Sempre que o amor me quiser
Vou-me banhar nessa luz
Sentir a corrente passar
E esquecer-me de mim
– da canção de Lena d’Água com letra de Luís Pedro Fonseca.
Na Nota de Intenções que Diogo Costa Amarante escreveu a propósito de Estamos no Ar (2024) pode ler-se que a ideia do filme surgiu a partir de uma visita a um apartamento que o realizador pretendia alugar na cidade do Porto. “O apartamento que aí arrendei foi-me mostrado pelo próprio inquilino, um polícia chamado Leonel Portela que estava de saída porque tinha conseguido destacamento numa cidade mais próxima da mulher e dos filhos. (…) Levou-me à varanda para me mostrar a vista sobre a cidade. Uma mulher, na varanda do lado, interrompeu a conversa. Chamava-se Fátima e pareceu-me melancólica pela partida do vizinho. Uns dias mais tarde, bateu-me à porta para me oferecer ajuda no que precisasse, acrescentando que sempre tinha tratado da roupa de Leonel. Daqui, passei à ficção: um filme que fala das fantasias que projetamos sobre os outros.” Das palavras do realizador, que me parecem particularmente reveladoras, sublinho o verbo projetar.
Estruturado em torno de três personagens, cada uma representante de uma geração, o filme acompanha avó, filha e neto (ou filho, mãe e avó, consoante o destaque que Costa Amarante vai dando às personagens, nunca se decidindo a dar o protagonismo a qualquer uma delas, oscilando, ao longo do filme, entre umas e outras) através dos seus diferentes vínculos amorosos mais ou menos insatisfeitos. A avó (Júlia/Valerie Braddell) lida com o luto do companheiro de uma vida – é justamente por aí que o filme começa, pela imagem da campa do marido (e pela campa que este preparou para a esposa) –, o filho (Vítor/Carloto Cotta) saltita entre encontros sexuais esporádicos, mantendo uma fixação particular por um rapaz, e a mãe (Fátima/Sandra Faleiro) tem pelo vizinho da frente uma paixão não correspondida, enquanto é cortejada por um outro vizinho, que desdenha. Quer seja pela morte (no caso da avó), pela moralidade monogâmica (no caso da mãe) ou pelo hedonismo digital (no caso do filho), as três personagens descobrem-se diante de uma impossibilidade: consumar o seu desejo. A partir deste impasse – que parece ter o valor de um comentário sobre a natureza das relações, we are all extras –, Diogo Costa Amarante põe em marcha um divertido jogo de transferências (e projeções), onde os corpos e as “identidades” se transacionam a bem da satisfação dos imaginários (também em sentido lacaniano, isto é, pela preponderância da relação com a imagem do semelhante como complemento do real e do simbólico que definem o campo psicanalítico).
Pois bem, a avó pede ajuda a uma “amiga” do centro de dia, conhecida pelos seus poderes mediúnicos, para incorporar/encarnar a “alma” do falecido marido (“foste muito generosa em dares o teu corpo”). Assim, através de uma relação lésbica unidirecional (“ela não é minha namorada, é minha amiga”, “ela gosta de mim de uma maneira que eu não consigo corresponder”), a avó prolonga a relação com o falecido marido através do corpo de Conceição (apropriado nome – Cucha Carvalheiro). Naturalmente as duas relações azedam: o espectro torna-se possessivo (deliciosa ironia – acentuada pelo facto de a voz que dá corpo à possessão pertencer a Luis Miguel Cintra) e a amiga desilude-se com aquele teatro de projeções (“já não aguento esta relação a três!”). Por sua vez, o filho prolonga a relação com o dito rapaz com quem teve um encontro fugaz através de outra forma “mediúnica”: a mediação digital. Mediante o ecrã do telemóvel ou do computador, o corpo – mais o corpo do que qualquer outra coisa – faz-se presente. Mas essa presença é puramente imagética. Na impossibilidade de saciar o desejo com a imagem, Vítor encontra num carinhoso camionista o afeto que aquele objeto de desejo autocentrado não é capaz de entregar – aliás, atente-se no momento em que a imagem do rapaz literalmente se quebra, extinguindo-se aí a “relação” com Vítor, e repare-se que apesar da personagem do camionista nunca ser nomeada, os créditos referem-se-lhe como cuddle whore (puta de mimos).
A densidade de significados em Estamos no Ar contamina cada décor, cada secundário, cada cena e cada objeto – mas sem nunca se deixar saturar, mantendo a permanente legibilidade narrativa e simbólica.
