1.
Studying the horse, we understand
how hard-core followed the invention
of photography. There’s a dark compelling
muscle framed by the flanks. There’s
a question, an academic question, of at
which point in a leap the female breast
is highest? (…)
Albert Goldbarth, “The Origin of Porno / 1878: the Muybridge equine series”, citado por Linda Williams, Hard Core, Pandora, 1990 [34]
“And so we invented pornography”, conclui o poema de Albert Goldbarth, ou seja, com a passagem do carácter analógico e alusivo da Pintura – atente-se na tela Le Derby de 1821 à Epson de Théodore Géricault que procurava equacionar (visibilizar e representar) a possibilidade de haver um momento em que as quatro patas de um cavalo a galope se encontravam todas, ao mesmo tempo, no ar – à “cronofotografia” (e não apenas à fotografia), já que aqui se tem uma fotografia que se toma por objecto, vem sobre si própria e procura “dar a ver” o que ainda não se encontra suficientemente explícito: é o caso, claro, das pranchas (provas de contacto?) de Edward Muybridge em 1878 que executa um trabalho semelhante para diferentes tipos de movimento, do animal ao humano e, neste âmbito, do corpo masculino (a correr, executar diversas tarefas) ao feminino (vd. Woman emptying a pail of water).
Linda Williams (Hard Core) observa que, enquanto “os corpos nus de homens em acção aparecem de forma natural”, no caso dos femininos eles tendem a aparecer em “mini-dramas” (instalações elementares com certos objectos domésticos, sozinhas ou acompanhadas, nomeadamente por crianças) que “constantemente andam à volta da questão da sua feminilidade”, pelo que, neste caso, a “fetichização” (embelezamento) da sua exposição/ representação “apelaria a uma forma narrativa” [43]) (neste como nos outros casos traduzimos).
Cronofotografias de Eadweard Muybridge
Por seu turno, Jacques Lacan (Encore), afirma, para nossa grande surpresa, que “não há relação sexual” (Seuil, Points-Essais, 1993 [47]): quer isto dizer, entre outras coisas mais complexas (e paradoxais), que o “desejo” se constitui (daí se relançando e vindo) sempre sobre uma “falha” (carência, impossibilidade, frustração). Nos termos do autor, a “verdade” dessa “não-relação” estruturante, resultado também de dois tipos de “pedido” (desejo) distintos (o masculino e o feminino), é que ela “fracassa” (“ça rate”). “O ‘fracasso’ [ratage] é o objecto”, pelo que “o objecto é um ‘fracassado’ [raté]”: “a essência do objecto [desejo/ sexo] é o fracasso”, conclui [78]. Uma “falha” (falta) que se repercute, sobredetermina (condiciona) e configura, os nossos actos e imaginação (a produção de cenários, posições e figuras – afinal, tudo imagens [Sade]), na tentativa, ao mesmo tempo louca e inglória (mas haverá outra?) de, de algum modo, “aliviar” (momentaneamente fazer esquecer) essa “falta”. Como refere ainda Lacan, é a partir dessa “não-relação”, do facto dela “falhar”, que se pode enunciar o que “supre” (ou não) esse “fracasso” – algo entre o “amor” (o desejo fusional do 1) e o “gozo”, a lei dos corpos (significantes) que per-furam e des-iludem o “significado” [86].
E é aqui que entra o “porno” que, com melhor ou pior sorte, procura, pelo “excesso” (saturação) de actos ou imagens (grandes-planos de partes do corpo), criar a ilusão (por vezes, pela euforia, a utopia) de poder colmatar (ou mesmo anular) essa “falta” (carência e impotência primitivas). Mas, como têm observado, entre outros, Linda Williams (Hard Core) ou Julien Servois (Le cinéma pornographique, Vrin, 2007), o porno não se resume a isso, já que, mesmo nos seus exemplos mais simplistas (mas nem por isso menos “canónicos”), esse “excesso” só consegue muitas vezes tornar mais dura a queda (ressaca) – daí que se procure, sobretudo a partir dos anos 60/70 (os anos da sua “publicitação”), fazer da constatação dessa “falha” (emperro) a mola do dispositivo pornográfico e dos seus filmes. Como refere, bem, Servois, “a desintegração pornográfica não teria como efeito a objectivação do corpo, tornando-o transparente à sua funcionalidade, mas [sim] o de o fazer explodir numa livre combinatória, manifestando por essa desorganização o trabalho de uma carne transitória e anónima” [43]. E isto ao mesmo tempo que, glosando Bataille, a “transgressão ritualizada (pense-se em Working Girls [As Profissionais do Sonho, 1986] de Lizzie Borden) constituiria uma das formas de dar forma ao informe”, ao abismo entreaberto e sôfrego (béant) da “carne” [43], na sua vontade (intenção) de “visualizar” (dar a ver e dar-lhe imagem) o “indizível” = “invisível” do desejo e do gozo [71].
