmografia. Aliás, com um eco surpreendente em Les plus belles années d’une vie (Os Melhores Anos da Nossa Vida, 2019), de Claude Lelouch onde Un homme et une femme (Um Homem e Uma Mulher, 1966) se encerra e, numa inversão dos papéis, já que é Anouk Aimée, que morreu no início do verão, quem vai recordar a história comum, e a nossa com eles, a um debilitado Jean-Louis Trintignant, também ele com Alzeihmer.
Allie, num dos raros momentos em que se lembra da sua narrativa, pergunta a Noah: “Achas que posso voltar a ser aquela rapariga? Só por uma noite!”. E depois, numa cama de hospital da ala de internamento psiquiátrico, diz a Noah: “Não sabia o que fazer. Tive medo de que não voltasses.” Estes dois breves momentos, carregados pela nossa memória de espectadores, ativam a mitologia fixada pela história do cinema, e reforçam a relação mitificada com as personas cinematográficas, confirmadas nos obituários e partilhas que procuram sempre imagens de atores e atrizes na juventude, como se não envelhecessem. Rowlands disse sempre que a sua vida, depois de Cassavetes, continuou. Pode não ter sido a que gostaríamos, ou que a atriz imaginou, mas é mais real do que a revisitação nostálgica do que foi num período certamente marcante e definidor, mas não definitivo.
Um último detalhe: no filme, a sua personagem também não se lembra que tem três filhos, um rapaz e duas raparigas, como teve com o Cassavetes, e o rapaz sendo interpretado por Riley Novak, que se estreou no teatro na peça Three Plays of Love and Hate (1981), escrita por Cassavetes e por si encenada, para poder preparar o filme na qual se baseia Love Streams. E é por isso que The Notebook é um filme para uma mãe que teve uma história de que já não se lembra e, deste modo, contada e filmada, e que surge assim como memória comum que o sucesso planetário e transgeracional do filme permite unir.
Tiago Bartolomeu Costa