Se for um certo tipo de cinéfilo o evento mais incontornável do ano foi o lançamento de Megalopolis (Megalópolis, 2024), de Francis Ford Coppola, independente de se ter gostado dele ou não – e mesmo para o maior dos formalistas é difícil separá-lo do ruído em torno dele. Não se trata simplesmente de um filme espetáculo, mas de um acontecimento que passava por existir e sugerir que era possível colocar à frente uma visão grandiosa de um artista, ao menos desde que este tenha os meios de produção na mão.
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Não quero aqui litigar as muitas discussões em torno do filme (espaços como À pala de Walsh já fizeram isso muito bem – I e II), mas me fascina isto de se tratar de uma super produção de um artista que hoje existe como quase amador. No começo do ano escrevi uma filmografia comentada de Coppola para o meu blog e um dos meus objetivos era contrapor a narrativa de decadência que costuma envolvê-la e queria muito defender os filmes que ele fizera pós-Hollywood, sobretudo Youth Without Youth (Uma Segunda Juventude, 2007) e Twixt (2011), dos quais gosto muito. É curioso que estes três filmes pouco apareceram nas conversas sobre o novo filme já que foram feitos numa escala muito menor, mas em condições parecidas. Youth Without Youth, um delírio romântico ao mesmo tempo grandiloquente e barato, em particular soa como um ensaio para o filme posterior. São filmes em que esta qualidade artesanal está sempre em primeiro plano. Megalopolis, assim como Youth Without Youth, parece suntuoso e subfinanciado, só que no filme novo os cenários são muito maiores.
O olhar de Coppola é de um reformismo conservador, menos preocupado em repensar como a indústria deveria funcionar, mas imaginá-la como uma versão na qual os Irving Thalbergs e Harry Cohns fossem substituídos por artistas como ele.
Se o filme novo é um gesto criativo faz sentido que as reações negativas mais do que apontarem os seus defeitos (muitos dos quais existem), parecem questionar sua existência. A imprensa mais vulgar parece se divertir com a ideia do fracasso em si, do artista milionário a queimar o próprio dinheiro, mas dentro da crítica estas pancadas tendem a se dividir entre os assessores de imprensa da indústria, que antipatizam com o projeto de partida, e aqueles que se irritam com o arcaísmo do olhar do artista e sua celebração do homem genial e de visão. Não discordo do segundo grupo de que a fábula de ideias não é muito interessante (apesar dos fogos de artifício para nos manter envolvidos e a estranha amálgama de décadas de ideias pela metade me parecem ser), mas o seu espírito censor me gera sobretudo enfado. Existe, obviamente, quem se engajou com o filme e o achou bastante insatisfatório, mas suas vozes, bem-vindas como possam ser, pouco eco tiveram nas conversas tipicamente pró e contra – como quase todo filme é tratado hoje em dia.
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O contraponto mais óbvio é celebrar o sucesso de realizar o filme em si e compreendo isso, mas ao mesmo tempo não acho que o evento Megalopolis seja tão simpático e digno de defesa como gesto do que, por exemplo, Twixt. Aquele pequeno filme de terror era – ele sim – um filme semiprofissional, o grande artista filmando no próprio quintal com amigos, algo que lhe é bastante pessoal (o clímax envolve encenar o acidente que matou seu filho no fim dos anos 80). É o diretor de The Godfather (O Padrinho, 1972) fazendo arte povera bonita, mas às vezes insuficiente na carpintaria, um pouco como os últimos filmes do Jesus Franco. O gesto do filme novo tem sua força, mas é difícil pensar que Coppola está muito longe de John Cassavetes quando este autofinanciava seus filmes. A verdade que desde os tempos de que primeiro tentara repensar a indústria hollywoodiana com sua produtora Zoetrope, o olhar de Coppola para ele é romântico, mas também de um reformismo conservador, menos preocupado em repensar como a indústria deveria funcionar, mas imaginá-la como uma versão na qual os Irving Thalbergs e Harry Cohns fossem substituídos por artistas como ele (Megalopolis não deixa de sugerir isso o mesmo).
No mesmo dia que fui ao cinema assistir Megalopolis vi em casa a Local Legends: Bloodbath (2024), último filme de Matt Farley. Trata-se de um artista regional americano do interior do Massachusetts que com seu amigo Charles Roxburgh mantém uma produtora chamada Motern Media. Roxburgh geralmente dirige e monta os filmes enquanto Farley, cuja ocupação principal é como músico, produz e os estrela. São produções de baixíssimo orçamento rodadas com amigos no qual Farley interpreta figuras que sugerem a ele mesmo. Em Bloodbath e o Local Legends, original de 2013 (ambos dirigidos por ele sozinho), ele interpreta uma versão ficcional de si mesmo, como um músico que faz pequenos shows pela região e sobrevive de compor sem parar novas músicas para serviços de streaming. O projeto da Motern Media passa muito por um exercício de auto mitificação, e o mito do personagem Farley passa por ele ter conseguido encontrar formas de sobreviver de streamings (ele se orgulha de ter composto mais de 25000 canções – o sucesso de Farley está intimamente ligado a uma ideia de ética de trabalho americano).