2.
Simone Barbés ou la Vertu (1980) de Marie-Claude Treilhou pode ser encarado como uma elaboração sobre a conhecida (e infame?) frase de Lacan: Il n’y a pas de rapport sexuel (Encore).
Acompanhando Simone (Ingrid Bourgoin) ao longo de uma noite – do seu trabalho como arrumadora (-gerente) de um cinema porno à passagem por uma boîte lésbica e um passeio no carro de um homem mais velho que a aborda na rua – o filme vai sistematicamente evacuando de cena tudo o que poderia ser o grande acto espectacular do sexo (ou sentimento).
No átrio de entrada do cinema assistimos a conversas entre Simone e a colega, Martine (Martine Simonet), e às entradas e saídas dos seus frequentadores (entre os quais um gentil “drageur” [Michel Delahaye, nome importante dos Cahiers dos anos 60], o realizador de um dos filmes aí projectados [Nöel Simsolo], um teórico do género [o “marquis”, pressupõe-se que de Sade] ou mesmo um cego acompanhado pela mulher) enquanto se ouve em off o som dos filmes em exibição.
Na “boîte” queer assistimos aos encontros e desencontros de alguns casais (nomeadamente o de Simone com a sua aparente namorada), às canções de uma banda de músicas lésbicas (mas também à prestação de uma “rockeuse” com o tema “La nana-mec”) e mesmo uma dança de amazonas que parecem saídas de um peplum italiano.
Por fim, na deambulação nocturna de Simone com o homem de bigode falso (croupier num casino) ouvimos o seu monólogo sobre o estado do mundo e dos amores, constatando-se que tudo já aconteceu e agora despertamos para uma alvorada de ressaca, nua e crua.
Na sua dimensão formal (plástica) e enunciativa (também de dicção), Simone Barbés é um filme oral e é pela voz, o seu timbre e modulação (fraseado) do discurso, que passa a sua dimensão sexual (ou erótica). O filme convoca, pensamos, o dispositivo cenográfico de Une sale histoire (1977) de Jean Eustache, que será também o de Les Cinéphiles (1989) de Louis Skorecki – no primeiro, uma anedota “salace” e “voyeurística” é contada por dois homens (Jean-Nöel Piq e Michel Lonsdale) em duas situações diferentes, no segundo rapazes e raparigas conversam sobre a sua vida, filmes e cinema sem que nenhumas imagens deles sejam vistas.
O mais interessante é que essa exclusão da acção e possíveis motivos de “atracção” da cena leva, no plano formal, à afirmação da componente plástica dos planos (a sensualidade dos corpos ou acção passa para os décors /fundos ou os matizes das cores saturadas e húmidas) enquanto que, por outro lado, isso não se traduz num amesquinhamento mas na valorização desses actos, conversas e desencontros triviais que acabam por ganhar uma autonomia e valor próprios, apresentando-se como o próprio acto e não apenas o seu pobre substituto.
Não há “relação sexual” mas ele está lá em toda essa lateralidade ou envolvência que constitui, afinal, o que pode haver de “sexo “ (erotismo) e do próprio “real” (esse “pouco-de-realidade”, enraizado no fantasma, que é tudo “o que nos é permitido abordar do “real”, ainda segundo Lacan [Encore: 120]). Encontra-se, por exemplo, na fala, nos diálogos entre os personagens (sobretudo as duas “arrumadoras”) e no monólogo final de Simone que, sim, evocam o melhor Rohmer. Algo que parece ainda estar de acordo com Lacan para quem “a outra <satisfação>, a da fala (palavra), discurso” talvez fosse “a mais própria da <mulher>”: ou seja, a “linguagem” como “aparelho de gozo [jouissance]” já que “falar de amor [ou simplesmente falar numa situação em que o desejo falha/falta] é em si um gozo” [106].
Como Simone diz a alguém que lhe pergunta o nome: Simone Barbés, como o boulevard (do mesmo nome). É essa a operação de limpeza da “psicologia”, ficção e imagem a que, como num Bresson um pouco trash, o filme procede.
No modo como desse modo se cria um “centro”, espaço vazio no ecrã – disponível a que qualquer coisa, independentemente do seu relevo (interesse), aconteça, tenha lugar (sempre de acordo com o princípio dos Lumière de que o cinema é o que acontece frente à câmera) -, o filme de Marie-Claude Treilhou acaba por ter semelhanças com o mais recente La bête dans la jungle (2023), adaptação do conto homónimo de Henry James, de Patric Chiha.
