Greice (Amandyra) é uma jovem brasileira que está a estudar escultura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. O calor extenuante do Verão português, e a ausência de sistemas de ar-condicionado característica das nossas habitações, tornam urgente mergulhar numa piscina, mas não numa pública, que horror! Por isso, Greice promete levar Lis (Laura Learth), sua amiga e colega de casa, a uma piscina privada, distante de colunas de som portáteis e corpos sobejamente aglomerados. Com o auxílio do satélite omnividente do Google Maps, Greice encontra, não muito distante do seu apartamento, um palacete que tem uma piscina com as medidas ideais.

Trim, trim, tocam as amigas à campainha da mansão bolorenta, daquelas pertencentes a famílias aristocráticas decadentes, que de nobre já nem o título lhes resta. Ao portão aparece o proprietário, Afonso (Mauro Soares), um rapaz na casa dos trinta anos. Greice e Lis dizem-lhe que pertencem à equipa técnica de Clea (Isábel Zuaa), uma cantora em ascensão, e que, de momento, procuram um cenário para o seu próximo videoclipe. Convencido pela explicação, ou talvez simplesmente satisfeito por duas raparigas quererem acompanhá-lo pelos jardins da mansão, Afonso convida-as a entrar.
À semelhança do que se verifica com Greice, que está a ser fiel à sua natureza quando mente, o filme é mais verdadeiro quando dá expressão às falsidades criativas da protagonista do que quando representa verdades sentimentais.
O ponto de partida da relação amorosa de Greice e Afonso é uma mentira – as raparigas não estavam numa missão de trabalho, queriam refrescar-se. No entanto, a suspeita recai sobre Afonso, é da parte dele que inferimos haver um jogo de máscaras. Afonso é simultaneamente um rapaz interessado em desenho, um tipo descomprometido que quer ingressar em Belas-Artes, e um homem que mora sozinho numa mansão e que está envolvido em problemas litigiosos que o fazem ausentar-se, sem aviso. Os traços de Afonso aparentam corresponder a duas personagens diferentes, o que gera desconfiança.
Entre os seus traços discordantes, que vão desde usar um fato de escriturário e ter argolas nas orelhas, uma combinação que recorda um ex-Ministro das Infraestruturas, até ter um aspecto descontraído mas estar enterrado em processos judiciais, uma junção de elementos que evoca, de novo, o mesmo antigo Ministro das Infraestruturas, de todos os traços polarizantes de Afonso, dizia, o mais curioso é o rapaz ser um adepto das praxes e querer frequentar Belas-Artes, onde essa praxis é repudiada.

Com ou sem traje, com ou sem banhos em fontes públicas, a universidade desempenha um papel essencial em Greice (2024), de Leonardo Mouramateus. Para além de ser o locus do mistério principal, sobre o qual me debruçarei, a universidade, sobretudo, imbui o filme do seu espírito. Tal como se verifica em António Um Dois Três (2017), a primeira e promissora longa-metragem de Mouramateus, um realizador brasileiro sediado em Portugal, a Lisboa retratada em Greice é uma cidade jovem, povoada por miúdos de idade universitária que querem conhecer a noite, e por outros que, tendo já terminado os seus cursos, e encontrado empregos precários, colmatam a insipidez da vida adulta com um cocktail de conversa, música, dança e celebração entre amigos. Sim, porque, apesar da teia de mentiras cerzida pelas personagens, o filme é animado por uma alegria, juventude e ligeireza irredutíveis, qualidades incomuns no cinema nacional.
O ponto de viragem da trama é, precisamente, uma festa que tem princípio no recinto exterior de Belas-Artes e que deflagra para os corredores sinuosos da faculdade, onde se encontram em exposição obras de arte, de esculturas em mármore a quadros a óleo. A música pára e os olhares dos universitários dirigem-se, em simultâneo, na mesma direcção, quando um dos quadros que adorna as paredes da faculdade é projectado, em chamas, do interior do edifício para o espaço exterior. Greice e Afonso são os principais suspeitos do crime de destruição do património cultural, porquanto foram vistos a discutir nas imediações da pintura pouco antes desta ter caído dos céus em combustão.

Afonso acusa Greice de ser a responsável pelo sucedido, alegação que a jovem refuta prontamente. A protagonista assevera que a acusação é uma mentira pérfida motivada pelo desejo de vingança de Afonso, dado que, naquela noite, ela terminou o relacionamento amoroso com ele, na sequência de ter descoberto que o rapaz era, provavelmente, um impostor. O filme opera aqui a sua dissimulação narrativa mais engenhosa, ao jogar com os preconceitos do espectador. Acreditamos na inocência de Greice, aliás, num primeiro momento, nem sequer a questionamos porque ela é a protagonista e, por isso, somos seus partidários, mas também porque não encontramos uma motivação plausível para um crime tão idiota. Por outro lado, Afonso afigura-se uma personagem dúplice, moralmente duvidosa, uma vez que é insinuado que o rapaz está a desviar a herança de dois meios-irmãos seus, de origem brasileira, o que aliás, leva a uma leitura pós-colonialista de usurpação de património não muito difícil de adivinhar.
Além disso, e talvez acima de tudo, não acreditamos que o filme se atrevesse a fazer de Greice, uma jovem mulher negra e imigrante, uma criminosa, e de Afonso, o português que vive como um aristocrata falido, um injustiçado.
No entanto, à medida que a trama se desenrola, em particular depois da fuga de Greice para Fortaleza, a cidade de que é natural no Brasil, a dúvida em torno da sua inocência rapidamente se adensa, tal não é a enxurrada de mentiras que engendra para conseguir o que quer. Percebemos, então, que Greice se apresenta como uma mulher para quem a mentira é um instrumento conveniente desde o episódio no portão da mansão, aquele em que a rapariga seduz Afonso com o seu sorriso solícito.

