O cinema de Margarida Cardoso continua no seu trajeto de compreensão do passado colonial português. Uma compreensão que se expande por muitos caminhos, de violência, de exploração, de reactualização dos modos de dominação, de brechas e omissões e, porque não dizê-lo, a um enfrentamento da “doença da nostalgia” do português face às suas “grandes façanhas” históricas, mito de uma “grande nação conquistadora”.

Contudo, este enfrentamento não se confunde com um cinema de urgência. A sua posição, tão subtil quanto complexa, implica, uma activação da estrutura de alteridade do cinema, pela qual compreendemos o Outro a partir da sua observação e da ressonância que a vida deste tem em nós (seja este nós, certas personagens, a realizadora e, em última instância, o espectador). Esta estrutura, que está afinal no cinema todo, nas mãos de Margarida Cardoso tem a eloquência do gesto que estranha aquilo que vê, ao mesmo tempo que faz parte daquilo que observa. É aqui que as coisas se tornam difíceis. Isso já acontecia com a personagem da Evita de Beatriz Batarda em A Costa dos Murmúrios (2004) e volta a suceder de forma clara com a figura do Dr. Afonso (Carloto Cotta) agora em Banzo (2024). E se menciono apenas as ficções, é porque a intermediação ficcional torna mais eloquente este desdobramento (tem mais um passo) de alguém que, olhando o mundo em volta, se olha e se questiona.
Banzo parece ser um filme de género, histórico, algo caricatural, mas no qual esse poder atrativo da terra produz uma vacuidade, uma espectralidade que os corpos habitam, e subitamente estamos em Tourneur ou em Apichatpong.
Assim, é pelos olhos de médico Afonso que vamos entrando numa roça na ilha de Príncipe, em São Tomé, onde vários escravos se têm suicidado ou morrido por recusarem alimentar-se. Diz-se que esse mal, o banzo, é afinal a nostalgia que estes homens e mulheres sentem por não poderem regressar às suas terras, depois delas terem sido arrancados à força para o trabalho escravizado. A progressiva estranheza do protagonista não se circunscreve apenas ao seu trabalho: ele veio para diagnosticar uma malaise que não se conhece (ou melhor, que se recusa em conhecer). Essa estranheza parece transbordar em todo o filme, provinda do facto de os “diagnósticos” estarem desfasados do real.
Raimundo (Gonçalo Waddington), o encarregado da fazenda, que poderia fazer parte do universo de Django Unchained (2012), surge afinal brando mas acomodado ao seu poder. A sua esposa Luísa (Sara Carinhas) prolonga esse desfasamento, sendo actriz nesse fingimento que simula empatia mas separa mães de filhos sem verter uma lágrima. O curador organiza a falsidade e o diagnóstico judicial da livre vontade dos trabalhadores da roça. Ismael (Rúben Simões) é o jovem escriturário que está entre a fábula e o real, entre o branco que veste na encenação e a sujidade que a realidade vem depositar nas suas mãos e no seu fato. O Dr. Figueira (João Pedro Bénard), na sua postura lacónica, apesar de compreender toda a depressão vivida neste espaço, no qual o tempo se comprime entre a saudade da terra de uns e as ordens da invisível metrópole de outros, parece estar já vencido pela idade para poder rasgar esta imagem de violência maquilhada.
Mas este desfasamento entre o diagnóstico e a realidade, como dizia, não está apenas nas personagens. Está também, talvez sobretudo, na imagem. Em primeiro lugar porque Banzo parece ser um filme de género, histórico, algo caricatural, mas no qual esse poder atrativo da terra produz uma vacuidade, uma espectralidade que os corpos habitam, e subitamente estamos em Tourneur ou em Apichatpong. Subitamente, é a luta entre deixar-se paralisar no tempo e contaminar pelas leis absurdas da dominação ou encontrar frestas para vislumbrar as comunidades daqueles que, libertos e invisíveis, parecem ainda habitar a floresta, daqueles que puderam regressar a casa.
Numa cena perto do fim, Afonso confronta o fotógrafo Alphonse (Hoji Fortuna), negro livre que vive de fazer retratos nas diferentes roças, sobre algumas fotografias em que os escravos usam umas máscaras de ferro para os impedir de comer terra e assim não caírem doentes. Afonso questiona sobre a validade destas imagens, pois que ninguém se deixaria fotografar assim. Alphonse responde que isso não lhe interessa pois estas fotografias são a encenação de algo muito violento que se sabe que acontecia na realidade. Banzo é esta outra face da imagem. Não a imagem de propaganda de um regime colonial, na qual a pobre Guilhermina (Cirila Bossuet) é fotografada a mando da patroa sob um fundo falso de Alpes suíços, mas sim uma construção de visibilidade que dá nomes às pessoas que sofreram (como Alphonse faz ao nomear os retratos desses escravos, como se fosse um gesto para o futuro, o de “salvar os mortos”), e introduz na memória coletiva a dor física e coletiva destas pessoas escravizadas.
Para que naquele movimento final de câmara sobre a cómoda de Bombaim, com que o filme fecha, ao lado dos retratos dos brancos estejam, finalmente, os retratos dos negros.
★★★☆☆