No filme de MC Treilhou esse “vazio” original é no fim ocupado pelo, diremos, porno da voz de Simone que vai dos gemidos off das actrizes dos filmes à voz plena de Ingrid Bourgoin (actriz de Paul Vecchiali que entra também em Un couteau dans le coeur [Coração Aberto, 2018] de Yann Gonzalez): esse tom esganiçado agreste que lembra Arletty (de tal modo que, por vezes, temos a sensação de ver dois filmes sobrepostos, em palimpsesto oral-imagético, um com Ingrid e o outro com Arletty – talvez Hotel du Nord [Hotel do Norte, 1938] de Marcel Carné).
No filme de Patric Chiha esse centro vazio da imagem é a pista de dança da discoteca (continuamos no registo nocturno que é também o do negativo da imagem de cinema), lugar, pensamos, de uma concepção carnal e voraz de cinema. Com efeito, é ela a “fera” do filme, já que não somos tanto nós que olhamos para ela como ela que nos observa à espera de poder dar o salto.
O segredo do personagem masculino, John (Tom Mercier) é o da sua inibição, medo da vida: que o real nos toque e seja excessivo (como o sexo ou o amor) e nos devore. A sua última palavra, aliás, é sempre a morte (e Béatrice Dalle, aqui, tem esse papel de oficiante, uma Parca de discoteca que gere as entradas e saídas desse submundo). Mas a pista, no seu metamorfismo – com o tempo mudam as pessoas, as músicas, as roupas e as formas de dançar (estar na pista) – pode também ser encarada como uma figura (e lugar) do cinema (vd. entrevista com o autor no DVD do filme). Ela é o lugar onde se fundem os espelhos, contudo omnipresentes (do bar aos lavabos da discoteca), assim como a ocasião de diferentes metamorfoses, sobretudo dos corpos, entregues ao êxtase pagão, carnal (cada vez mais obsceno), da dança. Como é dito por May (Anaïs Demoustier), é como se não houvesse tempo, ele se tivesse diluído numa frequência única apenas escandida pelo diferente pulsar (batida) do metrónomo repetitivo da música electrónica – fluidez do tempo e da imagem a que corresponderia algo como a noção de “carne”, uma substância contínua, caracterizada pela “proliferação de n-sexos” ou por um hors-sexe que é o do próprio pulsar da matéria do mundo (Yann Lardeau, “Le sexe froid (du porno au au delà)”, Cahiers du Cinéma n.º 289, 1978 [52] e Julien Servois, Le cinéma pornographique [46,140]).
3.
Na trilogia (melhor, dispositivo de fantasmização do imaginário) de Ti West (X [2022], Pearl [2022] e MaXXXine [2023]) a referência principal, claro, é ao “porno” e ao “gore”, não só dois géneros próximos (que se encavalitam) como tendo a ver, pensamos, com a própria essência (a tê-la) do cinema: o seu terror e metamorfismo primais. Linda Williams (Hard Core), aliás, observa que “o desejo de ver e conhecer melhor o corpo humano não só conduziu à invenção do cinema” (Muybridge, Marey, os próprios Lumière), como o cinema constitui um dispositivo pornográfico, isto é, “uma tecnologia que produz um corpo à sua imagem” [36(39)].
Com efeito, pornografia, à letra, no grego, refere um determinado tipo de obras, escritos ou imagens (graphein) sobre corpos, em particular os de prostitutos/as (pornai), afinal, os corpos propriamente ditos, aqueles que tendem a reduzir-se e a con-finar-se a si próprios, à sua matéria e enxada (instrumento de trabalho), sem ilusionismos de psicologia ou alma. Trabalhando sempre no limiar/ limite da “falência” reiterada do desejo, procura-se aqui sempre um mais (que é também um “menos”) de desejo = real. “Imitação de uma narrativa de esperança de um <além>”, o porno “falece do desejo de um referente” (céus! que haja algo de real!), “da antecipação do ponto de ruptura dos limites” (que isto não seja só décor e representação) e “da travessia de uma cena que dê para o real” (Servois [140]). O que aqui temos, assim, é um corpo em acto, performativo, dado no seu trabalho de ser/se revelar corpo (ainda que fantasmaticamente, mas haverá outra maneira?) e “dando corpo”, pondo em cena e actualizando/objectivando (por um problemático coming/acting out) os seus fantasmas.