O amador passional, proposto por Coppola, é uma imagem muito bonita em si, mas ela parece por demais uma imagem. Suas contradições me parecem confrontadas de forma bem mais justa nestes filmes de Farley.
Local Legends é um dos filmes mais simpáticos do cinema americano na década passada, o Farley do filme seria um típico perdedor, um músico para o qual ninguém liga, péssimo no trato pessoal que ao mesmo tempo mantém uma persona quase maníaca na sua positividade, apesar de ninguém ligar seja para a sua música ou filmes. O processo criativo por si só tão prazeroso que o fracasso material se torna irrelevante, o que tem o paradoxo da vida e o criar se misturam tanto que ele se torna um dos maiores workaholics do cinema americano. As imagens são num preto e branco simples e a encenação às vezes sem jeito, mas o filme mantém uma intimidade e um bom humor auto irônico muito acolhedor. É uma piada recorrente nos filmes da Motern que o telefone de Farley está neles e que ele atende qualquer fã que ligar. É um filme orgulhosamente amador, sem nenhum desejo de ser usado como plataforma para algo maior. Sabemos que Farley e Roxburgh não vão estar dirigindo uma produção de alguns milhões de dólares daqui a três anos. Existe uma dose inegável de narcisismo nestes filmes, mas nenhum plano de carreira – como em boa parte do cinema de autor contemporâneo.
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Nos onze anos entre os dois Local Legends, Farley se tornou uma figura cult online, um micro influencer com horror dos horrores fãs. Seus filmes seguem ignorados por festivais de cinema, mas existem eventos para fãs e lançamentos em home vídeo por selos independentes. Farley é alvo de artigos com títulos como A Day with Matt Farley, The World’s Most Prolific Artist e há até um livro com ele e Roxburgh. Claro que isto significa que em Bloodbath Farley sofre de dupla personalidade, ele é o mesmo sujeito do filme anterior, mas também um empresário obcecado em garantir que o Farley artista trabalhe o máximo e que todos ao seu redor o sirvam. O banho de sangue do título começa evidentemente quando o empresário começa a se livrar de todos à sua volta. O tom sincero do filme original retém um contra ponto mais mordaz: Farley é sempre o motivo de piada maior dos filmes, mas neste segundo ela vem com uma dose considerável de ansiedade. Nada esteticamente, porém, sugere nenhuma grande mudança neste ínterim, a fotografia não ganha nenhum rebuscamento, os cenários seguem as mesmas locações locais, o elenco de apoio vindo do mesmo universo de amigos, os filmes nunca traem que são especialmente conscientes da pequena atenção crítica que recebeu nos últimos anos. Farley e Roxburgh seguem orgulhosos amadores calorosos e desajeitados.
Bloodbath é um filme surpreendentemente sábio sobre a criação artística (e atividades adjacentes a ela) dentro da economia online e o paradoxo de como ela é dependente da atenção recebida e como esta mesma, frequentemente, é um empecilho ao trabalho em si. Tenho certeza que o orçamento de um dia de alimentação de Megalopolis pagaria por três filmes de Farley, mas mesmo o poder de Coppola não garante que ele exista acima de muitas dessas questões.
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A passagem dele pelo Brasil para promover o filme foi composta por uma sucessão de eventos e entrevistas no qual sinais de cinema eram frequentemente surrados pelo barulho do evento. Na coletiva de imprensa principal ele se frustrou com como parte dos jornalistas presentes sequer tinham visto o filme. O showman presente parecia por vezes mais o magnata da vinicultura do que o grande cineasta. É de certa forma o pacto para que o filme exista. Estou feliz que ele exista, mas tenho minhas dúvidas de que o amador em escala industrial proposto por Coppola é um gesto tão radical dentro da produção em grande escala que ele deseja. As ansiedades que ele sugere soam distantes e propostas de forma bastante teórica. Como visão falta-lhe uma certa urgência, uma conexão mais direta com os horrores e concessões nossos. O amador passional é uma imagem muito bonita em si, mas ela parece por demais uma imagem. Suas contradições me parecem confrontadas de forma bem mais justa nestes filmes de Farley.