Tendo isto em consideração, a cena em que Afonso é seduzido reflecte a sedução de que somos alvo, sem tomarmos consciência, ao ponto de acreditarmos cegamente na protagonista aquando da discussão com Afonso diante das autoridades da faculdade. Este encantamento é tanto induzido pela interpretação pueril de Amandyra quanto pelas qualidades formais de Mouramateus. Por exemplo, logo no início da acção, depois do primeiro encontro com Afonso no palacete, Greice está com Lis no quiosque onde trabalha e conta à amiga como se voltou a encontrar com o rapaz, ali mesmo onde estão. Greice diz ter-se sentido atraída pela confiança de Afonso, assim como pelo seu hálito, comentário que faz Lis exigir uma explicação. Então, dá-se uma panorâmica para a direita, Afonso surge no enquadramento e dirige-se para o quiosque, arrastando consigo a câmara, que retorna ao ponto de partida da sequência, mas desta feita num tempo diferente. A partir daqui assistimos à história que Greice estava a narrar. A analepse é feita sem recurso à montagem, ou seja, um único movimento de câmara entrelaça o passado e o presente. Para além deste dispositivo formal engenhoso, importa referir que quando Afonso se aproxima de Greice, a uma distância que permite a esta captar o aroma do rapaz, a câmara parte para um grande-plano da rapariga, foca-se no seu sorriso fácil e olhos lânguidos. É a câmara que exorta a fotogenia de Greice, é a câmara que enfeitiça.
Sobreposições de imagem, raccords, fundidos encadeados, utilização da profundidade de campo – existe uma abundância de dispositivos formais, mas o que cativa o olhar é Mouramateus servir-se destes elementos com critério e simplicidade, usando-os sempre como uma solução para um problema concreto. Por exemplo, depois de chegar a Fortaleza, Greice contacta a prima, Márcia (Bruna Pessoa), para lhe pedir um favor. Quando se encontram, Márcia pede para que Greice lhe diga a verdade, de outro modo não poderá ajudá-la e não se poderão reaproximar. A protagonista ouve atentamente a prima e ignora o seu pedido, elaborando uma mentira. Nesse instante, o grande-plano do rosto de Greice é distante o suficiente para que se veja um espelho de parede ao seu lado, espelho esse em que vemos Márcia, com uma postura impaciente. Para além de oferecer profundidade de campo a um tipo de enquadramento que por norma só tem primeiro plano, este quadro figura a distância das primas, juntas numa mesma imagem, mas separadas, em divisões diferentes do quarto, pelo jogo de máscaras de Greice.

Os espelhamentos e máscaras tornam-se símbolos explícitos durante a porção que se desenrola em Fortaleza, que corresponde a quase totalidade da segunda metade do filme. Foragida de território luso, Greice tenta regularizar a sua situação a partir do Brasil sem revelar à mãe nada do sucedido, inclusive que voltou à cidade natal. Para efectuar as diligências legais necessárias, Greice recorre à prima, a um velho amigo advogado, e ao recepcionista do hotel em que está hospedada, Enrique (Dipas), sobre quem se insinua, deixando o rapaz embeiçado. Porém, embora a dissimulação seja um meio para atingir um fim, compreendemos que, no caso de Greice, a mentira parte de uma propensão pueril para a fantasia, para a interpretação de papéis, para fazer com que a realidade se conforme com as suas fabricações. Nem com o diário Greice mantém uma relação sincera, preferindo encenar nas suas páginas o que a imaginação lhe apraz.
Portanto, de certo modo, é natural que o filme se esvazie a partir do momento em que a protagonista confessa a verdade (será mesmo?) à prima e a Enrique. Pior do que a decisão de dissipar a dúvida quanto à inocência ou culpabilidade de Greice é o movimento nostálgico que essa mesma confissão gera de um ponto de vista narrativo. Assim, o último terço da acção retrata a saudade de Greice pela cidade em que cresceu, pelas suas gentes e pelos seus costumes. Neste ponto, o filme aproxima-se de um lugar de saudade genuína e, muito provavelmente, de verdade autobiográfica, visto que Leonardo Mouramateus é natural de Fortaleza. Todavia, à semelhança do que se verifica com Greice, que está a ser fiel à sua natureza quando mente, o filme é mais verdadeiro quando dá expressão às falsidades criativas da protagonista do que quando representa verdades sentimentais.

O último dispositivo narrativo de Greice é um Deus Ex Machina que visa ilibar a rapariga de qualquer responsabilidade legal e, pior que tudo, moral. Lis informa Greice de que a pintura carbonizada se tratava de uma falsificação e que o original fora furtado. Há mais! Foi o suposto acidente protagonizado pela rapariga que permitiu a descoberta do roubo decorrido em Belas-Artes, pelo que a faculdade, no limite, até lhe deve agradecer por ter ateado fogo dentro do edifício. Ao que parece, as faculdades portuguesas, em conformidade com o que acontece nos paióis e prisões de alta-segurança nacionais, não têm câmaras de vigilância operacionais e tampouco precisam delas, desde que haja um fogo posto providencial. Apesar da noção de falsificação ir ao encontro dos motivos trabalhados pelo filme, sente-se uma certa cobardia, na medida em que há a necessidade de mostrar que as acções de Greice, ainda que censuráveis, são inconsequentes, tanto que pode retomar a sua vida como se nada tivesse acontecido.
★★★☆☆