Se se pode estabelecer uma relação do “triângulo” (freudiano) de Ti West com o giallo italiano (o lado slasher escópico de Dario Argento [Occhiali neri (Óculos Escuros, 2021)] ou o cinema do pró-fílmico, bastidores, de Mario Bava [Sei donne per l’assassino (Seis Mulheres Para Um Assassino, de 1964) e Il rosso segno de la folia (As Noivas da Morte, 1971)]), assim como com o cinema americano dos anos 70 – dos slashers (Halloween [Halloween – O Regresso do Mal, 1978] de John Carpenter e os primeiros Friday the 13th [Sean Cunninghan /Steve Miner, 1980/2]) ao porno-gore de Night of the Living Dead [A Noite dos Mortos-Vivos, 1969], de George A. Romero, e The Texas Chainsaw Massacre [Massacre no Texas, 1974], de Tobe Hooper), sem esquecer o cinema com maior grão e mais sujo da “nova” (Scorsese, Coppola, De Palma) e “velha” Hollywood (Fat City [Cidade Viscosa, 1972] e Wise Blood [Sangue Selvagem, 1979] de John Huston ou The Visitors [Os Visitantes, 1972] de Elia Kazan) -, em X (o primeiro filme da trilogia) a relação (meta) parece ter mais directamente a ver com a “nova vaga” de exploitation cinema de “arte” na linha do experimentalismo hardcore de Jack Smith (Flaming Creatures [1963]) e Kenneth Anger (Scorpio Rising [1963]) que desemboca em filmes como Inserts (1975) de Jonh Byrum e Working Girls (1986) de Lizzie Borden: um cinema que utiliza e mima alguns processos e técnicas (formais e enunciativos) do novo cinema europeu dos anos 50/70.
Assim, logo no início, depois do plano (distanciado) da casa rural plantada na paisagem árida do sul (Texas), temos um flashback que nos conduz a Maxine Minx (Mia Goth) e em seguida à carrinha com a improvisada equipe de rodagem do filme de “porno art” The Farmer’s Daughter, nas palavras do seu realizador (RJ [Owen Campbell]), “a good dirty movie”, feito de acordo com o lema “do it yourself” (“like they do in France”, acrescenta).
Deixando de lado a intriga – cuja “cena primitiva” fundadora será trabalhada em Pearl – , esse dispositivo directo e aberto de cinema, menos interessado em “enquadrar” (meter no plano=quadro) ou “formalizar” (reconverter os elementos brutos do real em “forma”) do que em captar o real a acontecer, livre de empecilhos e balizas formais ou narrativas, é à letra pornográfico já que mais do que se preocupar com a verosimilhança ou a narrativa (em termos aristotélicos, o muthos) se dedica sobretudo à acidentalidade (a peripeteia) dos efeitos (sensacionais: produtores de sensações) dos corpos (e nos corpos). Assim, basta carregar no botão e pôr em marcha a câmera já que o que se passa à sua frente reconduz o imaginário (sexual) de que ele vive e que o funda. Não só a história perversa do casal de idosos, Howard (Stpehen Ure) e Pearl, que actualizam a “cena primitiva” do Fantasma, mas também a do cinema dado que o vislumbre, por Maxine, de um vulto por detrás da janela da casa, nos remete para a janela do Bates Motel de Psycho (Psico, 1960) (filme que é aliás referido explicitamente) de onde “a mãe de todas as mães” (do cinema e não só) nos fita. Quando Maxine, mais tarde, entra na casa, os fantasmas vêm ao seu encontro: ela como Pearl, cujo passado será o seu futuro (tudo isso numa especularidade reforçada pelo facto de Mia Goth, em campo contra-campo, de um lado e do outro do espelho, desempenhar os dois papéis).
Com efeito, não só os corpos em cena (acção) convocam os fantasmas (re-incorporados) da “cena primitiva” (vd. montagem paralela da sequência a ser rodada do filme em que Bobby [Brittany Snow], The Farmer’s Daughter, serve um refresco a um desconhecido [Kid Cudi] e os planos em que Pearl oferece uma limonada a Maxine), como convulsionam a própria natureza fazendo-a participar do grande cio e coito cósmico da carnificina final.
É nessa força genésica, pan-sexual – que percorre natureza, câmera (que, na sua voracidade, guarda na sua lente-útero uma cena de cópula) e corpos (dos jovens mas também de Pearl, um corpo decrépito mas insaciável [vd. cena em que ela confronta e mata RJ e em que a faca parece um pénis ensanguentado] -, que reside, pensamos, o verdadeiro “horror” do filme: o da libido solta na procura de um “êxtase” paredes-meias com a morte (talvez o do orgasmo-limite conseguido no último acto de sexo entre Pearl e Howard). É isso que assusta, no sexo (Bataille) e no poder de revelação (exposição e fixação) do cinema, porque, como comenta Lorraine (Jenna Ortega), a amiga do realizador, camera changes things.