Já a mãe transforma a lida doméstica numa forma de intimidade, usando a lavagem da roupa como um meio de se aproximar do corpo interdito do vizinho, o tal polícia Leonel (Romeu Runa). Tanto é que, numa das sequências oníricas do filme, Fátima sonha com Leonel e Diogo Costa Amarante visualiza o seu desejo através de um fogoso ferro de engomar. Só que esta é, das três, a mais complexa das “relações de substituição”, uma vez que não é apenas através da roupa que Fátima satisfaz o seu desejo. De forma mais direta, ela usa o “outro vizinho” como figura projetiva das suas frustrações (aceitando-o apenas com a condição de que este se vista com a farda do polícia), e de forma mais “psicanalítica”, o filme literaliza a sua obsessão através de uma ratazana que “atravessa” as paredes dos apartamentos contíguos (“os nossos quartos comunicam”) através de um “buraco” escuro e profundo. Aqui, claramente, há uma referência ao famoso caso do Homem dos Ratos, através do qual Sigmund Freud descreveu pela primeira vez a “neurose obsessiva” (vulgo transtorno obsessivo-compulsivo). A história desse caso tem origem numa “tortura asiática” em que se forçavam ratos a entrar no ânus das vítimas. Portanto, a ratazana, para Fátima, é a manifestação do seu desejo, não tanto no sentido freudiano de “atualização da realidade do inconsciente”, mas no sentido lacaniano de transferência enquanto vínculo entre o sujeito, o outro e um objeto que, na “vontade de amor”, procura a “reedição da cena fantasmática” do Outro.
Só que isto é só o começo. A densidade de significados em Estamos no Ar contamina cada décor, cada secundário, cada cena e cada objeto – mas sem nunca se deixar saturar, mantendo a permanente legibilidade narrativa e simbólica. Tudo está carregado de sentidos duplos: a começar pelo título (estamos no ar, referindo-se à televisão em movimento, mas também à expressão dos pilotos quando o avião descola – e, neste caso, à dimensão gasosa com que o filme transita de personagem em personagem); continuando nos espelhos que desmultiplicam a mãe e deformam a “namorada” possuída pelo morto, mas que só reproduzem a filha; as elipses que omitem todos os momentos de sexo e violência (o olho arranhado, o pé partido da apresentadora de televisão, os encontros com o camionista); nas “máscaras” que se revelam ora na farda de polícia (que passa de corpo em corpo, como o nome de Leonel, que se cola a diferentes personagens), ora na montra de disfarces de Carnaval, ora ainda na mudança de cor de cabelo e nos implantes mamários; na representação suburbana da “praia tropical” no pátio da amiga; no escapismo psicotrópico dos velhinhos quando entram na “Arca do Anjo”, o escapismo do sensacionalismo televisivo como forma de recusar as complexidades do mundo, o escapismo cósmico por via da “fuga para Júpiter” no ecrã do planetário e o escapismo romântico da Lena d’Água em versão drag lip-sync (tripla forma de representação/substituição/possessão); no verde do camaleão que tem a capacidade de projetar o entorno (o verde do jardim), como verde é a luz da câmara de segurança através da qual Vítor quer ser apanhado, e verde é também o laser com que o vizinho “seduz” Fátima, assim como verde são os ladrilhos do apartamento e os sonhos molhados com o polícia; e, claro, no tráfico de “raspadinhas do amor”, onde o “cometa do coração” se transforma em fogo de artifício e este em mecanismo de rega automática, e depois em roda de camião do lixo, em ciclo de máquina de lavar e em céu estrelado, numa sucessão de fundidos encadeados onde tudo se mistura e tudo “comunica” através desse “buraco” que põe a vida em movimento.
Estamos no Ar é um filme de humor fino organizado sob o signo das representações. É uma espécie de Pedro Almodóvar narcotizado onde todas as personagens (mas também os lugares e os objetos) fazem as vezes doutras, numa sucessão de transferências e substituições, onde as vontades e as suas frustrações transformam a realidade à medida dos desejos e dos imaginários. Tudo feito com a ternura de uma avó que oferece uma nota de dez euros e um par de cuecas “abanderado” ao neto. Tudo saboreado com o prazer de quem come ovinhos de codorniz numa área de cruising. Tudo dito com o suspiro que propõe um neologismo: “desbussulado”.
★★★☆☆