Já em MaXXXine a grande referência (meta-cinematográfica) é Behind the Green Door, filme de 1971 dos irmãos Williams (Artie e Jim) com Marilyn Chambers (que reencontaremos em Rabid [Coma Profundo, 1977] de David Cronenberg).
Na verdade, o teatro (cena) do fantasma de Maxine – o vídeo (filme caseiro?) que o pai (Simon Prast) (que já aparecera, como um pregador de TV em X) filma, fixando-o e congelando-o num casulo/cripta da memória (tal a “momie du changement” a que André Bazin se refere para caracterizar a imagem de cinema) – é reelaborado pela memória e formas do cinema – o porno slasher de rua (Fear City de Abel Ferrara cruzado com Body Double de Brian De Palma, ambos de 1984) mise en abyme pelo ponto de vista do décor do Bates Motel de Psico – até a “verdade”, por esse acting out (paródia do sacrifício), se revelar e vir ao de cimo: o “cinema do fantasma” de que o encenador é o pai (aliás, todos os pais [vd. confronto final nas colinas de Hollywood])*, mesmo o grotesco casal idoso e estéril [os “arqui-pais”] de X).
(*) Peg Entwistle, uma das actrizes do curioso pré-slasher (de 1932) 13 Women (1932) de George Archimbald – o seu único filme, onde se suicida devido ao stress causado por cartas que anunciam a sua próxima morte -, acabará por fazê-lo ela própria, em 16 de Setembro desse ano (com 24 anos e ainda antes da estreia do filme), atirando-se da letra H abaixo do letreiro (então) Hollywoodland. Ela é como que o “negativo” (nocturno) de que Maxine constitui talvez o “solar” positivo. Bem merecia, por si, um filme, Ti.
4.
O cinema de Andy Warhol – sobretudo os primeiro filmes a preto-e-branco, sem som, com prise directa e em continuidade: Sleep, Kiss, Blow Job ou Empire (todos de 1964) – pode relacionar-se com o registo da “pornografia”, isto é, a evidenciação e exploração do lado “porno” (à letra) do cinema. Assim, tem-se: 1) um dispositivo (que, pela sua sistematicidade e repetição, se pode considerar também uma “instalação”) que é ex-posto, denunciado como tal e visto no plano (tal como a presença de espelhos e a persistência de olhares-câmera nos filmes), que 2) visa produzir efeitos = estímulos, menos pela variedade do que pela duração da sua permanência no plano (Empire) e, portanto, 3), obter uma resposta (reacção) do espectador (também um participante incluído nessa experiência imersiva), ele próprio, 4), aliás, mais extático (devido ao tédio, cansaço, causados pela monotonia dos planos) do que hedonista (o surplus de “prazer” não parece ser, antes pelo contrário, o objectivo destes filmes).
Porno conceptual, considera Steven Shaviro (The Cinematic Body, University of Minnessota Press, 2006), tendo a ver, segundo ele, com a obscenidade (fria) de qualquer dispositivo de representação – aqui o cinema mas também nos poderíamos referir à fotografia (o efeito porno-flash das polaróides) ou mesmo à pintura (dos piss works com Basquiat ao niilismo minimal das serigrafias com o seu efeito de redução da “aura” tanto do “artista” como da dignidade da “pintura”). MaXXXine (de Ti West) aparenta-se aliás às Liz Taylor, Monroes ou Blondies das serigrafias que, dir-se-ia, no filme ganham corpo, se autonomizam, como se saíssem de telas e tomassem conta da situação, restaurando no ecrã todo o pró-fílmico.
Daí a literalidade desse cinema assente na imanência (sem qualquer transcendência) da câmera (imagem) ao “real”. A câmera nem sequer é, como para Deleuze (L’ Image-mouvement [Minuit,1983 (60)]), o olho dado interiormente ao real capaz de captar as suas leis (segredo) – no caso de Vertov, o “sentido comunista” da evolução do mundo -, situando-se antes horizontalmente, ao rés (nível) do real, como uma das suas coisas, elementos. Olhar não ao nível do homem mas do mundo – não há aqui, com efeito, qualquer olhar de respeito, “para cima”, que reconduza nas imagens um “além” e lhes comunique o suporte (mito) de uma “aura” (Walter Benjamin), apenas a constatação banal mas preciosa (porque talvez nada mais haja) do seu fugaz (como com as imagens de cinema) aparecer (e presença).